sexta-feira, 31 de agosto de 2018

O Cego





Queria inventar uma história para ti, disse o cego alisando-lhe a mão.
Já procurei em todo o meu escuro e o que aparece é um eco muito repetido de coisas que já todos disseram, contaram, inventaram.
Posso falar-te de mim.
Ainda vens longe e já sei que vens. Escuto os passos e sei quem os dá. Cheiro-te quando entras para confirmar ou para acabar a imagem que me nasce no cérebro.
Sinto agora bem melhor do que quando via. O pior de mim foi aprender a não ver. Depois de tiradas as vendas continuei perdido. Adiantei as mãos como fiz desde que soube que teria de ficar cego por um tempo. Muito do que tocava não tinha recorte nem nome.
Depois, sim. Toco e toda a força de sentir me passa aos dedos. Tessitura, calor e humidade. Se acontece saber logo o que pode ser, sinto o odor e muitas vezes evoco o sabor até de beijos antigos que sepultei onde só com mil regressos acho.
Passei a associar tudo, a conhecer as sequências, a registar os mínimos detalhes. Reside nisso a cor que fui esquecendo. Diz-me vermelho e ver-me-ás tenso, preocupado, receoso. Temo muito o que, como o vermelho, grita, aparece sem aviso e se impõe. Em boa verdade já o transformei em sons e força. Temo-o por ser cor de fogo, de paixão, de sangue. Já o branco, porque nada me diz, me deixa indiferente enquanto o negro, cor da minha vida desperta, me relaxa, úbere, como se fosse o mapa do que há no meu universo de vozes, silêncios, aragens.
Beijas-me e a minha língua te lê por inteiro.
Hoje sei que estás porque prescindes dos meus olhos.
Estás por amar-me sem eles.


Rogério Edgardo Xavier





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