Ollyy
Normalmente, a gente associa o luto a uma perda real.
Perda de algo amado ou que nos sustentava de alguma forma.
Eu tinha algo no passado —ou achava que tinha— que no presente não tenho mais.
Agora a missão é “elaborar o luto”.
Mas talvez o luto mais difícil de atravessar seja quando o que se perdeu está no futuro: uma miragem, um sonho. É algo abstrato, uma ideia. Ideia tanto no sentido de algo não concreto, como algo que, justamente por isso, aponta para o ideal. Por exemplo, o de construir um novo país, lindo, forte, vasto. À altura do nosso potencial. Agora vai, e com apoio transcendental. Como no antigo slogan envernizado: Deus, Pátria, Família, Liberdade. Até eu acharia maravilhoso se todos esses quatro ideais existissem e funcionassem, de preferência simultaneamente.
Se a gente de fato tinha uma conexão com o que se perdeu —com muita energia psíquica colocada nesse elo— é dureza elaborar o luto. Pois dá mesmo muito trabalho se reinventar como não tendo mais ao seu lado (ou dentro) aquilo que se tinha. Tecnicamente: a perda de um objeto psíquico necessariamente implica a reconstrução da própria subjetividade. Então, imagina o desafio: além de perder algo e sofrer por isso, a gente ainda tem que reinventar um eu —e isso quando está tudo em carne viva.
É tão sofrido esse processo que se tenta, inconscientemente, escapar dele. Quase sempre a primeira e também mais primária estratégia é, como se sabe, a negação. Não é possível, não aconteceu isso. Não é bem assim, essa informação está errada, estão tentando me enganar. A verdade (que eu desejo) vai se revelar.
Porém, o que está sendo difícil aceitar, no fundo, é que a macroforma mental de organizar a vida não funciona mais. A antiga montagem psicossocial está derretendo e parece que estamos muito angustiados diante disso. Então nos esforçamos para reafirmar direitinho os lugares previamente desenhados para as pessoas serem encaixadas. Lugar de homem é aqui e desse jeito (único). Lugar de mulher é assim, e limitado. Lugar de ‘mulher da vida’ é assado. Lugar de branco é no topo. Lugar de negro é servindo ao branco. Lugar de rico é andando de avião. Lugar de pobre é na senzala. Como agora tem tanto pobre no aeroporto? Essa rodoviária. Como agora tem pobre que tem a desfaçatez de ocupar o poder e andar com amigo rico dono de avião? A nossa mente logo associa: só roubando. No caso, ajudando o rico a roubar.
Um outro mecanismo de defesa é abafar o que se sente diante da perda e fazer racionalizações apaziguantes. Ah, tudo bem, é a vida. Nem estou com inveja ou me sinto rejeitado. Qual o problema? Vida que segue. Next. A fila anda. Veja como nossa sociedade nos ajuda a não elaborar nada muito bem. Já pensou se a cada vez que sentíssemos dor, tristeza, indignação, revolta… A gente parasse tudo e se deixasse invadir por esses afetos? Ou ficasse fazendo manifestação o tempo todo? Não tinha mais sistema produtivo. Aliás, por isso que os pragmáticos —seja um jovem ambicioso ou um operador do mercado— podem trocar de namorada ou de presidente sem grandes dramas.
Mas para os menos espertos ou mais sensíveis, a negação pode chegar ao limite do delírio. Alucinar a vitória. Lembra dos japoneses que durante décadas negavam que o Japão tinha perdido a guerra? O imperador era sagrado e invencível. Como vemos, por aqui também está doendo muito abrir mão de um projeto heroico. Não posso abrir mão desse ideal, e ser reconduzido a um lugar que eu mesmo talvez ache insignificante ou injusto. Alguém está roubando o meu país. E os pragmáticos, aliás, sabem bem como manipulá-los, seja nas estradas ou nas igrejas.
Enfim, uma das coisas mais difíceis da vida é desistir.
Desistir de um sonho, de um projeto, uma ideia.
Ou de um amor.
Mesmo que seja óbvio que aquilo não é bom,
que não vai dar certo, que não funciona mais,
a gente insiste.
Quem sabe agora tenhamos uma nova chance
de aprender a desistir do que merece ser deixado.
Maria Homem
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