quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O Caçador de Escravos


No Iraque, em 2008, 
com crianças refugiadas nos arredores de Mossul



Aaron Cohen anda pelo mundo 
a resgatar pessoas das malhas da escravatura. 
A vida deste antigo roqueiro 
e consumidor de heroína.


Aaron Cohen reagiu mal quando começaram a apelidá-lo de "caçador de escravos". Afinal, a expressão remetia para os tempos infames da perseguição aos escravos em fuga, nos tempos que antecederam a Guerra da Secessão (1861-1865), nos Estados Unidos. Depois, aceitou-a. Ainda que, nos tempos modernos, os escravos não fossem fáceis de ver, ele encontrava-os por todo o lado.
Cohen começou a sentir-se ele próprio um escravo quando, nos anos 1980, se entregou de corpo e alma à banda rock Jane's Addiction. As drogas, o álcool e as noitadas até de manhã faziam-no sentir um escravo dos excessos. Nascido em 1965, em Orange County (junto a Los Angeles), e filho de uma mãe religiosa e de um pai militar, vivia "obcecado por tocar guitarra e deixar o cabelo crescer".

A fase de rebeldia durou até ao dia em que o cancro da mama diagnosticado à mãe havia anos ameaçou levá-la definitivamente. "De uma forma trágica, a minha mãe estava a dar-me a desculpa perfeita para deixar a confusão das estrelas de rock para trás", reconhece Cohen. Despediu-se da banda e regressou a casa dos pais, onde começou uma nova vida.


HORRORIZADO NO SUDÃO
Matriculou-se num mestrado na Universidade de Vanguard, começou a ter aulas de hebraico e a estudar a Bíblia. Um dia, deteve-se diante da televisão, que passava um documentário sobre a escravatura no Sudão.
"O documentário conseguiu tanto assustar-me como educar-me. A minha nova inspiração começou a tomar forma quando ouvi a professora Barbara Vogel, do Colorado, a exprimir o seu choque perante o conhecimento de que o mais hediondo dos crimes do homem estava a decorrer no Sudão e na Mauritânia. Como todos os professores do quarto ano, ela ensinava aos seus alunos que a escravatura acabara com a Guerra da Secessão."

Os estudantes da professora Vogel tinham reunido o dinheiro suficiente para libertar centenas de escravos. A turma escolhera apoiar a Christian Solidarity International (CSI), uma instituição de caridade sediada em Zurique (Suíça) que liderava as redenções de escravos no Sudão. Ali, comprar a liberdade de um escravo custava uns míseros 50 dólares (37 euros).

Cohen não ficou indiferente e quis ver, com os próprios olhos, o trabalho da CSI. Viajou até ao Sudão, testemunhou a libertação de 600 escravos de etnia dinka, nuer e nuba e colaborou na gravação das entrevistas às vítimas.
"Percebi no Sudão que, como mero indivíduo, eu podia ser uma pequena parte da mudança de que precisávamos. Precisava apenas de fazer com que as outras pessoas vissem o que eu vi."




DE BORDEL EM BORDEL

"Caçador de Escravos - A demanda de um homem pelo mundo para libertar vítimas de tráfico humano" (Livros d'Hoje, 2010) é uma janela para as incursões solitárias de Cohen, pela calada da noite, em territórios de proxenetas e traficantes de droga. No primeiro capítulo, o leitor pode acompanhá-lo numa operação no Camboja, realizada em novembro de 2004, com o intuito de resgatar menores dos bordéis de Siem Reap.
Na pele de um vulgar turista do sexo, à procura de raparigas "novas e bonitas", pouco teve de fazer para facilmente chegar às presas. Aliciados por incentivos, os taxistas eram os primeiros a cooperar com o negócio. Por cada cliente que deixassem à porta de um bordel, ganhavam normalmente o suficiente para encher o depósito do carro. No bordel, a "mamasan" - a chefe das escravas -, inteirada das preferências do cliente, não se poupou a colocar meninas na montra.

Cohen conta como, do alto dos seus mais de dois metros de altura, se dobrou para falar com uma menina com metade do seu tamanho. Num discurso ensaiado, a rapariga disse ter 18 anos. Cohen diz que não teria mais de nove. Escolheu-a e subiram para uma divisão separada das restantes por lençóis pendurados do teto.
"Uma vez sozinhos, tiro o telemóvel do bolso. A pequena não parece surpreendida. Já deve ter sido filmada antes por homens, para outros fins."

Incentivada por Cohen, a pequena Chau começou então a contar a sua história. Fora levada do Vietname num barco, juntamente com outras raparigas... Em 20 minutos, Cohen conseguiu as provas de que necessitava para as autoridades começarem a investigar. Ainda dentro do 'quarto', enviou as fotos e o áudio para um telemóvel que estava guardado num dos quatro quartos de hotel reservados em seu nome. Previamente, Cohen passara por todos eles para os desarrumar e dar a sensação de que estavam ocupados. De seguida, substituiu o cartão de memória por outro vazio e escondeu o usado num bolso discreto. À saída, desempenhou o papel do cliente satisfeito. Bebeu uma cerveja, deu uma gorjeta à "mamasan" e ao segurança e despediu-se com um aceno.

Nessa noite, visitaria mais quatro bordéis, "cada um pior do que o anterior". Regressou ao hotel de madrugada e, antes de "tirar o cheiro destes sítios do corpo", montou a câmara de vídeo a um canto do quarto.
"O vídeo diário é talvez a parte mais dura da noite - libertar o horror e colocá-lo em palavras."



MENINAS A 500 DÓLARES

Em muitas missões deste género - que batiza de "medo noturno" -, o trabalho de Cohen ficaria por aqui. As escravas ficariam para trás e ele levaria consigo apenas as provas que pudessem conduzir ao resgate das vítimas. Em Siem Reap, porém, foi diferente. Para evitar ser preso, acusado de rapto ou alvejado pela máfia, ele conseguira a autorização de um comandante militar, o que, no Camboja, equivalia a um mandato escrito.

"Não posso simplesmente irromper por um bordel montado num cavalo branco e resgatar umas quantas miúdas."

Apoiado por dez agentes, que aceitaram o 'biscate' noturno a troco de 200 dólares (150 euros) cada, Cohen regressou aos bordéis - desarmado e com colete à prova de bala. A rusga começou pelo prostíbulo de Chau. O desfecho dependia da reação da "mamasan": ou aceitava vender as meninas ou a equipa de resgate voltaria mais tarde provida de meios para que fosse julgada pelos seus crimes. A "mamasan" cedeu e concordou com a venda de oito crianças a 500 dólares (373 euros) cada.

Nessa noite, foram resgatadas cerca de 30 meninas. As estrangeiras, como Chau, seguiram para abrigos tutelados pela polícia; as cambojanas foram para centros de acolhimento da responsabilidade de ONG. Cada rapariga significava, para os seus captores, um rendimento de mais de 100 mil dólares (75 mil euros) líquidos por ano.

Sempre que tem de pagar no ato de libertação de uma vítima, Cohen está consciente de que o dinheiro vai alimentar a indústria que combate.

"Mas, por momentos, o dinheiro impedirá a máfia de ameaçar as famílias destas raparigas. E as crianças estarão por enquanto a salvo. Não é uma solução perfeita, mas é melhor do que a alternativa."

A missão de Cohen no Camboja terminou abruptamente com uma ameaça de morte. Na hora de fugir do país, viu-se abandonado pela unidade que o tinha ajudado nas rusgas.
"Mas, pelo menos, não me entregaram."



A FANTASIA PRETTY WOMAN

No livro de Cohen, o leitor acompanha-o em missões na América Latina, Médio Oriente, África e Ásia. Ele explica que obtém pistas através de "informadores, infiltrados ou simplesmente pais com o coração destroçado". Depois, na hora de palmilhar o terreno, quanto mais só, melhor.
"Quando iniciamos uma investigação, é mais seguro para o investigador ir sozinho. Se contaminarmos a investigação confiando na polícia, em informadores ou contactos infiltrados, podemos ser mortos."
Aaron Cohen admite que obedece a um "modus operandi" pouco convencional, livre de restrições diplomáticas e de agendas políticas.

"Eu aproximo-me das mulheres que conheço durante o trabalho. Isto pode querer dizer que elas acabam sentadas ao meu colo ou penduradas no meu pescoço, enquanto conversamos num bar de karaoke." Para as vítimas mais velhas, a fantasia do filme "Pretty Woman" torna-se subitamente a esperança numa vida real. "Algumas parecem pensar: 'Se ele não quer dormir comigo, talvez goste de mim...'"

Cohen não abdica de uma certa margem de manobra. Se lhe propõem um contrato de trabalho com uma cláusula proibindo o uso de álcool, ele questiona-o. 

"Fazer as coisas segundo as regras significa fechar portas. Não podem esperar que um agente que trabalha num terreno perigoso aja como um tipo bem comportadinho."

As despesas do "medo noturno"
Ao nível das ajudas de custo, por exemplo, os hotéis e as refeições estão incluídos. Já as despesas relativas ao "medo noturno" ultrapassam frequentemente os seus rendimentos.
"Pagar copos a senhoras e pagar a raparigas a toda a hora ou noite, a fim de reunir informação sobre os traficantes, era algo que os meus patrocínios não cobriam."

Atualmente, Cohen trabalha para a organização (Abolish Slavery Coalition).

"Quando conseguimos um conjunto de provas e as entregamos às entidades locais ou federais, eles agradecem. Mas por causa dos seus próprios protocolos e restrições, têm as mãos amarradas de muitas formas. É por isso que há muito poucos resgates."

Dir-se-ia mesmo que grande parte do trabalho de Aaron Cohen não é reconhecido. 

"Nunca conseguirei dinheiro suficiente para resgatar tantas vítimas quantas gostaria. Acabamos sempre por deixar mais vítimas para trás apenas por falta de recursos. Inevitavelmente, acabo por usar do meu próprio dinheiro e recursos. Já gastei muito com este trabalho. Ainda assim, continuo a sentir-me assombrado por tantas mulheres e crianças que deixamos para trás."

Encontrar vítimas menores e pô-las em segurança tornou-se um barómetro pessoal de sucesso para Aaron Cohen. A seguir a uma missão de resgate bem sucedida, o seu sono fica mais leve.
"Mais algumas crianças estão livres das garras dos seus predadores".


MARGARIDA MOTA
Expresso


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