Crescemos num país onde pedir esmola fazia parte do quotidiano.
A pobreza expunha-se e reservava lugares próprios para mendigar.
Espalhava-se nas ruas autodelimitando o espaço de cada um, nas entradas dos mercados , dos cinemas, das igrejas e nos corredores do Metropolitano.
Pedir e dar juntavam-se em reciprocidade convencionada e, por vezes, automatizada.
Elevar a voz, em compasso dorido, determinava um baixar de olhar para a mão estendida, pronta para a recolha da dádiva. Parcas, reduzidas e insuficientes as moedas caíam descompassadamente.
A miséria crescia, espalhava-se, multiplicava-se e o país aceitava.
Nas escolas aprendia-se a bem tratar os pobres.
Nas igrejas invocava-se o reino dos pobres como sendo o reino de Deus.
As famílias promoviam a poupança contrapondo a existência de fome no país.
E a miséria era uma da nossas fatalidades, bem portuguesa, tal qual o tamanho e a localização do país.
Para alguns era um dos traços do génio português.
Por esse mundo, ainda distante e não globalizado, nem sequer Portugal era designado por país periférico, já que a Europa, manta de retalhos, partilhava apenas a mesma ancestral cultura multifacetada. O eixo da pobreza que nos atravessava, fixava-nos no extremo ocidental de um continente onde ambos, qual hóspede e hospedeiro, coabitavam em escuso e recíproco desconhecimento.
Para Fernando Pessoa,
" recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não nos é permitido recuperar.Vimos da sombra e vamos para a sombra.Só o presente é nosso, mas que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro?Assim toda a vida é fragmentária, a personalidade una é uma ilusão, não podemos apreender em nós uma constante que nos identifique."
A heteronímia pessoana produziu uma excelente obra literária que é portuguesa, mas o mesmo não aconteceu a Portugal. Viemos da sombra, continuamos na sombra e vamos para a sombra?
A pobreza continua em nós revestida de outras expressões em heteronímia actualizada.
A visão condoída do pobre emergente de uma fatalidade lusitana não resistiu aos cravos de Abril. Contudo, o paradigma brutal da miséria apenas evoluiu em direitos constitucionais previstos num estado social que nunca funcionou em plenitude. A incúria crescente dos governantes não estimulou a justiça social. A penúria tradicional não foi extirpada, mas sim reformulada porque passou a atingir diversas camadas sociais que, de crise em crise, foram engrossando a lista de novos pobres em tudo diferentes daqueles que piedosamente nos ensinaram a respeitar.
Portugal abriu-se ao mundo e novos horizontes foram rasgados.
A Europa recebeu-o, posicionando-o numa periferia subalterna que o agrilhoa.
E ao colocar-se no mundo a voracidade económica globalizou-o.
E a escassez foi massificada, a falta de recursos implantada, o acesso ao trabalho restringido.
A mundialização fez da pobreza a reificação dos excluídos, a maior indignidade banalizada.
Maria José Vieira de Sousa
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