quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Dia de Descanso





Hoje reservo o dia inteiro para chorar 
É o domingo decadente    em que muitos 
esperam pela morte de pé 
É o dia do sarro que vem à boca da mediocridade 
circular    dos gestos que andam disfarçados de gestos 
dos amores que deram em estribilhos 
das correrias pederásticas para o futebol em calções 
mais o melhor fato    e a mesquinhez nacional dos 10% 
de desconto em todo o vestuário 

E choro   choro   porque a coragem 
não me falta para tudo isto e assisto 
na nega de me ceder ao braço dado 

Precisarei de um cansaço mas 
lá estavam espertas 
as mil e não sei quantas lojas abertas 
para mo vender! 

Mas hoje é domingo 
Lá está o chão reluzente de martírio 
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter 
já nem o amor que suponho me dá o sonho de ser 

E choro de coragem    isto é 
as lágrimas hão-de cair sêcas nas minhas mãos 
Falo cristalinamente sozinho 
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair 
algum acaso    isto é 
o eco, de qualquer drama vazio 

Espero como quem espera 
o momento de posse entre dois ponteiros 
de torneira em torneira nas súplicas febris 
em que me trago aquecendo as mãos nas orelhas 
para as não cortar em gritos 
Espero e entretanto o mundo não se cansa 
de me dar drogas para dormir e criar 
novelos de lã à volta do coração 
Não me lastimo grito 
Quero que estas correntes da boca se tornem úteis 
e não ficar pr'aqui moldado estátua 
em verdete de ser chorado 
A tropeçar onde não há perigo 
com calçado duro a pisar as nuvens 
neste tão estreitado mundo 

Choro hoje o dia todo e lembro-me    o que disso 
podem pensar os homens das ideias revolucionárias 
e choro 
choro de coragem e para os microfones da revolução 
As lágrimas e a revolução são como a morte de cada um 

Cá do meu alto não se desce por escadas    mas por desalento 
por amor ao chão de terra que me pisam 

e choro neste dia burguês fazendo cá a minha revolução 
alheia às tais guerras de papel químico 

Espero sem esperança mas certo 
do que espero como de saber que um homem 
não chora e choro 

Choro hoje porque reservei o dia inteiro para chorar 
porque é domingo e o que espero não é a morte de pé 
talvez a coragem de que o mundo não esteja certo 

Uma vez era ainda pequeno 
chorei ao ver um prédio desabitado 
Moro nele mesmo aos domingos e rio-me 
das revoluções que ameaçam de pôr ou tirar-me as janelas 
Sei que nada adianta 
Vi o prédio desabitado era eu muito pequeno 
Nê-le me reservo hoje o dia todo à liberdade de me dar 
ao choro da coragem de esperar 

E espero porque mesmo que o mundo fique desabitado 
um grito afinal terá assim o seu eco 

Enquanto durar este domingo vou chorar gradualmente 
até que a noite me venha 
cobrir o corpo de abafo quente 

Então sairei à procura da prostituta cega 
para lhe contar junto ao peito 
como as pessoas se comportam aos domingos 


Fernando Lemos
in, 'Teclado Universal' 






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