quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Mãe, eu quero ir-me embora






Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada 
daquilo que disseste quando os meus seios começaram 
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande, 
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu 
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer. 
.
Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão 
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos, 
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais 
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos 
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia, 
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei 
e o que amei de verdade nunca acordou comigo. 
.
Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre 
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca. 
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez 
não chames pelo meu nome, não me peças que fique — 
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me 
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue 
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito 
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer. 
.
Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem 
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta 
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem. 
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas 
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre 
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias 
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão 
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam 
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.



MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
in, O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES





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