domingo, 19 de julho de 2020

Da amizade






O episódio fez-me debruçar sobre o conceito de amizade num mundo em que o Facebook decreta que podemos ter... cinco mil! Em 2016, no "The Telegraph", Knapton era mais circunspecto - o utilizador-tipo teria uma média de 155 amigos, mas numa crise só confiaria em quatro deles.

Quanto ao antropólogo Robin Dunbar, declara-nos capazes de ter cinco relações íntimas, 15 amigos próximos, 50 amigos e 150 amigos casuais (simples conhecidos, presumo eu).

Desta vertigem sempre falhada de reduzir a vida a números - lembremos as faixas etárias -, retiro uma palavra-chave - confiar. Na clínica, por vezes, ouço discursos optimistas, "tenho montes de amigos". Costumo retorquir com a pergunta "no ombro de quais pode refugiar-se para chorar às três da manhã?". E os montes ficam reduzidos a colinas anémicas...

Acresce que as pessoas cultivam um discurso que nós, os psis, incentivámos - é necessário alimentar o amor, sob risco de o ver murchar. Não costumam pensar o mesmo da amizade, vista como um dado adquirido de fácil manutenção, jantar aqui, telefonema acolá e tudo marcha sobre rodas. Não parece simplista? Afinal, se a relação azeda, verificamos que a exigência não é inferior à do amor; a traição e o desencanto deixam cicatrizes feias e suspiros, "nunca mais foi a mesma coisa".

Existem amigos de juventude que trilharam outras veredas, brotam de uma esquina e, dois minutos e um abraço volvidos, nos fazem sorrir e pensar que "foi como se estivéssemos juntos ontem". Como outros, desleixados por imposição mais ou menos subtil de um(a) companheiro(a) que os arvora em símbolos de um passado ameaçador. Se a relação termina, cobiçamos números de telefone com teias de aranha e admitimos que "se fosse eu a atender... desligava".

Não renego uma opinião de muitas décadas - a amizade é uma nobre forma de amar. Escreveu Montaigne da que o ligou a La Boétie: "Se me perguntarem porque o amava, sinto que não o posso exprimir senão com a resposta: porque era ele, porque era eu". (Chico Buarque, fascinado, "roubou" a fórmula para compor a canção de amor "Porque era ela, porque era eu").

Tão reconfortante sintonia exige tempo, diálogo, risos; cuidados de jardineiro. 


Julio Machado Vaz




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