sexta-feira, 19 de outubro de 2018

A HORA IMPLACÁVEL





Um dia o encontro é inevitável.
Enfrentamo-nos.
Eu e a minha imagem.
Eu e a ideia que tenho de mim próprio.
Eu como avaliador independente do que aconteceu comigo durante estes anos todos e ele, o que fica no reflexo, irónico e desafiador, tímido e assustado, a olhar-me.

Desta vez, reúno toda a coragem e, olhando-me de leve pelo espelho, penso:
Estás velho, companheiro.
Penso isto reparando no cabelo mais branco, mais ralo, mais fino.
Penso isto por causa dos vincos que saem das asas do nariz, das rugas à volta dos olhos, da barbela que a barba já não disfarça, das pálpebras amparadas pelas pestanas.
Sorrio e a imagem não melhora. Muda, apenas.
De ligeiramente irónica, tímida, desafiadora e assustada a um tempo, amacia-se, cobarde, tenta a simpatia. Penso: Estás velho, companheiro, mas és um tipo simpático.

Ainda tens alguma saúde, ainda tens prazer na vida.
Como és guloso, velhadas!
Como ainda gostas de olhar para a juventude, de apreciar um bom jogo de ancas, um rosto alegre, novo e bonito. Como, amigão, ainda te pula o pé para a dança, como gostas de rir com uma qualquer piada, como, sensual e devasso, ainda imaginas orgias, ainda pensas que, felizmente, ainda há quem goste de gente de mais idade.

Insulto-te em pensamento e tu respondes com agressividade mesmo sem palavras.
Não vamos a lugar algum com este diálogo, monólogo, solilóquio!
Fica por aí na tua idade e finge que não me conheces.
Vou fazer o mesmo e vou esquecer que te olhei, hoje, com olhos de ver.
Encolhemos ambos os ombros e eu tento rir-me para não ver os teus olhos encherem-se de lágrimas.


EDGARDO XAVIER
in, LOENGO





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