quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Os lambe-cus



"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril.
Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista.
O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios.
Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta.
À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço».
Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada. O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até ao cu.
O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu.
Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu.
Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing.
Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.

(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional.
O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês."

Miguel Esteves Cardoso
in, "Último Volume"



Muitos anos se passaram desde que Miguel Esteves Cardoso fez a sua preciosa análise sobre o culambismo pátrio. Na altura não foi novidade, tal como hoje o não é. Os portugueses lambiam cus e sabiam-no muito bem. No entanto, e sendo certo que a prática corre nas nossas veiazinhas lusitanas, os métodos, como sempre, vão mudando. Hoje não se lambem cus como os cus se lambiam no passado. O culambismo já não se resume a uma discreta lambidela surripiada no momento propício. É agora feito abertamente, institucionalmente e em estangeiro e tudo. Para marcar a mudança, mudaram-lhe o nome para “Networking”.

O “Networking” é uma constante na vida universitária portuguesa. Literalmente, esta coisa estrangeira significa “criar rede”. Dito assim parece belo, civilizado, moderno mesmo. Visto em acção, o “Networking” resume-se a enfiar numa sala uma amálgama estranha de professores, empresários e ninfetos para que, com os necessários comes e bebes, os envolvidos relaxem e possam lançar-se na cardosiana lambidela. Todos sabem que vão para lá para isso e a nenhum a ideia incomoda. Chamam mesmo a televisão e a rádio e os jornais para que tudo se documente com detalhe.

O acto nojento que levava a posteriores higienizações cuidadas tornou-se banalidade incentivada. Não há hoje jovem que, guiado pelas vetustas instituições em que teve a sorte de ingressar, não veja nestas “criações de rede” a grande forma de um dia se tornar respeitável.
Eu sou da geração em que lamber cus não é osso do ofício; é profissão.

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