terça-feira, 10 de outubro de 2017

Servidão Humana





Servidão Humana, publicado em 1915, é um dos romances mais emblemáticos do século XX e a obra-prima de Somerset Maugham, conta a história de Philip Carey, alter ego do autor na sua juventude ( o autor confessou que a escrita de Servidão Humana serviu para se libertar de vários demónios pessoais), dividido entre o fervor religioso da família e o desejo de liberdade que os livros e os estudos lhe dão a conhecer. 

Na sua ânsia por independência e aventura, Philip sai de casa em busca de uma carreira como artista em Paris. Mas os seus planos vão ser postos em causa quando se apaixona perdidamente pela mulher que mudará a sua vida para sempre. Philip vê-se perdidamente apaixonado por Mildred, uma mulher que se pode dizer ser quase desprezível e desinteressante, da qual não se consegue libertar e pela qual contraria o seu eu mais racional incontáveis vezes.
O que nos mostra que existe em cada indivíduo uma dicotomia interior entre o seu carácter racional e os seus impulsos irracionais, ou seja, os seus desejos mais primários, que levam à busca do prazer imediato, pelo que ficará sempre a questão:
Conseguirá um ser humano alcançar um nível de consciência tal que lhe permita ser dono das suas próprias paixões, e não escravo delas? 

É uma viagem às profundezas da alma humana, às catacumbas do conservadorismo britânico e às razões mais remotas da construção que fazemos da infelicidade.
Philip viveu em função da liberdade até se deixar escravizar por ela. 
A vida só poderia ser vivida de forma absolutamente livre. Essa seria a sua condenação.
Relato inigualável sobre o poder do desejo e da sede de liberdade do homem moderno, Servidão Humana coloca-nos friamente perante a nossa própria visão da vida, as nossas dúvidas e o poder transformador das decisões.


Philip Carey, é um jovem que nasce com uma deficiência física ( um pé boto) e  fica órfão com 9 anos. Criado pelo o seu tio e padrinho, vigário de Blackstable, irá iniciar uma longa e dolorosa peregrinação que nos levará consigo ao longo do seu desenvolvimento físico e emocional. A sua deformidade em muito lhe irá dificultar a vida. Servirá de molde "deformador" de carácter, mas devido a ela irá adquirir o poder da introspecção através da qual desenvolverá a sua intensa apreciação da beleza, a sua paixão pela arte e pela literatura, e o seu interesse pelo espectáculo da vida.
O ridículo e o desprezo de que foi vítima levam-no a fechar-se sobre si mesmo mas, nas palavras do próprio autor, fazendo desabrochar aquelas flores que jamais perdem a fragrância.

"Ansiava por aventuras e sentia-se ridículo por não ter ainda, na sua idade, experimentado aquilo que a ficção lhe ensinara ser a coisa mais importante da vida...Possuía, no entanto, o dom infeliz de ver tudo como era na verdade, e a realidade diferia terrivelmente do ideal dos seus sonhos.
Não sabia como é vasto, árido e escarpado o país que o viajante da vida tem de atravessar para poder aceitar a realidade. É uma ilusão pensar que a mocidade seja feliz, uma ilusão daqueles que a perderam. Os jovens sabem que são miseráveis, pois alimentam os seus falsos ideais que lhes foram incutidos e todas as vezes que entram em contacto com o real sentem-se magoados e contundidos. Dir-se-ia serem vítimas de uma conspiração. os livros que lêem, livros ideais pela necessidade de selecção, e a conversa dos mais velhos, que olham para o passado através de uma nuvem rosada do esquecimento, preparam-nos para uma vida irreal. São obrigados a descobrir por si próprios que tudo o que leram e tudo o que lhes ensinaram é mentira, pura mentira. Cada nova descoberta é mais um prego que lhes fixa o corpo à cruz da vida. O estranho é que as próprias pessoas que sofreram esses amargos desenganos trabalham inconscientemente, movidas por irresistível força íntima, para criar essa mesma atmosfera." 

Servidão Humana é um romance sobre o ser humano que pensa sobre a sua existência. 
Sobre quem faz uma viagem diária pelo auto-conhecimento, a maior parte das vezes tortuosa.
De quem procura um modelo pelo qual reger o seu comportamento, e justificar tanto a sua conduta geral como as suas acções particulares.

Liberdade e felicidade são dois conceitos frequentemente incompatíveis; somos livres de procurar as situações mais gratificantes possíveis; isso leva-nos, no entanto, a uma busca interminável em que acaba por se transformar a própria vida.
A liberdade de procurar ser feliz faz com que a procura se eternize. 
E quase nos esquecemos de viver.
O livro demonstra tão bem a forma como o ser humano precisa de ser servo. 
E se não tem um “senhor” a quem dedicar essa servidão, então torna-se servo dele próprio.
Philip tornou-se servo da sua própria liberdade, portanto, das suas próprias decisões, tantas vezes escravizadoras que o conduziram à pobreza, à desgraça; à infelicidade.

"Nada mais degradante do que as contínuas preocupações com os meios de subsistência. As pessoas que desprezam o dinheiro só me inspiram desdém. São hipócritas ou idiotas. O dinheiro é como que um sexto sentido, sem o qual não podemos usar de modo completo os outros cinco. Sem um rendimento decente, metade das possibilidades da vida ficam perdidas para nós. O único cuidado que se deve ter é não pagar mais de um xelim pelo xelim que se ganha. Há quem diga que a pobreza é o melhor aguilhão para o artista. Esses nunca lhe sentiram a ponta nas carnes. Não imaginam quanto a pobreza rebaixa. Expõe-nos a humilhações sem fim, corta-nos as asas, corrói-nos a alma como um cancro. Não é riqueza o que se pede, mas o necessário para manter a dignidade, para trabalhar sem embaraços, ser generoso, franco e independente. Lamento de todo o coração o artista, escritor ou pintor, que depende inteiramente da sua arte para viver."

A grande questão, posta por Cronshaw a Philip no início do livro foi:
Qual o sentido da vida?
Comparou o sentido da vida a um tapete persa...em que cada um faz o seu próprio desenho...
Talvez o sentido da vida se encontre algures entre o amor e a liberdade...


Na parte final do livro, finalmente, Philip confronta-se com ele mesmo e não com o seu futuro. Ao mesmo tempo dá conta da realidade social que o rodeia – da miséria com que se vive na Londres civilizada do século XX.
O grande problema de Philip era “a paixão de viver no futuro”; o futuro e a liberdade por oposição ao amor e ao presente. Estas duas dualidades resumem os conflitos emocionais de Philip e, talvez, os grandes conflitos de qualquer alma humana. 

"Pensando na longa odisseia do seu passado, aceitava-a alegremente. Aceitava a própria deformidade que tão dura lhe fizera a vida. Sabia que ela lhe deformara também o carácter, mas percebia agora que, graças a ela adquirira aquele poder de introspecção que tanto prazer lhe dava. Sem isso, jamais possuiria a sua aguda apreciação da beleza, a paixão da arte e da literatura, o interesse no variado espectáculo da vida. O ridículo e o desprezo de que fora tantas vezes alvo haviam-lhe dado vida interior e feito desabrochar aquelas flores que, sabia-o ele, jamais perderiam a sua fragrância. Via depois que, a normalidade era a coisa mais rara do mundo: todos tinham algum defeito de corpo ou de espírito.Lembrou-se de toda a gente que conhecera, via uma longa procissão deformada física e mentalmente, alguns com doença do espírito, fraqueza de vontade ou tendência para a embriaguez. Naquele momento podia sentir por todos eles compaixão. Não eram responsáveis pelas suas acções. A única atitude razoável era aceitar a parte boa dos homens e ter paciência com as suas faltas. (...)
Parecia-lhe que tudo estava ali ao alcance da sua mão. Que toda a sua vida aspirara aos ideais, que os outros com as suas palavras e escritos tinham inculcado nele, e nunca seguira o desejo do seu próprio coração. A sua conduta fora influenciada pelo que julgava dever fazer e não pelo que desejava de toda a alma. Vivera constantemente no futuro, e o presente sempre lhe fugira por entre os dedos.
Os seus ideais?
Pensou no desejo de formar um desenho complexo e belo com as miríades de factos insignificantes da vida: não vira também que o desenho mais simples, aquele segundo o qual o homem nasce, trabalha, casa, procria e morre, era de certo modo o mais perfeito?
Podia bem ser que, abandonar-se à felicidade fosse aceitar a derrota; mas era uma derrota melhor do que muitas vitórias."





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