sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Nuvens Carregadas






O esforço que é preciso para desenrolar estes pensamentos que me enegrecem os dias, e não são as nuvens carregadas que andam já por aí, o tempo já traz a chuva e já está um pouco frescote, principalmente ao anoitecer, mas ainda não está frio de forma a largar as t-shirts, nem a vestir as camisolas de lã nem a acender a lareira, embora também saiba que quando o verdadeiro Inverno chegar, aquele que faz bater o dente, irá ser de um dia para o outro, hoje está ameno e amanhã estará gelado, é assim agora com o clima, mas não são as nuvens carregadas, estava eu a dizer que me enegrecem os dias mas sim os problemas que nós, nós os Homens, estamos sempre a criar para nos fodermos, para foder com a vida porque não conseguimos ser felizes, não queremos ser felizes, não queremos ser um paraíso porque se criou a ideia que é a guerra que promove o progresso, queremos crescer para os outros, sobre os outros, ser melhor que os outros, ganhar mais que os outros, ter uma pila maior que a de todos os outros, nem que seja na forma de uma pistola carregada nas mãos ou num foguete rumo à Lua, somos cada vez mais gananciosos, mais consumistas, mas consumistas de número, não de qualidade e prazer, compramos porque sim, porque precisamos muito de ter, porque o vizinho tem, o meu irmão tem, a minha mulher quer, o meu filho merece e eu desejo, mas que depois fica ali, esquecido, muitas vezes nem sabemos para o que serve, para o que é que o queremos, longe vão os tempos dos livros que eu comprava a torto e a direito, não para ler mas para ter, um dia serão lidos, antes ter em casa e fazer um fundo de catálogo que procurá-lo mais tarde numa livraria e já não existir, estar descontinuado, esquecido, os tempos são outros, já ninguém quer saber desse livro Porra! quero eu, eu quero saber desse livro e quero-o em condições, as folhas coladas à cota, as folhas todas, a impressão correcta, não ter de o comprar em segunda mão em lojas de velharias onde os livros estão descarregados para lá, como num depósito de ferro-velho, são enfiados em caixas, dia-sim dia-não, para ir para feiras de antiguidades, feiras de velharias, feiras de coisas mostras de outras coisas, descontos e promoções e assim e gente que pega e dobra e não tem cuidado e gente que vende e revende e não cuida e é uma dor de alma ver um livro estragado, rasgado, não lido nem cuidado, e já nem falo nos que perdi, deixei perdidos, larguei noutras casas, noutras vidas, mas já me perdi, quando começo a falar de livros perco o raciocínio porque fico desvairado, sou um amante de livros, não só de os ler mas de os ter, de os ver, de os cheirar, de saber que os tenho, olhar para a prateleira e ver a cota, ler a cota, desenrolar o mistério que se fecha lá dentro, lembrar o que li, antecipar o que vou ler, sim também tenho a minha opinião sobre coisas que desconheço mas que sinto que posso vir a gostar, ou não gostar, que importa?, mas isto para falar que afinal não são as nuvens escuras e carregadas de tempestade que me carregam os dias e me fazem andar macambúzio e maldisposto, angustiado e deprimido, mas os dias dos Homens, a sua ganância, a sua irredutibilidade para salvar a sua própria vida, o dinheiro é sempre mais importante, o dinheiro e o consumo, o progresso e o crescimento económico, o mantra mais estúpido que já se criou, o crescimento económico! o crescimento económico! enquanto uns ganham tudo outros não ganham nada e temos de fingir-nos felizes para que ao nosso lado as pessoas que convivem connosco achem que somos melhores, com melhor vida, um Instagram de sonho, uma vida de lantejoulas e samba, mas que choramos na almofada, à noite, sozinhos, choramos as ausências, a perdas, a morte, sempre às escondidas porque as vidas são perfeitas, a minha não, a minha é uma vida coxa, às vezes sem tesão, sem brilho, solitária, perdida, negra, muitas vezes uma vida de merda onde a saída está na lâmina de uma navalha da barba que se guardou religiosamente porque era uma lembrança paterna, mas não a trocava por outra, porque pode ser uma merda, mas é a minha merda e gosto dela assim, imperfeita, partida, triste, mas pura e minha.


Álvaro Romão
in, Estórias de Violência



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