domingo, 24 de abril de 2016

Eve Ensler: Embrace your inner girl





Namaste. Bom dia. Estou muito feliz por estar aqui na Índia. Tenho pensado muito sobre o que aprendi nesses últimos 11 anos com a organização V-Day e os "Monólogos da Vagina," viajando pelo mundo, reunindo mulheres e meninas de todo o planeta, tentando acabar com a violência contra as mulheres.

Hoje quero falar sobre essa pequena célula, ou grupo de células, que há em cada um de nós. Gostaria de chamá-la de célula menina. Está tanto nas mulheres quanto nos homens. Gostaria que vocês imaginassem que esse grupo de células é o núcleo da evolução de nossa espécie e da continuação da raça humana.

Gostaria que imaginassem que em algum ponto da história um grupo poderoso que tentava controlar o mundo descobriu que a supressão dessa célula, a opressão desse grupo de células, a re-interpretação dessas células, o desgaste dessas células, fazer com que acreditemos que essas células são fracas e que a aniquilação, a erradicação, a destruição, a redução dessas células, basicamente iniciou o processo de matar a célula menina; a propósito, foi o patriarcado.

Quero que imaginem que a menina é um chip no imenso macrocosmos da consciência colectiva. E é essencial equilibrar, repensar, e balancear o futuro de todos nós. Gostaria então que imaginassem que essa célula menina é a compaixão, é a empatia, é a própria paixão, é a vulnerabilidade, é a sinceridade e a intensidade, e também a associação, o relacionamento, e é a intuição.

Vamos ver como a compaixão pode transmitir sabedoria, e como a vulnerabilidade pode ser a nossa maior fortaleza, e que as emoções têm uma lógica inerente, que levam a acções radicais, apropriadas e salvadoras. Vamos lembrar que nos foi ensinado exactamente o oposto pelas forças dominantes, que a compaixão turva o pensamento, que atrapalha, que a vulnerabilidade é fraqueza, que não devemos seguir as emoções, que não devemos levar nada para o lado pessoal; esse é um dos meus favoritos.

Acredito que o mundo tenha sido criado para não ser feminino. Como criamos os meninos? Como é ser um menino? Ser um menino é essencialmente não ser uma menina. Ser um homem é não ser uma menina. Ser uma mulher é não ser uma menina. Ser forte significa não ser uma menina. Ser um líder significa não ser uma menina. Eu realmente acredito que há tanto poder em ser uma menina que precisamos treinar as pessoas a não serem meninas.

Queria também dizer que a ironia, claro, é que negar a menina, suprimir a menina, suprimir a emoção, recusar o sentimento, nos trouxe até aqui. Passamos a viver nesse mundo onde as mais extremas formas de violência, a pobreza mais assoberbante, o genocídio, os estupros, a destruição da Terra, tudo está completamente fora de controle. E porque suprimimos as nossas células meninas, suprimimos a nossa meninice, não percebemos o que está a acontecer.

Por isso não nos é cobrada uma resposta adequada ao que está a acontecer. Gostaria de falar um pouco sobre a República Democrática do Congo. Foi um momento decisivo na minha vida. Passei bastante tempo lá nos últimos três anos. Sinto como se já tivesse visto de tudo no mundo, muita violência.

Basicamente vivi em vários campos de estupro nos últimos 12 anos. Mas a república democrática do Congo foi realmente o momento decisivo na minha alma. Passei um tempo num local chamado Bukavu, num hospital chamado Panzi, com um médico que pode ser considerado um santo. Seu nome é Dr. Denis Mukwege. Para quem não sabe, o Congo está em guerra há 12 anos, uma guerra que já matou aproximadamente seis milhões. Estima-se que entre 300 mil a 500 mil mulheres foram violentadas lá.

Nas minhas primeiras semanas no hospital Panzi eu conversei com mulheres que se reuniam todos os dias para me contar as suas histórias. Suas histórias eram tão brutais e avassaladoras, tão contrárias à definição de existência humana, que eu fiquei totalmente arrasada. Eu vou contar-vos porque fiquei tão arrasada ao ouvir as suas histórias de meninas cujas partes íntimas foram violadas, com armas e baionetas e outras coisas enfiadas nelas criando, literalmente, buracos dentro delas onde apenas xixi e cocó deveriam sair.

Ao ouvir as histórias de mulheres de 80 anos que eram amarradas e acorrentadas, e hordas de homens vinham periodicamente para estuprá-las, e tudo isso em nome da exploração económica, do roubo de minérios para que o Ocidente possa aproveitar. A minha mente ficou absolutamente arrasada.

Mas para mim essa devastação na verdade me deu forças, e eu me senti encorajada como nunca antes. Essa devastação, que desobstruiu a minha célula menina, esse tipo de ruptura intensa no meu coração me transformou numa pessoa mais corajosa e muito mais inteligente como jamais havia sido antes.

Quero aqui dizer que acho que os poderosos sabem que os sentimentos realmente interferem na construção de impérios. Os sentimentos interferem na massa do planeta, na escavação da Terra, na destruição das coisas. Eu lembro-me quando o meu pai, que era muito violento, me espancava. E ele dizia, enquanto me espancava, "Não chore. Não se atreva a chorar." Porque o meu choro de certa forma expunha a sua brutalidade. Mesmo durante o espancamento ele não queria ser lembrado do que estava a fazer.

Só sei que nós sistematicamente aniquilamos a célula menina. Nós a aniquilamos tanto nos homens quanto nas mulheres. E acho que de certa forma fomos muito mais severos com os homens na destruição de suas células meninas.  Eu vejo como os meninos são criados, em qualquer parte do mundo, para serem fortes, resistentes, para se distanciarem de sua ternura, para não chorarem. Uma vez em Kosovo eu percebi, ao ver um homem romper em choro, que as balas na verdade são lágrimas endurecidas, que quando não permitimos aos homens acesso à sua menina interior, a sua vulnerabilidade, a sua compaixão, ao seus corações, eles se tornam embrutecidos, ofensivos e violentos.

Nós ensinamos aos homens que eles devem parecer seguros quando estão inseguros; que devem fingir saber tudo mesmo quando não sabem, ou não teríamos chegado a esse ponto, não é mesmo? Fingindo que não estão abalados quando estão. Vou contar uma história engraçada. Quando vinha para cá, fiquei a andar de um lado para o outro no corredor do avião. E vários homens, pelo menos uns 10, estavam sentadinhos a assistir a filmes água-com-açúcar. Estavam todos desacompanhados, e eu pensei: "É a vida secreta dos homens."

Como eu disse, já viajei para vários países, e se fazemos o que fazemos com a menina dentro de nós, é estarrecedor pensar no que fazemos com as meninas em todo o mundo. Ontem ouvimos a Sunitha e a Kavita a falar sobre o que fazemos com as meninas. Eu gostaria apenas de dizer que conheci meninas com marcas de facadas e queimaduras de cigarros, que são tratadas como se fossem cinzeiros. Já vi meninas tratadas como lixo. Já vi meninas que foram espancadas pelas suas mães, e irmãos e pais e tios. Já vi meninas na América deliberadamente a passar fome, a tentar ser a versão idealizada delas mesmas.

Vi que magoamos e controlamos meninas, que as mantemos analfabetas, ou fazemos com que se sintam mal por serem inteligentes. Nós as silenciamos. Nós fazemos com que elas se sintam culpadas por serem inteligentes. Fazemos com que se comportem, que sejam suaves, não sejam muito intensas. Nós as vendemos, nós as matamos ainda no embrião. Nós as escravizamos. Nós as violentamos. Estamos tão acostumados a tirar das meninas tudo aquilo que as torna humanas que acabamos por torná-las objectos, transformando-as em mercadorias.

A venda de meninas é uma realidade implacável em todo o mundo. E em muitos lugares elas valem menos que cabras e vacas. Mas eu também gostaria de dizer que, se uma em cada oito pessoas no planeta é uma menina com idade entre 10 e 24 anos, elas então são a chave, não só no mundo em desenvolvimento como no mundo todo, para o futuro da humanidade. E essas meninas enfrentam uma série de desvantagens que as mantêm onde a sociedade quer que elas estejam, incluindo a falta de cuidados médicos, de educação, de comida saudável, de participação na força de trabalho. O fardo dos afazeres domésticos em geral recai nas meninas e nos irmãos mais novos. Isso serve para assegurar que elas nunca superarão essas barreiras.

É o estado, a condição das meninas que, como acreditam a menina dentro de nós e todas as meninas do mundo, vão determinar se a espécie sobreviverá. Eu gostaria de sugerir, já que, após conversas com meninas, eu acabei de escrever um livro "Sou uma Criatura Emocional: A Vida Secreta de Meninas em Todo o Mundo", então depois de conversar com meninas por uns cinco anos, uma das coisas que percebi como uma verdade universal é que o verbo que é imposto a todas as meninas é o verbo "agradar". Meninas são treinadas para agradar. Eu quero mudar esse verbo. Quero que todos nós mudemos de verbo. Quero que o verbo seja "educar", ou "activar" ou "ocupar-se", ou mesmo "confrontar", "desafiar" ou "criar". Se ensinarmos às meninas a mudar de verbo, nós vamos fortalecer a menina dentro de nós e a menina dentro delas.

Agora quero contar algumas histórias de meninas em várias partes do mundo que fortaleceram a sua menina interior, que abraçaram a sua menina interior apesar de todas as circunstâncias contrárias: 

Conheço uma menina de 14 anos na Holanda que quer pegar um barco e fazer a volta ao mundo sozinha.

Há uma adolescente que recentemente achou que precisava tatuar 56 estrelas no lado direito do rosto.

Há também essa menina, Julia Butterfly Hill, que passou um ano a morar numa árvore porque ela queria proteger os carvalhos.

Há essa menina que conheci há 14 anos no Afeganistão, que eu acabei adoptando porque a sua mãe foi morta. Era uma revolucionária. Essa menina, quando tinha 17 anos, vestia uma burca no Afeganistão, e ia aos estádios documentar as atrocidades contra as mulheres, com uma câmara de vídeo dentro da burca. Esse foi o vídeo que foi transmitido a todo o mundo depois de 11/9 para mostrar o que estava a acontecer no Afeganistão.

Gostaria de falar sobre Rachel Corrie, que era uma adolescente quando se postou na frente de um tanque israelita para pedir o "fim da ocupação." Ela sabia do risco que corria e foi literalmente abatida e atropelada pelo tanque.

E queria falar sobre uma menina que conheci recentemente em Bukavu, que engravidou de seu estuprador. Ela estava a segurar o seu bebé. E eu perguntei se ela amava aquele bebé. Então ela olhou nos olhos do bebé e disse: "Claro que amo meu bebé. Como poderia não amá-lo? É o meu bebé e ele me ama."

A capacidade dessas meninas de superar situações e ultrapassar limites é espantosa.

Há uma menina chamada Dorcas. Conheci-a no Quénia. Dorcas tem 15 anos e tem treino em defesa pessoal. Há alguns meses ela foi abordada na rua por três homens mais velhos. Eles a sequestraram e a colocaram num carro. Com seu treino, ela os agarrou pelo pescoço, deu socos nos seus olhos e conseguiu sair do carro.

No Quénia, em Agosto, eu visitei um abrigo para meninas da V-Day, um abrigo que abrimos há sete anos junto com uma mulher incrível chamada Agnes Pareyio. Agnes foi mutilada quando era criança, sofreu mutilação genital feminina. E ela decidiu, assim como muitas outras mulheres em todo o mundo, que o que aconteceu com ela não aconteceria mais com outras mulheres e meninas.

Durante anos Agnes caminhou pelo vale Rift mostrando às meninas como era uma vagina saudável e como era uma vagina mutilada. Ela salvou muitas meninas. Quando nós a conhecemos, perguntamos o que poderíamos fazer por ela, e ela disse: "Bem, se eu tivesse um Jeep poderia viajar mais rápido." Então demos-lhe um Jeep. E ela salvou mais 4.500 meninas.

Nós perguntamos, "O que mais você precisa?" Ela respondeu: "Agora preciso de uma casa." E há sete anos Agnes construiu o primeiro abrigo V-Day em Narok, Quénia, na zona Masai. Era a casa para onde as meninas fugiam, onde podiam salvar seus clítoris, onde não seriam cortadas, onde poderiam frequentar a escola. Desde que Agnes fundou essa casa, ela já mudou a situação local. Ela se tornou vice-presidente e mudou algumas regras. A comunidade comprou a ideia dela.

Quando estivemos lá ela estava a fazer um ritual de reconciliação de meninas que tinham fugido com as suas famílias. Havia uma menina chamada Jaclyn. Jaclyn tinha 14 anos e morava com a sua família Masai, e havia uma seca terrível no Quénia. As vacas estavam a morrer, e as vacas são bens inestimáveis. Jaclyn ouviu o seu pai a falar com um senhor mais velho que pretendia vendê-la para comprar vacas. Ela sabia que isso significava ser mutilada. Ela sabia que isso significava não ir à escola. Ela sabia que isso significava não ter futuro. E ela sabia que teria que casar com aquele velho, e ela tinha apenas 14 anos.

Como ela tinha ouvido falar do abrigo, um dia ela saiu da casa do seu pai e caminhou por dois dias pela terra Masai. Dormiu com as hienas. Escondia-se à noite. Ela ficava a imaginar que o pai a mataria enquanto pensava na recepção de Mama Agnes, na esperança que ela a receberia quando chegasse ao abrigo. E quando chegou foi recebida. Agnes recebeu-a e deu-lhe amor e protecção. Agnes deu o seu apoio durante todo o ano. Ela foi para a escola e encontrou a sua voz, a sua identidade e o seu coração.

E chegou o momento em que ela teve que falar com o seu pai sobre reconciliação, um ano depois. Eu tive o privilégio de estar presente quando ela e o seu pai se reconciliaram. Nós entrámos naquela cabana, e o pai dela e as suas quatro esposas estavam sentados, e as suas irmãs que também retornavam porque tinham fugido com ela, e a sua mãe verdadeira, que tinha sido agredida por defendê-la contra os mais velhos. E quando o seu pai a viu e percebeu que ela tinha-se tornado uma menina completa, ele abraçou-a e rompeu em lágrimas. E disse: "Tu estás linda. Tu tornaste-te uma linda mulher. Nós não a mutilaremos. E eu dou a minha palavra, aqui e agora, que tampouco mutilarei as suas irmãs."

O que ela disse para ele foi: "Você ia-me vender por quatro vacas, um bezerro e alguns cobertores. Mas eu prometo, agora que terei uma educação, que sempre cuidarei de si, e voltarei para construir uma casa para vocês. E estarei sempre por perto até o fim de suas vida."

Para mim, esse é o poder das meninas. É o poder da transformação.

Eu gostaria de finalizar com um trecho novo do meu livro. E queria fazer isso em homenagem à menina em cada um de vocês aqui. Quero fazer isso por Sunitha. Quero fazer isso pelas meninas que Sunitha falou ontem, as meninas que sobrevivem, que se tornam alguém. Mas quero mesmo fazer isso por cada pessoa aqui, para que valorizem a menina dentro de nós, para que valorizem o lado que chora, o lado que é emocional, o lado que é vulnerável, para que entendam que o futuro é isso.

O trecho é intitulado "Sou Uma Criatura Emocional." Isso porque conheci uma menina em Watts, L.A. Perguntei para as meninas se elas gostavam de ser meninas, e todas elas responderam: "Não, odeio. Não suporto. É muito mau, os meus irmãos é que têm tudo." E essa menina levantou-se e disse: "Eu adoro ser menina. Sou uma criatura emocional!"
Isso é para ela.

"Eu adoro ser menina. Eu sinto o que tu estás a sentir enquanto tu sentes o sentimento anterior. Sou uma criatura emocional. Para mim nada vem em forma de teorias intelectuais ou ideias pré-concebidas. Tudo pulsa através dos meus órgãos e pernas e queimam as minhas orelhas. Eu sei quando a tua namorada está irritada, mesmo quando ela faz tudo da forma que tu queres. Sei quando uma tempestade se aproxima. Posso sentir as vibrações no ar. Sei quando ele não vai ligar. É uma sensação que tenho.

Sou uma criatura emocional. Adoro levar tudo muito a sério. Tudo é muito intenso para mim, a minha maneira de andar, a forma como a minha mãe me acorda, a dor insuportável da perda, a maneira como encaro as más notícias.

Sou uma criatura emocional. Estou conectada a tudo e a todos. Nasci assim. Não digas que isso é negativo, que é coisa de adolescente, que é coisa de menina. Esses sentimentos fazem de mim uma pessoa melhor. Uma pessoa presente. Uma pessoa preparada. Uma pessoa forte.

Sou uma criatura emocional. É uma forma especial de saber das coisas, que as mulheres mais velhas parecem ter esquecido. Eu fico feliz de ainda ter isso em mim. Eu sei quando o coco está para cair. Sei quando a Terra chega a seu limite. Sei que o meu pai não vai voltar, e que ninguém está preparado para enfrentar o fogo. Sei que batons são mais importantes do que parecem, que meninos são muito inseguros, que terroristas são formados, não nascem terroristas. Sei que um beijo pode destruir toda a minha capacidade de decisão.  E sabes que mais? Às vezes é o certo. Nada disso é extremado. É coisa de menina, o que todos seríamos se deixássemos as portas abertas.

Não me digas para não chorar, para me acalmar, para não ser tão exagerada, para ser razoável. Eu sou uma criatura emocional. Foi assim que a terra foi criada, que o vento continua a polinizar. Não há como dizer ao Oceano Atlântico para se comportar. Sou uma criatura emocional. Por que tu deverias magoar-me ou derrotar-me? Eu sou a tua memória. Posso levar-te lá. Nada se diluiu. Nada vazou. Eu adoro, entendes, adoro poder sentir o que tu estás a sentir, mesmo que me matem, mesmo que magoem o meu coração, mesmo que me desvirtuem, ou que me forcem a ser responsável.

Eu sou uma criatura emocional, incondicional, devotada. E eu adoro, repito, eu adoro, adoro, adoro ser uma menina."

Repitam uma vez comigo?
Eu adoro, adoro, adoro ser uma menina!
Muito obrigada.



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