quinta-feira, 2 de março de 2023

Tão pouco que somos

 




Manhãs há que se despedaçam nas pálpebras,
revolvem a íris,
arrancam-nos do sono, dos seus bancos da névoa,
de qualquer torpor

Estranhas núpcias celebra o homem com a mais 
recôndita vida.
Enlaçados percorremos a noite, derrubamos as suas pontes,
queremos do amor os perfumes,
a trágica magia -

isto é:
lançamos as redes aos mares, somos um peixe de ouro 
que abandona as escamas,
o covil de todos os tráficos, a mutação das cores.

É um estar subterrâneo, liquidamente.
Podíamos adorar as florestas interiores, os labirintos 
da água,
estremecer com os golpes do remador, com as 
rapidíssimas visões no intervalo das luas.

Seguimos a corrente, a flutuação dos líquenes,
olhamos devagar -
serão aqueles sobre a falésia os pescadores de 
estrelas?
Eles, impassíveis,
veneradores do oceano e do Cruzeiro do Sul, eles 
que amaram a cintilação das Pléiades?

Despertamos de repente, ao descerrar das persianas.
Viajámos muito:
uma anémona, corais, um vestígio de náufragos, o nome 
eis quanto trazemos à luz.

Em pleno dia, já não recordamos - esfinges de 
sal e sol envelhecendo - 
tão pouco que somos.


José Agostinho Baptista





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