sábado, 27 de outubro de 2018

As Afinidades Electivas






Um dos grandes clássicos da literatura do Séc XX, “As Afinidades Electivas” do escritor alemão Johann Wolfgang Goethe. É um escritor que está na linha de grandeza de Dante e Shakespeare, os grandes do seu tempo. Os três escreveram muito sobre o sofrimento, a paixão, e a loucura.

É um livro simbólico, que questiona a afinidade entre o Mundo Natural e o Mundo Ético, e o conflito entre a Liberdade da Razão e a Necessidade das Paixões, assim como o desfecho motivado pelas reações mútuas, de acordo com as leis da química, e ainda a complexidade da esfera humana e a necessidade da intervenção de uma Força Superior, que quase sempre aparece como Destino, Deus ou o Diabo.

A expressão “Afinidades Electivas” designa na Química um processo no qual os elementos presentes, de acordo com o seu grau de afinidade, podem desfazer as suas ligações nos compostos tradicionais, e entrar num processo de escolha aparentemente “livre” em novas combinações.
É a chamada Tabela de Afinidades na Química, fixada pela primeira vez pelo químico francês Etienne-François Geoffroy em 1718.

No início do livro, seguimos o casal Eduard e Charlotte que, apaixonados desde a juventude, vivem tranquilamente dedicados à sua propriedade e aos projectos que têm para ela. A transformação dos jardins, a construção de um abrigo, a abertura de novos caminhos, marca o ritmo do entretenimento das personagens com a paisagem e o seu ordenamento.
A personagem Charlotte fala sobre o simbolismo das afinidades e das relações cruzadas ao longo do livro de uma forma muito interessante, no plano do romance e da natureza, numa dialética entre ética e natureza, pulsões e razão, paixão e ordem, liberdade e necessidade, demoníaco e sagrado. Uma mulher determinada, activa, ponderada, gestora das finanças do casal, e totalmente dedicada ao casamento, a ponto de enviar a filha do seu anterior casamento para um internato para se dedicar a Eduard. Ambos apaixonados um pelo outro desde novos mas, por influência dos pais casaram-se por conveniência com pessoas mais velhas. Mais tarde, quando já estavam ambos viúvos, casaram-se e dedicaram-se a rentabilizar as suas propriedades e ao casamento com que tanto sonharam.
No entanto, e apesar de a tanto custo conseguirem ficar juntos, a entrada do capitão Otto e da sobrinha de Charlotte, a Ottilie, nas suas vidas, afasta-os irremediavelmente.
O capitão, amigo de Eduard, que se encontrara sem trabalho, é convidado por este a viver em sua casa, ficando responsável pela administração das propriedades.
A vinda do capitão é antevista por Charlotte com receio:
“Nada é mais decisivo, em qualquer situação, do que a intervenção de um terceiro. Vi amigos, irmãos, amantes, esposos cuja relação se modificou totalmente, cuja situação se transformou por completo com o aparecimento, ocasiona o propositado de outra pessoa”. 
Se havia a reserva ao novo hóspede, rapidamente ela se transformou numa presença desejada, reforçando em Charlotte a vontade de trazer também para junto de si Ottilie, sua sobrinha, uma jovem bonita e discreta que vivia num internato.
Mulher astuta, passou a observar atentamente Otto e Ottilie, sendo da opinião de que deveria familiarizar-se o mais rápido possível com o carácter das pessoas com quem tinha de conviver, de forma a saber o que esperar delas, o que nelas pode incentivar, permitir e perdoar. E cedo se apercebeu que Eduard e Ottilie estavam apaixonados um pelo outro e que o seu casamento estava em risco.

Uma das belezas do livro do Goethe, é a relação dos personagens com a música e com a natureza  paralela às suas relações com o amor. Eduard acaba por se apaixonar por Otille e Charlotte pelo capitão. Os dois amores são recíprocos. Mas como poderiam corresponder se Eduard e Charlotte estavam presos ao casamento?
Cada personagem lida com a situação de forma diferente.
Enquanto Eduard se entrega ao amor romântico e quer valer-se de todos os meios da época para anular o casamento, Charlotte pensa que o amor deve ser contido porque não há maneiras de sair de tal situação.
E é em torno dessa questão que toda a narrativa se desenvolve:
É possível anular o casamento?
É possível permitir o amor?
Quem vencerá?
O casamento ou o amor?

Segundo Goethe, ao contrário de Kant, o acontecer das coisas abre-se permanentemente às forças do acaso, aos impulsos imprevisíveis da natureza humana. Por vezes os indivíduos ficam sobre o domínio de forças invisíveis a que não podem resistir e que lhes impõem o caminho; e muitas vezes as suas tendências parecem dominar arbitrariamente um campo que se situa para lá de toda a Lei. Tudo, mesmo aquilo que eticamente é mais anormal, tem uma faceta à luz da qual se apresenta com grandiosidade. Essa grandiosidade vem da fidelidade à paixão e à ordem, e da sua vivência livre para a morte.
E é aqui que Goethe insere na história o casamento e o adultério, não como uma questão social, mas como um problema ético de sentido humano universal explorando os labirintos da alma humana, com uma nova sensibilidade. Goethe diz que os sentidos têm de dominar sempre para serem atingidos pelo destino, isto é, pela natureza moral, que ganha com a morte a sua liberdade.
Só aí a Lei Moral celebra o seu triunfo.
O casamento, o mundo da ordem que assenta na sociedade burguesa, com a força das paixões e do elementar, para inevitavelmente a Lei Moral triunfar através da consciencialização da Culpa, da Renuncia, e da aceitação da Morte como libertação.

Ottilie, tal como Goethe, não renuncia ao amor de uma forma dolorosa…trata-se de uma recusa do amor por uma impossibilidade pessoal. Apaixona-se inocentemente pelo marido da tia Charlotte, Eduard, paixão essa que irá mudar o rumo da história. Charlotte renuncia à sua paixão pelo capitão Otto, mas Eduard não renuncia à sua paixão por Ottilie. No entanto, a gravidez inesperada de Charlotte impede-os de ficarem juntos e Eduard decide ir para a guerra e lutar até morrer.
Nasce um menino, a que Charlotte dá o nome de Otto, e o bebé acaba por morrer afogado quando ia com Ottilie numa barca de regresso a casa.
Este acontecimento trágico, influência o final da história.

Ottilie nasceu para santa e não para esposa ou amante.
É a personagem típica de um purgatório, não inferno, em que tudo é morno e tíbio, mas com desejo, intuição, premonições, sem vontade de afirmação, sem violência de paixões, e mais como um “amor romântico”. Ela não tem conteúdo ético, está para além do bem e do mal. O seu reino é o da bela aparência, da inocência, que a transforma em vítima à espera de celebrar a própria morte, que não é o resultado de uma livre decisão em consequência de conflitos acumulados, mas de uma pulsão inconsciente que a arrasta ao longo do tempo, e que a afasta da esfera social, ética e física do amor, restando-lhe apenas a esfera mítica onde se refugia, onde olha e escreve no seu diário, e se remete a uma mudez voluntária. É a sua tristeza que a torna muda, e a perda voluntária da linguagem é em Ottilie um gesto radical do corte de relações com um mundo e com uma Ordem com os quais ela sempre se relacionara mal. A sua transfiguração deliberada e forçada é a prova de que o amor como paixão, a paixão do amor como absoluto, não é realizável no âmbito dos conflitos próprios da ordem social e humana, de acordo com uma intervenção de natureza superior.

Para Goethe, o amor é a Força Real que faz mover o Universo. Essa Força Interior, a mais sagrada e divina do mundo, confunde toda a Ordem do mundo. A sociedade do romance, aristocrática, burguesa, decadente, artificial, está inconscientemente doente de tédio melancólico.

Há uma frase do personagem Mittler, advogado, que diz:
“Pensais que existo para dar conselhos? É o oficio mais estúpido que alguém pode exercer. Que cada um oiça o seu próprio conselho e que faça o que não pode deixar de fazer. Se tiver sucesso, que se regozije com a sua sabedoria e com a sua sorte, se fracassar, então, eu estarei à sua disposição. Quem se quer livrar de um mal, sabe sempre o que quer; quem quer melhor do que aquilo que já tem, está completamente cego, joga à cabra-cega, talvez apanhe qualquer coisa, mas o quê?
Fazei o que quiserdes, é completamente indiferente! Pouco importa! Já vi fracassar o que era mais razoável, e a triunfar o que era mais absurdo. Não quebreis a cabeça e, se, de uma maneira ou de outra, as coisas correrem mal, não a quebreis também. Nessa altura virei em vosso auxílio.
Todas as tentativas são aventuras.
O que delas poderá advir ninguém pode prever.
Tais condições novas podem ser férteis em felicidade ou em infelicidade, sem que nós possamos atribuir-nos especialmente méritos ou culpas.”
Este diálogo diz respeito a uma dúvida que Charlotte tinha em relação a ceder ou não ao pedido de Eduard de convidar o capitão Otto e a Ottilie para viverem com eles, prevendo que paixões cruzadas poderiam vir a acontecer, o que se confirmou.
Este Mittler é um advogado moralista, conservador, e que é totalmente contra o divórcio. Considera o casamento um fundamento da sociedade moral, o princípio e o fim de toda a civilização, e a infelicidade de cada um não deve ser tida em conta, visto que, na sua opinião, o Ser Humano gosta de ser infeliz e sofre de impaciência. Defende que os esposos têm uma dívida infindável para o resto da vida um com o outro e só a eternidade a poderá saldar. Chega a dizer assim:
“Não estamos nós também casados com a nossa consciência, de que muitas vezes gostaríamos de nos livrar, porque ela é para nós mais incómoda do que um marido ou uma esposa poderiam ser?”

O Conde e a Baronesa, personagens mais liberais e a favor de viver o amor quando ele surge sem desperdiçar a vida com quem não os faz felizes, são dois personagens mais liberais, esclarecidos, de mente mais aberta, que acabam por se casar a meio da história. Defendem que os Seres Humanos gostam de imaginar as coisas terrenas, e sobretudo, os laços matrimoniais como algo de eterno, romanceado e fantasioso. Dizem que todo o casamento devia ser celebrado apenas por um período de cinco anos, sendo esse espaço de tempo suficiente para aprender a conhecerem-se, incompatibilizarem-se e, se for o caso, reconciliarem-se. As atenções aumentariam à medida que se aproximasse o prazo para a rescisão, o que acabaria por tranquilizar e conquistar a parte descontente, e teriam uma agradável surpresa quando, decorrido o prazo, verificassem que ele já tinha sido prorrogado tacitamente por mais cinco anos.

Otto, o capitão, também tem uma frase interessante:
“ Separa da tua vida tudo o que é negócio. O negócio exige seriedade e rigor; a vida, arbitrariedade. O negócio requer a mais pura lógica; na vida, a inconsequência faz muitas vezes falta, tem mesmo um certo encanto e alegria.
Se estiveres seguro nos negócios, mais livre podes estar na vida. Se misturares ambos, o que é seguro será arrastado e anulado por aquilo que é livre.”

Charlotte e o seu marido Eduard, quando falavam de afinidades químicas, em termos de minerais e de terra, fazem um diálogo bastante interessante:
“ Aqui trata-se apenas de terras e de minerais. Mas o Homem é um verdadeiro Narciso: gosta de ver a sua imagem em tudo. Aquilo que o azougue é para o espelho, julga ele ser para o Universo. É assim que ele trata tudo o que encontra, à exceção de si próprio: tanto a sua sabedoria como a sua loucura, a ua vontade como o seu capricho, confere-os aos animais, plantas, aos elementos e aos deuses.
O que se entende aqui por Afinidades?
Em todos os seres da natureza, notamos que há neles uma relação consigo próprios. Só depois de se estar de acordo quanto ao que é conhecido, se pode em conjunto, caminhar em direção ao que é desconhecido. Imagina a água, o óleo, o mercúrio: aí encontrarás uma unidade, uma coesão das suas partes. E esta união nunca a abandonam, a não ser pela força. Quando essa força é eliminada, voltam a unir-se. As gotas da chuva juntam-se e formam correntes; o mercúrio, quando separado em pequenas esferas, volta a unir-se. Esta atração pura que a fluidez torna possível, manifesta-se sempre na forma de Esfera.
Tal como cada Ser tem uma atração por si próprio, também terá em relação a outros Seres, e essas relações serão diferentes, como diferente é a natureza dos seres. Nuns casos encontrar-se-ão como amigos que se juntam, se unem, sem modificarem o que quer que seja um no outro, tal como o vinho se mistura com a água.
Outros, pelo contrário, persistem em manter-se estranhos lado a lado, e não se unirão, nem por mistura nem por fricção mecânicas; tal como o óleo e a água que, agitados e misturados, um instante depois voltam a separar-se.
Isso faz-me lembrar das pessoas que um dia conhecemos e dos meios sociais onde vivemos, em que as massas se defrontam nas diversas condições sociais, nas profissões, na nobreza, no Estado Militar e Civil, em que uns se misturam e outros nunca s unem.
No entanto, tal como estes que estão ligados por costumes e leis, também no mundo químico existem mediadores para ligar o que mutuamente se repele. É assim que ligamos a água com o óleo, com um sal alclino.
Aquelas substâncias que, ao encontrarem-se, se apropriam rapidamente uma da outra e se determinam mutuamente, apelidamo-las de afins. Essa afinidade é bastante visível nos alcaloides e nos ácidos, os quais, embora se oponham uns aos outros, se atraem ou se ligam de forma mais marcada, se modificam e, em conjunto, formam um novo corpo.
O calcário, revela por todos os ácidos uma grande inclinação, um desejo pronunciado de união.
Não se trata de uma afinidade de sangue, mas sim uma afinidade de espírito ou de alma. É precisamente desta forma que entre os Seres Humanos podem surgir amizades profundas, visto que qualidades opostas atraem-se e tornam possível uma união mais íntima. (…)
Os casos mais complexos são os mais interessantes.
Só através do conhecimentos dos vários graus de afinidade, ficamos a conhecer as relações mais próximas e mais fortes, as mais distantes e mais fracas. As afinidades só se tornam interessantes quando provocam separações.
O reunir é uma arte superior, um mérito maior. Um mediador da união, seria em qualquer domínio do mundo, muito bem vindo.
Por exemplo, o que designamos por pedra calcária, é uma terra calcária mais ou menos pura, ligada intimamente a um ácido fraco de forma gasosa. Se introduzirmos um pedaço dessa pedra em ácido sulfúrico diluído, este ataca o calcário e juntos formam o gesso; aquele ácido gasoso fraco, por sua vez liberta-se. Operou-se uma separação, uma nova combinação, ou seja, uma Afinidade Electiva, porque uma relação foi preferida a outra, que uma foi escolhida em detrimento da outra.
E Charlotte responde: eu nunca veria aqui uma escolha, antes uma necessidade natural, ou talvez seja apenas uma questão ocasional. A ocasião faz as relações, assim como a ocasião faz o ladrão, e quando se trata das substâncias naturais, parece-me que a escolha está apenas nas mãos do químico que reúne estas substâncias. Uma vez que elas se encontrem reunidas, que Deus as proteja! No caso presente, apenas lamento o pobre ácido gasoso condenado a ficar sozinho no infinito.
Apenas depende dele, retomou Otto, ligar-se à água e, como fonte de água mineral, servir de leniivo aos que gozam de saúde e aos doentes.
E Charlotte responde: o gesso bem pode falar, está pronto, é um corpo, tem tudo o que precisa, enquanto aquele ser banido pode ter ainda muito que sofrer até encontrar de novo um refúgio.
Por exemplo, o Eduard meu marido é o calcário, e tu Otto és o ácido sulfúrico que atacas o calcário e transformam-se em gesso, e eu sou o ácido fraco gasoso que é banido.
Os Seres Humanos, no fundo estão muitos degraus acima destes elementos, e será conveniente que se voltem novamente para si próprios e que aproveitem o ensejo para refletir bem no valor das escolhas e das afinidades. Conheço um número suficiente de casos em que uma ligação íntima entre dois seres , aparentemente indissolúvel, foi destruída pela intervenção acidental de um terceiro e em que um dos dois elementos , que tinham sido tão unidos, se viu arremessado para longe.
Num caso desses, disse Eduard, os químicos são muito galantes…acrescentam um quarto elemento, para que nenhum deles vá de mãos a abanar. Esses casos são os mais interessantes e os mais curiosos, já que eles podem ilustrar a atração, a afinidade, o abandono, a reunião, que se entrecruzam; quatro substâncias, até então unidas duas a duas, são postas em contacto, abandonam a sua antiga união e iniciam uma nova. Nesta forma de se abandonar e de se agarrar, nesta fuga e nesta busca, crê-se na realidade, ver uma determinação superior. Concede-se a tais substâncias uma espécie de vontade e de escolha, e considera-se a fórmula das afinidades electivas completamente justificada.
Há substâncias que parecem mortas e que, interiormente estão sempre prontas para uma atividade, procuram-se umas às outras, atraem-se, agarram-se, destroem, absorvem, devoram, e, em seguida, depois de se terem unido intimamente, manifestam-se outra vez, sob uma forma renovada, nova, inesperada. Só então se lhes atribui uma vida eterna, até mesmo sensibilidade e entendimento, pois sentimos que os nossos sentidos mal chegam para as observar devidamente, e a nossa razão mal dá para as apreender.”

Outros personagens passaram pela casa de Charlotte, após a ida de Eduard para a guerra...
O ajudante da Directora do Internato, que era apaixonado por Ottilie foi um deles.
Esta é uma das várias reflexões que faz ao longo do livro:
" Enquanto a vida nos impele, julgamos agir por nós próprios, escolher a nossa actividade, os nossos prazeres; mas, se olharmos mais atentamente, veremos que não se trata senão dos intentos, das inclinações do tempo, nos quais nós somos obrigados a colaborar. e quem é que resiste à torrente que o envolve? O tempo avança e, com ele, ideias, opiniões, preconceitos e caprichos. Quando a juventude de um filho coincide precisamente com uma época de transição, pode ter-se a certeza de que ele não terá nada em comum com o pai. Se este viveu num tempo em que se tinha o gosto de adquirir, de assegurar, de demarcar, de cercar o que se adquirira, e de fazer depender o prazer dessa propriedade do seu afastamento do mundo, aquele procurará a todo o custo expandir-se, relacionar-se, estender-se e abrir o que estava fechado."

Mais tarde, recebem a visita de um Inglês, amigo de Eduard, e que também faz uma reflexão sobre o mesmo assunto:
" Acostumei-me a sentir-me bem em toda a parte, e acabei por achar que não há nada de mais cómodo do que ver os outros construírem, plantarem e preocuparem-se com os assuntos domésticos em meu lugar. Não anseio regressar às minhas propriedades, sobretudo porque o meu filho, para quem eu efectivamente fiz e organizei tudo, a quem eu esperava transmiti-las, com quem eu esperava ainda desfrutá-las, não se interessa por nada daquilo, foi antes para a Índia, para aí, como tantos outros, aplicar a sua vida mais nobremente, ou mesmo para a dissipar.
Despendemos demasiado tempo com preparativos para a vida. Querendo abranger cada vez mais, para vivermos no fim cada vez mais incomodamente.
Quem goza agora a minha casa, o meu parque, os meus jardins?
Eu não, nem sequer os meus, mas hóspedes estranhos, curiosos.
Estamos sempre irrequietos, falta sempre alguma coisa, estamos sempre a instalar-nos para voltar a partir, e se não o fazemos por desejo e por capricho, são as circunstâncias, as paixões, os acasos, a necessidade e tudo o mais que nos obrigam a tal.
Creio agora estar no bom caminho, porque me considero ininterruptamente um viajante que a muito renuncia para muito desfrutar."

O livro é uma tragédia sobre a impraticabilidade do amor que condena os amantes ao desencontro por razões morais, sociais e... cósmicas. O sucessivo adiamento da vivência amorosa é imposto pela conjuntura tirânica que no início do século XIX preside à mentalidade eminentemente aristocrática defensora do casamento entre classes, mas acima de tudo apologista da instituição do matrimónio como sagrada (embora esta posição seja trabalhada pelo autor por forma a colocar em evidência a hipocrisia característica do apregoado mas não praticado).
Por isso a manifestação de um desejo de união só porque se ama, é rejeitado como uma espécie de sacrilégio.

Não mencionei o vocábulo “tragédia” em vão... com efeito, o elemento trágico interfere de forma definitiva e paira na atmosfera, por vezes aparentemente idílica do romance, desde o seu início com claros sinais premonitórios de acontecimentos dúbios a vir.
Goethe escreve, então, uma tragédia sob a forma de romance o que não deixa de ser curioso tendo em consideração a admiração do autor pela tragédia grega, sendo que ele próprio elaborou por exemplo uma Ifigénia em Táurida tida como uma das incontornáveis tragédias da literatura alemã.

Uma convivência a quatro converte-se rapidamente não na destruição de um lar como seria de esperar, mas na transição (nunca atingida na sua totalidade) do que se julgava querer para o que indubitavelmente se quer. A tragédia reside na circunstância de que o encontro destas almas gémeas não é durável porque lhes é vedado o acesso à concretização do amor. Um silêncio cúmplice está subjacente à estranha aceitação do adultério debaixo do mesmo tecto outrora partilhado por um casal que pensava ser feliz. A “troca” é quase natural até que o mundo exterior se dá conta do perigo que ronda aquela casa e os amantes se afastam, momento a partir do qual se inicia o caminho descendente a percorrer pelas personagens e exposto na segunda parte do livro.
Uma estranha força que me ocorre apenas designar de “cósmica” apaga a esperança no triunfo do amor, daí talvez o final místico da obra que mais não é do que, provavelmente, a vitória de uma outra forma de amor... e afinal, o amor não morre com as pessoas.

O final do livro, como todos os finais de Goethe, suscita inúmeras possibilidades de reflexão sobre a natureza, sobre o ser humano e sobre a civilização.
Tal como acontece em "Os sofrimentos do jovem Werther", e em "Fausto".
Neste livro, ao contrário dos outros, a escrita é mais fluída, e a atmosfera mais tranquila, harmoniosa.

"E assim descansam os dois amantes 
um ao lado do outro. 
A quietude paira sobre sua morada; 
anjos serenos, seus afins, 
olham-nos do espaço. 
E que momento feliz aquele 
em que, um dia, 
despertarão juntos!"



(Epílogo de Afinidades Eletivas)



“As Afinidades Electivas”, obra escrita em 1809, é apontada como um espelho do matrimónio do próprio Goethe, sendo um convite a olhar o casamento e as suas forças contrárias: o divórcio e a infidelidade.

Houve na vida de Goethe, um nome predominante de mulher.
Coincidência, acaso ou adoração?
Que influência teria exercido sobre o grande génio o nome "Charlotte"?

Na vida real, ele amou quase sempre uma Charlotte. 
Influência da própria mulher ou do nome?

Charlotte Kestner e Charlotte von Stein passaram por sua vida, como amantes adoradas e musas inspiradoras.
Na primeira, temos a Charlotte do apaixonado "Werther"; na última, a sublime Charlotte, heroína de "Afinidades Eletivas". 

Na sua imensa bagagem literária, vamos encontrar sempre "Charlotte", sublimada, exaltada, dignificada na beleza de sua prosa, no lirismo apaixonado de suas rimas.
Mas qual a que lhe inspirou o amor, que transbordava de seu pensamento?
Todas, ou cada uma por sua vez?
Teria havido aquela, que nenhuma outra igualava, a insubstituível?

Em Charlotte von Stein, muito mais velha que ele, com muitos filhos, teria sido a mulher ou o nome, que o atraiu? "O belo talismã de minha vida", como ele próprio a chamava. Entre todas as beldades da corte, para ele, foi ela, sem dúvida, a mais sedutora. A primeira vez que a viu tinha apenas, 26 anos e os 33 anos deliciosos dessa bela mulher, espirituosa, culta, delicada e ambiciosa, acenderam, na alma do jovem, o fogo da paixão.

A verdade é que, em Weimar, Charlotte sentiu-se profundamente ferida e decepcionada, ao descobrir a ligação de seu amigo com Cristiana Wulpius, de origem modesta, mas que adorava o poeta; furiosa, deixou a cidade, indo para uma estação balneária, não sem deixar-lhe uma carta, cheia de recriminações, a qual só foi respondida algumas semanas depois, quando o amigo lhe deu algumas explicações ponderadas, fazendo-a ver que ele não podia abandonar Cristiana.

Goethe temia afrontar a ira de sua amiga e a sociedade de Weimar; assim é que, vários anos, apresentou a "doce Cristiana" como governanta de sua casa. 
Só se resolveu a levá-la ao altar, quando, em 1806, achando-se gravemente doente, deveu a vida quase que exclusivamente aos cuidados incansáveis da dedicada jovem. 

Como todos os círculos sociais, o de Weimar sentia também o mórbido prazer de dar curso à maledicência humana, e essa própria elite, que atacara a ligação ilícita dos dois, não aceitou, do mesmo modo, com agrado, aquele casamento "desigual".

Poucos meses antes da sua morte, Charlotte escreve a Goethe, no dia do seu aniversário, como um adeus velado:
 "Mil venturas e bênçãos pelo dia de hoje. Possam os bons espíritos influir para que tudo, de belo e bom, lhe seja conservado, meu caro amigo. Aceite meus votos de um futuro livre de cuidados; para mim, porém, só desejo, caro, mui caro amigo, sua afeição à minha vida, que se extingue". 

Charlotte von Stein (nascida von Schardt).
Momentos antes de morrer, expressou a vontade de que não desejava que seu corpo passasse pela casa de Goethe: queria poupar-lhe esse sofrimento.



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