Entro num delírio silencioso, profundo. Rajadas de
ansiedade varrem-me os nervos como lâminas de vento.
Este acidente enche-me de dor e de saudade. Meu Tony,
onde andas tu? Por que me deixas só a resolver os problemas de cada dia como mulher e como homem. Há momentos na vida em que uma mulher se sente
mais solta e desprotegida como um grão de poeira. Onde
andas, meu Tony, que não te vejo nunca? Onde andas,
meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher
de bem, uma mulher casada. Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na
boca. Náuseas. Revolta. Impotência e desespero.
Onde anda esse homem que me deixa os filhos e a
casa e não dá um sinal de vida? Um marido em casa é
segurança, e protecção. Na presença de um marido, os ladrões se afastam. Os homens respeitam. As vizinhas
não entram de qualquer maneira para pedir sal, açúcar,
muito menos para cortar na casaca da outra vizinha. Na
presença de um marido, um lar é mais lai; tem conforto e
prestígio.
— O meu tem aquelas concubinas que conheces,
com filhos e tudo—diz outra. — Pensas que me ralo?
Olho para todas elas. Mulheres cansadas, usadas.
Mulheres belas, mulheres feias. Mulheres novas, mulheres velhas. Mulheres vencidas na batalha do amor. Vivas
por fora e mortas por dentro, eternas habitantes das trevas. Mas por que se foram embora os nossos maridos, por que nos abandonam depois de muitos anos de convivência? Por que nos largam como trouxas, como fardos,
para perseguir novas primaveras e novas paixões? Por que é que, já na velhice, criam novos apetites? Quem
disse aos homens velhos que as mulheres maduras não
precisam de carinho? Oh, meu Tony! Queria tanto que
estivesses presente. Traz-me de novo a primavera. Onde
andas tu, que não me ouves?
Amor. Tão pequena, esta palavra. Palavra bela, preciosa. Sentimento forte e inacessível. Quatro letras apenas, gerando todos os sentimentos do mundo. As mulheres falam de amor. Os homens falam de amor. Amor que
vai, amor que vem, que foge, que se esconde, que se procura, que se encontra, que se preza, que se despreza, que
causa ódios e acende guerras sem fim. No amor, as mulheres são um exército derrotado, é preciso chorar.
Depor as armas e aceitar a solidão. Escrever poemas e
cantar ao vento para espantar as mágoas. O amor é fugaz
como a gota de água na palma da mão.
Fecho os olhos e escalo o monte para dentro de mim.
Procuro-me. Não me encontro. Em cada canto do meu
ser encontro apenas a imagem dele. Solto um suspiro e
só me sai o nome dele. Desço até ao âmago do meu coração e o que é que eu encontro? Só ele.
Ninguém pode entender os homens. Como é que o
Tony me despreza assim, se não tenho nada de errado
em mim? Obedecer, sempre obedeci. As suas vontades
sempre fiz. Dele sempre cuidei. Até as suas loucuras
suportei. Vinte anos de casamento é um recorde nos tempos que correm. Modéstia à parte, sou a mulher mais perfeita do mundo. Fiz dele o homem que é. Dei-lhe amor,
dei-lhe filhos com que ele se afirmou nesta vida. Sacrifiquei os meus sonhos pelos sonhos dele. Dei-lhe a minha
juventude, a minha vida. Por isso afirmo e reafirmo,
mulher como eu, na sua vida, não há nenhuma! Mesmo
assim, sou a mulher mais infeliz do mundo.
Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado
em mim. Vejo olheiras negras no meu rosto, meu Deus,
grandes olheiras! Tendo andado a chorar muito por estes
dias, choro até de mais. Olho bem para a minha imagem.
Com esta máscara de tristeza, pareço um fantasma, essa
aí não sou eu. Os olhos que se
reflectem brilham como diamantes. É o rosto de uma
mulher feliz. Os lábios que se reflectem traduzem uma
mensagem de felicidade, não, não podem ser os meus,
eu não sorrio, eu choro. Meu Deus, o meu espelho foi
invadido por uma intrusa, que se ri da minha desgraça.
Será que essa intrusa está dentro de mim? Esfrego os
olhos, acho que enlouqueci. Penso em fugir daquela imagem para o conforto dos lençóis. Dou dois passos em retaguarda. A imagem me imita. Dou outros dois em frente
e ficamos a olhar-nos. Aquela imagem é uma fonte de luz
e eu sou um fosso de tristeza. Sou gorda, pesada, e ela
magra e bem cuidada. Mas os olhos dela têm a cor dos
meus. A corda pele é semelhante à minha. De quem será
esta imagem que me hipnotiza e me encanta?
— Quem és tu? — pergunto eu.
— Não me reconheces? Olha bem para mim.
— Estou a olhar, sim. Mas quem és tu?
— Estás cega, gémea de mim. Por que choras tu?
Solto da boca uma enxurrada de lamentos. Conto
toda a tristeza e digo que as mulheres deste mundo me
roubam o marido.
— Pode-se roubar uma pessoa viva, ainda por cima
um comandante da polícia?
— Um marido rouba-se, nesta terra.
—Não sejas criança, gémea minha. Ele cansou-se de
ti e partiu.
— Por que danças tu, espelho meu?
—Celebro o amor e a vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e a solidão. Piso para o fundo
da terra todos os males que me torturam. A dança liberta
a mente das preocupações do momento. A dança é uma
prece. Na dança celebro a vida enquanto aguardo a morte. Por que é que não danças?
Infelizmente muitas de
nós, mulheres, agimos assim. Subimos ao alto do monte
e só quando estamos no ar compreendemos que não
temos asas para voar. Atiramo-nos do alto do céu para
um poço sem luz nem fundo e quebramos o coração
como um vaso de porcelana.
— Mas... Julieta, como podes andar à pancadaria por
um marido que nem sequer é teu?
— E o que significa a palavra teu, quando se trata de
um homem?
A Julieta revela-me uma
verdade mais cáustica que uma taça de veneno. Ter é uma
das muitas ilusões da existência, porque o ser humano
nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter,
é-nos emprestado pela vida durante pouco tempo.
Penso
naquilo que tenho. Nada, absolutamente nada. Tenho um amor não correspondido. Tenho a dor e a saudade de um marido sempre ausente. A ansiedade. Ter é efemeridade, eterna ilusão de possuir o intangível. Teu é o que nasceu contigo.
As mulheres são diferentes no
nome e na cara. No resto, somos iguais.
Tremo de
piedade, de tristeza, de vergonha. Todas as mulheres são
gémeas, solitárias, sem auroras nem primaveras. Buscamos o tesouro em minas já exploradas, esgotadas, e acabamos por ser fantasmas nas ruínas dos nossos sonhos.
—Oh, espelho meu, o que achas de mim? Devo renovar-me?
— Renova-te, sim. Mas antes, procura uma vassoura
e varre o lixo que tens dentro do peito. Varre as loucuras
que tens dentro da mente, varre, varre tudo. Liberta-te. Só
assim viverás a felicidade que mereces.
— Diz-me, espelho meu: onde foi que eu errei? Serei
feliz algum dia, com essas mulheres à volta do meu
marido?
Pensa bem, amiga minha: serão as outras mulheres
as culpadas desta situação? Serão os homens inocentes?
—E do amor sexual?
— Nunca ninguém me disse nada.
— Então não és mulher — diz-me com desdém —,
és ainda criança.
Como queres tu ser feliz no casamento,
se a vida a dois é feita de amor e sexo e nada te ensinaram sobre a matéria?
Olhei-a com surpresa. De repente lembro-me de
uma frase famosa — ninguém nasce mulher, torna-se
mulher. Onde terei eu ouvido esta frase?
Dedicámos um tempo à comparação dos hábitos
culturais de norte a sul. Falámos dos tabus da menstruação o que impedem a mulher de aproximar-se da vida
pública de norte a sul. Dos tabus do ovo, que não pode ser
comido por mulheres, para não terem filhos carecas e não
se comportarem como galinhas poedeiras na hora do
parto. Dos mitos que aproximam as meninas do trabalho
doméstico e afastam os homens do pilão, do fogo e da
cozinha para não apanharem doenças sexuais, como
esterilidade e impotência. Dos hábitos alimentares que
obrigam as mulheres a servir aos maridos os melhores
nacos de carne, ficando para elas os ossos, as patas, as asas
e o pescoço. Que culpam as mulheres de todos os infortúnios da natureza. Quando não chove, a culpa é delas.
Quando há cheias, a culpa é delas. Quando há pragas e
doenças, a culpa é delas que sentaram no pilão, que abortaram às escondidas, que comeram o ovo e as moelas, que
entraram nos campos nos momentos de impureza.
As mulheres do sul acham que as do norte são umas
frescas, umas falsas.
As do norte acham que as do sul são
umas frouxas, umas frias.
Em algumas regiões do norte,
o homem diz: querido amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os laços da nossa fraternidade,
dorme com a minha mulher esta noite. No sul, o homem
diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara curta. No norte, as mulheres
enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No
norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No norte
as mulheres são leves e voam. Dos acordes soltam sons
mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros. No
sul as mulheres vestem cores tristes, pesadas. Têm o rosto
sempre zangado, cansado, e falam aos gritos como quem
briga, imitando os estrondos da trovoada. Usam o lenço
na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um
feixe de lenha. Vestem-se porque não podem andar
nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo delas é
reprodução apenas.
Homem do sul quando vê mulher do norte perde a
cabeça. Porque ela é linda, mutbiana orem. Porque sabe
amar, sabe sorrir e sabe agradar. Mulher do norte quando
vê homem do sul perde a cabeça porque tem muita garra
e tem dinheiro. O homem do norte também se encanta
com a mulher do sul, porque é servil. A mulher do sul
encanta-se com o homem do norte, porque é mais suave,
mais sensível, não agride. A mulher do sul é económica,
não gasta nada, compra um vestido novo por ano. A nortenha gasta muito com rendas, com panos, com ouro,
com cremes, porque tem que estar sempre bela. E a história da eterna inveja. O norte admirando o sul, o sul
admirando o norte. Lógico. A voz popular diz que a
mulher do vizinho é sempre melhor que a minha.
— Frequentaste os ritos de iniciação? — pergunta a
conselheira.
— Não — explico —, o meu pai é um cristão ferrenho, de resto a pressão do regime colonial foi muito mais
forte no sul do que no norte.
— Refiro-me às escolas de amor e vida.
— Nunca frequentei nenhuma.
— És mesmo criança, ainda não és mulher.
— O que aprendem então nesses ritos, que vos faz
sentir mais mulheres do que nós?
— Muitas coisas: de amor, de sedução, de maternidade, de sociedade. Ensinamos filosofias básicas de boa
convivência. Como queres ser feliz no lar se não recebeste as lições básicas de amor e sexo? Na iniciação
aprendes a conhecer o tesouro que tens dentro de ti. A
flor púrpura que se multiplica em pétalas intermináveis,
produzindo todas as correntes benéficas do universo.
Nos ritos de iniciação habilitam-te a viver e a sorrir. Aprendes a conhecer a anatomia e todos os astros que
gravitam dentro de ti Aprendes o ritmo dos corações que
palpitam dentro de ti.
— São assim tão importantes esses ritos?
— Sem eles, és mais leve que o vento. És aquele que
viaja para longe, sem viajar antes para dentro de si própria. Não te podes casar, ninguém te aceita. Se te aceita,
logo depois te abandona. Não podes participar num
funeral, muito menos aproximar-te de um cadáver porque não tens maturidade. Nem podes assistir a um parto.
Não podes tratar dos assuntos de um casamento. Porque
és impura. Porque não és nada, eterna criança.
A vida é feita de partilhas. Partilhamos a manta num dia de frio. Partilhamos o sangue com
o moribundo na hora do perigo. Por que não podemos
partilhar um marido?
Emprestamos dinheiro, comida e
roupa. Por vezes damos a nossa vida para salvar alguém.
Não acha mais fácil emprestar um marido ou esposa do
que dar a vida?
As culturas são fronteiras invisíveis construindo a fortaleza do mundo. Em algumas regiões do norte de Moçambique, o amor é feito de partilhas. Partilha-se mulher
com o amigo, com o visitante nobre, com o irmão de circuncisão. Esposa é água que se serve ao caminhante, ao
visitante. A relação de amor é uma pegada na areia do
mar que as ondas apagam. Mas deixa marcas. Uma só
família pode ser um mosaico de cores e raças de acordo
com o tipo de visitas que a família tem, porque mulher é
fertilidade. É por isso que em muitas regiões os filhos
recebem o apelido da mãe. Na reprodução humana, só
a mãe é certa. No sul, a situação é bem outra. Só se entrega a mulher ao irmão de sangue ou de circuncisão
quando o homem é estéril.
Falamos da iniciação masculina.
Digo que o meu
Tony também não frequentou nenhuma escola de iniciação, ao que ela afirma:
— O teu marido também não é homem, é apenas
criança.
— Criança, o meu Tony? Não pode ser! Como ousa
desqualificar o meu marido?
Ela explica-me a primeira lição da iniciação masculina:
— A primeira filosofia é: trata a mulher como a tua
própria mãe. No momento em que fechares os olhos e
mergulhares no seu voo, ela se transforma na tua criadora, a verdadeira mãe de todo o universo. Toda a mulher
é a personificação da mãe, quer seja a esposa, a concubina, até mesmo uma mulher de programa. O homem
deve agradecer a Deus toda a cor e luz que a mulher dá,
porque sem ela a vida não existiria. Um homem de verdade não bate na sua mãe, na sua deusa, na sua criadora.
— Mas isso é no norte — recordo —, eu sou daqui,
do sul.
Porque o casamento deve ser uma relação sem guerra.
Porque levei muita sova nesta vida.
Porque um lar de harmonia se constrói sem violência.
Porque quem bate na
sua mulher destrói o seu próprio amor.
Ela diz que todo o homem
é bicho. Borboleta. Insecto.
É seduzido pela brisa, pelo
arco-íris, por tudo o que emana cor e luz.
Homem é bicho sonoro. No sibilar dos pinhais
dorme, sonha. No farfalhar das palmeiras se extasia. No
canto do pássaro se encanta. No soprar de uma flauta se
enleva. No silvar de uma serpente se espanta. Faz a tua
armadilha sonora. Tira dessa tua flauta a voz que embala,
assim meiga, sussurrada, cantada, pausada. Tira desse
pinhal o sibilar divino para repousar o seu cansaço. Se
gritas como serpente espantas a caça. Homem é elefante. Grandioso. Mas o elefante atrai-se com formiga. O olho grande sempre se encanta com
coisa pequena. Não procura ser grande, mas pequena.
Muito pequena, quase microscópica, mas astuta e atenta
para atacar os pontos vitais. Sê a bactéria que faz o
homem se requebrar na dança da sarna. Sê o vírus que
faz o grande homem estremecer ao ritmo da gripe. Sê tu
mesma. Natural. Um adulto se rende de encanto, perante
o sorriso de uma criança. Homem é azagaia. Ponta de lança. Homem é uma
linha recta sem fim. Homem é uma bala acesa ferindo o
espaço na conquista do mundo. As rectas unem o céu e
o chão até ao fim do horizonte. Deixa que o homem seja
o fim, porque tu és o princípio.
Mulher é linha curva. Curvos são os movimentos do
sol e da lua. Curvo é o movimento da colher de pau na
panela de barro. Curva é a posição de repouso. Já reparaste que todos os animais se curvam ao dormir? Nós,
mulheres, somos um rio de curvas superficiais e profundas em cada palmo do corpo. As curvas mexem as coisas em círculo. Homem e mulher se unem numa só curva no
serpentear dos caminhos. Curvos são os lábios e os beijos. Curvo é o útero. Ovo. Abóbada celeste. As curvas
encerram todos os segredos do mundo.
Fiquei a saber como no amor os olhos se expressam.
Olhos de gata. Olhos de serpente. Olhos magnéticos.
Olhos sensuais.
Não há mulheres feias no mundo, disse
a conselheira — o amor é cego. Existem, sim, mulheres
diferentes.
— Se queres um homem prenda-o na cozinha e na
cama — diz ela.
A igreja e
os sistemas gritaram heresias contra estas práticas, para
destruir um saber que nem eles tinham. Analiso a minha
vida. Fui atirada ao casamento sem preparação nenhuma. Revolto-me. Andei a aprender coisas que não
servem para nada. Até a escola de ballet eu fiz — imaginem! Aprendi todas aquelas coisas das damas europeias,
como cozinhar bolinhos de anjos, bordar, boas maneiras,
tudo coisas da sala. Do quarto, nada! A famosa educação
sexual resumia-se ao estudo do aparelho reprodutor,
ciclo disto e daquilo. Sobre a vida a dois, nada! Os livros escritos por padres invocavam Deus em todas as posições. Sobre a posição a dois, nada! E na rua havia as revistas de pornografia. Entre a pornografia e a santidade, não
havia nada! Nunca ninguém me explicou por que é que
um homem troca uma mulher por outra. Nunca ninguém me disse a origem da poligamia. Por que é que a
igreja proibiu estas práticas tão vitais para a harmonia de
um lar? Por que é que os políticos da geração da liberdade levantaram o punho e disseram abaixo os ritos de
iniciação? É algum crime ter uma escola de amor? Diziam
eles que essa escolas tinham hábitos retrógrados. E têm.
Dizem que são conservadoras. E são. A igreja também é.
Também o são a universidade e todas as escolas formais.
Em lugar de destruir as escolas de amor, por que não
reformá-las? O colonizado é cego. Destrói o seu, assimila
o alheio, sem enxergar o próprio umbigo. E agora? Na
nossa terra há muito desgosto e muita dor, as mulheres
perdem os seus maridos por não conhecerem os truques
de amor. Fala-se de amor e aponta-se logo o coração e
nada mais. Mas o amor é coração, corpo, alma, sonho e
esperança. O amor é o universo inteiro e por isso nem a
anatomia nem a cardiologia conseguiram ainda indicar
o lado do coração onde fica o amor.
As mulheres ostentam este ar de fraqueza, mas
mordem como abelhas. Fazem o homem chorar de amor
como uma criança, até esvaziar-se da alma. Têm a vida
de um homem na palma da mão, e este humilha-se, rende-se até perder o fôlego, até se entregar de corpo e
alma, e fazem dele um escravo. Compreendo agora aquele caminhar requebrado e seguro de algumas mulheres do norte. Compreendo agora aquele falar cantado, o
olhar dormente, de crocodilo.
Os ritos
de iniciação são como o baptismo cristão. Sem baptismo
todo o ser humano é pagão. Não tem direito ao céu. No
sul, homem que não lobola a sua mulher perde o direito
à paternidade, não pode realizar o funeral da esposa nem
dos filhos. Porque é um ser inferior. Porque é menos
homem. Filhos nascidos de um casamento sem lobolo
não têm pátria. Não podem herdar a terra do pai, muito
menos da mãe. Filhos ficam com o apelido materno. Há
homens que lobolaram as suas esposas depois de mortas, só para lhes poderem dar um funeral condigno. Há
homens que lobolaram os filhos e os netos já crescidos,
só para lhes poder deixar herança. Mulher não lobolada
não tem pátria. É de tal maneira rejeitada que não pode
pisar o chão paterno nem mesmo depois de morta.
Lobolo no sul, ritos de iniciação no norte. Instituições
fortes, incorruptíveis. Resistiram ao colonialismo. Ao cristianismo e ao islamismo. Resistiram à tirania revolucionária. Resistirão sempre. Porque são a essência do povo, a
alma do povo. Através delas há um povo que se afirma
perante o mundo e mostra que quer viver do seu jeito.
—Traição é crime, Tony!
—Traição? Não me faça rir, ah. ah, ah, ah! A pureza é
masculina, e o pecado é feminino. Só as mulheres
podem trair, os homens são livres, Rami.
Este é o discurso típico da minha terra,
onde o homem é rei, senhor da vida e do mundo
Na minha aldeia,
poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos,
pois deixar outras mulheres sem cobertura é crime que
nem Deus perdoa.
Andei em brigas, escândalos, feitiços, escolas de sedução. Do amor o que ganhei eu? Nada! Chatices, só chatices. Enquanto me chateio o meu marido não pára de
fazer das suas. Ele é como uma enguia nas águas revoltosas, nunca o conseguirei segurar.
O que querem as mulheres, à volta de um só homem?
Todas tememos a solidão e por isso suportamos o insuportável.
O mundo acha que as mulheres são interesseiras. E
os homens não são? Todo o homem exige da mulher um
atributo fundamental: beleza. As mulheres exigem dos
homens outro atributo: dinheiro. Qual é a diferença? Só
os homens podem exigir e as mulheres não?
Até na bíblia a mulher não presta. Os santos, nas suas
pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a
mulher é um animal nutridor de maldade, fonte de todas
as discussões, querelas e injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não
fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta
nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo?
E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O
pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa — sua esposa —
intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção
de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir,
penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu
espaço é, de certeza, a cozinha celestial.
A paz nossa de cada
dia nos dai hoje e perdoai as nossas ofensas — fofocas,
má-língua, bisbilhotices, vaidade, inveja — assim como
nós perdoamos a tirania, traição, imoralidades, bebedeiras, insultos, dos nossos maridos, amantes, namorados,
companheiros e outras relações que nem sei nomear.
Não nos deixeis cair na tentação de imitar as loucuras
deles — beber, maltratar, roubar, expulsar, casar e ciar, divorciar, violar, escravizar, comprar, usar, abusar e nem nos
deixes morrer nas mãos desses tiranos—mas livrai-nos
do mal, Ámen. Uma mãe celestial nos dava muito jeito,
sem dúvida alguma.
Acabei de aprender a lição da vida. História de um
amor só, um amor imortal? Balelas!
O amor solta-se do peito e corre perdido como uma
pedra rolando no desfiladeiro. Amar uma vez na vida?
Tretas. Só as mulheres, eternas palermas, engolem esta
pastilha. Os homens amam todos os dias. Em cada sol
partem à busca de novas paixões, novas emoções,
enquanto nós ficamos a esperar eternamente por um
amor já caduco. Todos os homens são polígamos. O
homem é uma espécie humana com vários corações, um
para cada mulher.
— Como conseguiu viver num lar com vinte e cinco
esposas, tia Maria?
A velha oferece-me um olhar de infinita ternura.
—Filha minha, a vida é uma eterna partilha. Partilhamos o ar e o sol, partilhamos a chuva e o vento. Partilhamos a enxada, a foice, a semente. Partilhamos a paz e o
cachimbo. Partilhar um homem não é crime. Vezes há em
que partilhar a mulher é necessário, quando o marido é
estéril e precisa colher o sémen de um irmão. Éramos um grande rebanho de mulheres aguardando
cobertura.
Eram famílias verdadeiras, onde havia democracia
social. Cada mulher tinha a sua casa, seus filhos e suas
propriedades. Participávamos
na feitura da escala matrimonial, que
consistia numa noite para cada uma, mas tudo igual,
igualzinho. E ele cumpria à risca. Ele tinha que dar um
exemplo de um bom modelo de família. Se ele cometesse a imprudência de dar primazia a uma mulher
em especial, tinha que suportar as reuniões de crítica dos
conselheiros e anciãos.
Não consigo perceber a razão dessa felicidade,
num lar com mais de vinte esposas, sem direitos nem
liberdade nenhuma.
—A prosperidade mede-se pelo número de propriedades. A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande
patriarca deve ter várias cabeças sob o seu comando.
Quando se tem poder é preciso ter onde exercê-lo, não
é assim? Em
nossa casa as damas produziam filhos e davam a imagem de prosperidade. Se o marido tivesse dificuldades,
recorria-se aos assistentes conjugais e reprodutores,
recrutados entre os homens belos, robustos, inteligentes. Um homem tem que mostrar a imagem de virilidade,
homem sobre todos os homens.
Todos esses casamentos eram contratos, alianças políticas entre as diferentes etnias,
exceptuando o meu caso, que fui entregue para pagar as
dívidas do meu pai. Nunca me senti casada com aquele
homem, que tinha a idade do meu avô.
Uma mulher que passava para as mãos do
assistente nunca mais voltava ao leito do marido, o que era bom,
porque ela recuperava a sua liberdade e podia vadiar.
Podia até trazer para a sua casa filhos de qualquer um. Num
lar polígamo não há filhos ilegítimos. Os que nascem
dos assistentes não podem herdar. A primeira
dama, a verdadeira nkosikazi, é que era sagrada. Nenhum
homem podia tocar nela sob pena de morte. Essa era a
única que garantia a linhagem. Quando me casei, ele já era um vovô.
A primeira dama, era uma
espécie de comandante do mulherio. Parecia um passarinho numa gaiola, lembro-me disso.
Parecia mais prisioneira do que primeira dama. O marido respeitava-a muito. Hoje penso que a tristeza profunda vinha da falta de amor. É doloroso dormir sozinha
sabendo que o marido anda por aí.
— Que sistema terrível!
—A poligamia tem vantagens.
—Vantagens?
— Vantagens, sim. Quando as mulheres se entendem, o homem não abusa.
Recordo-me. A culpa foi toda minha. O meu corpo
inteiro treme como um terramoto. De medo. De vergonha. Dormi com o amante da Lu! Aquela sedenta era eu,
no meio do deserto, perseguindo um grão de chuva.
Aquela depravada era eu, bebendo vinho, copo sobre
copo, como uma prostituta. Entreguei-me a um desconhecido como uma vagabunda. ? Eu
era uma pedra firme. Incorruptível. Sempre vivi acima
das outras mulheres porque era a mulher de todas as virtudes. Feri a minha fidelidade, abri uma brecha, uma
ferida que não cicatriza. Derrubei os pilares onde assentavam todos os valores, não resisti à tentação. É difícil ser fiel, quando
se tem o corpo em chamas. É difícil esta abstinência forçada, meu Deus, é difícil ser mulher. Vim para uma festinha de
aniversário e acabei no leito do amor proibido.
—Luísa, como é que isto foi acontecer, logo comigo?
—Oh, Rami. Aquele homem não é criança nenhuma.
És uma mulher carente, mal cuidada, abandonada, vê-se.
Ele prestou-te um serviço. Não há nada de errado nisso. Não sou possessiva. Venho de uma terra onde a
solidariedade não tem fronteiras. Venho de um lugar
onde se empresta o marido à melhor amiga para fazer um
filho, com a mesma facilidade com que se empresta uma
colher de pau. Na minha comunidade o marido empresta uma esposa ao melhor amigo e ao ilustre visitante.
Na minha aldeia, o amor é solenemente partilhado em
comunhão como uma hóstia. O sexo é um copo de água
para matar a sede, pão de cada dia, precioso e imprescindível como o ar que respiramos. Se já partilhamos um
marido, partilhar um amante é mais fácil ainda. Assim as
contas estão pagas, não é, Rami?
— Isto é adultério.
— Adultério? Há quanto tempo esperas por quem
não vem? Vocês, mulheres do sul, perdem tempo com
essas histórias e preconceitos. Renunciam à existência,
pode-se saber porquê? Fidelidade a quê, se ele já te deixou? Mesmo as viúvas aliviam o luto em algum momento.
E tu não és viúva, o Tony está vivo, está feliz e anda a fazer
das suas, por aí. Na falta de uma boa chuva, um chuvisco serve. Faltando o chuvisco, um regador de mão, para molhar a terra. Essas mulheres que vendem o corpo são
gente como nós, Rami.
— Não, eu não sou como elas, não posso ser como
elas.
— És, sim. Sofres o mesmo que elas. Sofres mais do
que elas. És esposa apenas no papel, mais és a mais solteira das mulheres. Foi por isso que te emprestei o
amante.
Fiquei com inveja da Luísa. Mulher prática, muito
terra a terra, cumprindo as leis da natureza. Nasceu num
berço de palha, mas sonha e varre as pedras do caminho
com punhos de ferro.
—Sei muitas coisas a teu respeito. Admiro a tua coragem. És um caso raro. Eu acho que todas as mulheres
deviam unir-se contra a tirania dos homens. Eu, se fosse
mulher, faria isso. É aí onde está o teu ponto forte. No
lugar de fazer a guerra estás aqui ao lado da tua rival. Tu
és brava, mulher.
— Mas não é fácil.
—Tu não substituis tirania por tirania, o que é bom. Não faças mal a estas mulheres, São como tu, desgraçadas à busca da vida. Merecem antes o teu apoio e o teu
perdão. Ainda por cima são mais jovens e mais desgraçadas que tu. Ensina-lhes a amar e a perdoar.
— Pergunta a Lu. Ela vai contar-te como esse brutamontes do vosso marido se embebedava, a espancava durante a gravidez, a fechava num quarto e nem lhe dava
comida. E ela nada fazia para inverter as coisas porque
dependia dele para comer, para existir. Um homem que não
respeita o próprio filho no ventre da mãe não merece nada. Vocês deviam dar-lhe um pontapé no traseiro para sentir o que é bom. No lugar de corrigi-lo vocês
submetem-se, aceitam tudo, e ainda por cima se matam
por ele.
Comecei a frequentar a casa da Lu. A partilhar segredos. O Vito passou a ser a sombra misteriosa perseguindo a sombra do meu ser A lua que brilha na fresta da
minha janela. Excelente amante polígamo, distribuindo-nos amor roubado, numa escala justa, tudo por igual. A
situação embaraçava-me, por vezes enjoava-me. A minha consciência censurava-me, mas o meu corpo estava lá à hora combinada, absolutamente dependente
daqueles encontros secretos como uma viciada em
heroína. Por vezes me assalta o medo de ser descoberta.
Quando o Tony der por mim, o manto da fidelidade
estará roído até ao último fio. A moral é uma moeda. De
um lado o pecado, de outro lado a virtude. Silêncio e
segredo unidos, no equilíbrio do mundo.
Não sou de lugar nenhum. Não tenho registo, no
mapa da vida não tenho nome. Uso este nome de casada
que me pode ser retirado a qualquer momento. Por
empréstimo. Usei o nome paterno, que me foi retirado.
Era empréstimo. A minha alma é a minha morada. Mas
onde vive a minha alma? Uma mulher sozinha é um grão
de poeira no espaço, que o vento varre para cá e para lá,
na purificação do mundo. Uma sombra sem sol, nem
solo, nem nome.
Não, não sou nada. Não existo em parte nenhuma.
Acham que eu devo abraçar a poligamia, e pôr-me
aos gritos de urras e vivas e salves, só para preservar o nome emprestado? Acham que devo dizer sim à poligamia só para preservar este pedaço de chão onde repousam os meus pés? Não, não vou fazer isso, tenho os braços presos para aplaudir, e a garganta seca para gritar.
Não, não posso. Não sei. Não tenho vontade nenhuma. Poligamia é uma rede de pesca lançada ao mar para
pescar mulheres de todos os tipos. Já fui pescada. As
minhas rivais, minhas irmãs, todas, já fomos pescadas.
Afiar os dentes, roer a rede e fugir, ou retirar a rede e pescar o pescador? Qual a melhor solução? Viver a
madrugada na ansiedade ou no esquecimento. Abrir o
peito com as mãos, amputar o coração. Drená-lo até se
tornar sólido e seco como uma pedra, para matar o amor
e extirpar a dor quando o teu homem dorme com outra,
mesmo ao teu lado. Poligamia é uma procissão de esposas, cada uma com o seu petisco para alimentar o senhor. É chamarem-te feia, quando és bela,
pois há sempre uma mais bela do que tu. É seres espancada em cada dia pelo mal que fizeste, por aquele que
não fizeste, por aquele que pensaste fazer, ou por aquele
que um dia vais pensar cometer.
Poligamia é um exército de crianças, muitos meios irmãos crescendo felizes, inocentes, futuros reprodutores dos ideais de poligamia. Embora não aceite, a minha
realidade é esta. Já vivo na poligamia.
Poligamia é ser mulher e sofrer até reproduzir o ciclo
da violência. Envelhecer e ser sogra, maltratar as noras,
esconder na casa materna as amantes e os filhos bastardos dos filhos polígamos, para vingar-se de todos os
maus tratos que sofreu com a sua própria sogra.
Viver na poligamia é ser enfeitiçada por mulheres gananciosas, que querem ficar com o marido só para elas.
No lar polígamo há muitas rivalidades, feitiços, mexericos, envenenamentos até. Viver na poligamia é usar artimanhas, técnicas de sedução, bruxedos, intrigas, competir a vida inteira com outras mais belas, desgastar-se a
vida inteira por um pedaço de amor.
Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos sem memória.
Conheço um povo
sem poligamia: o povo macua. Este povo deixou as suas
raízes e apoligamou-se por influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e
converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder,
porque é bom ser patriarca e dominar.
Conheço um
povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu
país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse
não à poligamia. Cristianizou-se, jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e renunciou.
A prática mostrou que com uma só esposa não se faz um
grande patriarca. Por isso os homens deste povo hoje
reclamam o estatuto perdido e querem regressar às raízes. Praticam uma poligamia tipo ilegal, informal sem
cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não
aos costumes, sim ao cristianismo e à lei. No momento
seguinte, dizem não onde disseram sim, ou sim onde disseram não. Contradizem-se, mas é fácil de entender A
poligamia dá privilégios. Ter mordomia é coisa boa: uma
mulher para cozinhar, outra para lavar os pés, uma para
passear, outra para passar a noite. Ter reprodutoras de
mão-de-obra, para as pastagens e gado, para os campos
de cereais, para tudo, sem o menor esforço, pelos simples
facto de ter nascido homem.
No comício do partido aplaudimos o discurso político: abaixo a poligamia! Abaixo! Abaixo os ritos de iniciação! Abaixo! Abaixo a cultura retrógrada! Abaixo! Depois do
comício político, o líder que incitava o povo aos gritos de vivas e
abaixos ia almoçar e descansar em casa de uma segunda
esposa.
Todo o problema parte da fraqueza dos nossos antepassados. Deixaram os invasores implantar os seus modelos de pureza e santidades. Onde não havia poligamia,
introduziram-na. Onde havia, baniram-na. Baralharam
tudo, os desgraçados!
Os homens repetem sempre: sou homem, hei-de
casar com quantas quiser. E forçam as mulheres a aceitar
este capricho. Tudo certo. Vendo bem, a quem cabe a culpa desta situação? Os homens é que defendem a terra e
a cultura. As mulheres apenas preservam. No passado os
homens deixaram-se vencer pelos invasores que impuseram culturas, religiões e sistemas a seu bel-prazer.
Agora querem obrigar as mulheres a rectificar a fraqueza
dos homens. No regime cristão, as mulheres são educadas para respeitar um só rei, um deus, um amor, uma
família, por que é que vão exigir que aceitemos o que
nem eles conseguem negar? Negar não é gritar: é olhar a
lei, mudar a lei, desafiar a religião e introduzir mudanças,
dizer não à filosofia dos outros, repor a ordem e reeducar a sociedade para o regresso ao tempo que passou.
Estou a falar de mais. A pretender dizer que as mulheres
são órfãs. Têm pai mas não têm mãe. Têm Deus mas não
têm Deusa. Estão sozinhas no mundo no meio do fogo.
Ah, se nós tivéssemos uma deusa celestial!
Não vale a
pena escrever nada sobre o amor e o pecado. Neste
mundo da poligamia, as mulheres são proibidas de ter ciúmes. Se o ciúme é amor, então elas estão proibidas de
amar. O pecado original, quando o cometem, não é para
ter prazer, é só para a reprodução. Podem falar dos castigos,
das dores, do sofrimento, que essa linguagem as mulheres conhecem bem. Serpentes há
muitas, só que as nossas não falam, neste éden tropical.
Que sistema agradável é a poligamia! Para o homem
casar de novo, a esposa anterior tem que consentir, e ajudara escolher. Que pena o Tony ter agido sozinho e informalmente, sem seguir a normas, senão eu teria só consentido em casamentos com mulheres mais feias e mais
desastrosas do que eu. Poligamia não é substituir mulher
nenhuma, é termais uma. Não é esperar que uma envelheça para trocá-la por outra. Não é esperar que uma produza riqueza para depois a passar para a outra. Poligamia
não depende da riqueza ou da pobreza. É um sistema,
um programa. É uma só família com várias mulheres e
um homem, uma unidade, portanto. No caso do Tony são
várias famílias dispersas com um só homem. Não é poligamia coisa nenhuma, mas uma imitação grotesca de
um sistema que mal domina. Poligamia é dar amor por
igual, de uma igualdade matematicamente exacta. É
substituir o macho por um assistente em caso de incapacidade: um irmão de sangue, um amigo, um irmão de circuncisão. Á vida é a eterna metamorfose. Vejam só o meu caso.
O meu lar cristão que se tornou polígamo. Era uma
esposa fiel e tornei-me adúltera — adúltera não,
recorri apenas a um tipo de assistência conjugal, informal, tal como a poligamia desta casa é informal.
Mulheres já somos cinco. Filhos são dezasseis, contando com os que ainda estão nas barrigas das mães. Faltam quatro para completar vinte.
Mulher
nenhuma tem lar nesta terra. Mulher é passageira, não
merece terra. Mulher é palha de coco atirada na lixeira.
Mulher é sua própria inimiga, inventa problemas que lhe dão a morte. Mulher é culpada, põe o universo de avesso. Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças.
Fiz uma sondagem de opinião à volta da minha história. Perguntei às
mulheres: o que acham da poligamia? A poligamia é uma cruz.
Um calvário. Um inferno. Um braseiro. E cada uma conta a sua história, trágica, fantástica, comovente.
Pergunto
aos homens: o que acham da poligamia? Escuto risos cadenciados como o gorjear das fontes. Vejo sorrisos que
esticam os lábios de orelha a orelha. As glândulas salivares entram em acção como se estivesse a servir um manjar de agradável paladar. Há aplausos. Poligamia é natureza, é destino, é nossa cultura, dizem. No país há dez
mulheres por cada homem, a poligamia tem que continuar. A poligamia é necessária, as mulheres são muitas.
Volto a sondar a opinião das mulheres sobre o meu
caso. Umas dizem: que horror! No teu lugar mataria as
concubinas todas. Ferveria um pote de óleo e metê-las-ia lá uma a uma como na história de Ali Babá e os quarenta ladrões. Outras dizem: ignora essas mulheres e os filhos delas, faz de conta que nada sabes. Preserva o teu
estatuto de casada, garante apenas que o homem não
fuja para teres sempre em dia a tua quota de amor, nem
que seja uma vez por mês. Outras dizem: seja amiga delas
e só assim vais derrubá-las, sem socos nem palavrões.
Elas não tiveram culpa, os homens é que são malandros,
não prestam. Os homens dizem: a tua obrigação é aceitar tudo o que o teu marido decide. Essas mulheres são
tuas irmãs, e os seus filhos são também teus.
Tenho pena dessas mulheres vendendo amor para produzir pão e sabão. Quando os
encantos à venda acabarem, a miséria baterá à porta.
Que futuro lhes espera, sem emprego nem segurança? E
o que serão estes filhos, sem nome nem sombra? Espera-lhes com certeza o manto da rua. Espera-lhes a fome, a
sarna, a sarjeta da vida.
— Somos éguas perdidas galopando a vida, recebendo migalhas, suportando intempéries, guerreando-nos umas às outras. O tempo passa, e um dia todas seremos esquecidas. Cada uma de nós é um ramo solto, uma
folha morta, ao sabor do vento — explico.
— Somos
cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão.
Cada uma de nós será um dedo, e as grandes linhas da
mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor. Não
estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o
leme da vida e traçar o destino. Reunir as mulheres e os filhos num só feixe para a construção da família do grande
patriarca. Recolher os cacos e esculpir um monumento
amassado de lágrimas e polir com lustro para que reflicta
os raios de todos os sóis do universo.
Por que fugiu de nós o Tony? Pode um marido acobardar-se diante das suas mulheres? Nós as cinco decidimos formar uma, como bem explicámos. Os homens
gostam de conquistar. Depois não conseguem aguentar.
Finalmente arranjam artimanhas, intrigas para depois
escapar. Amor turbulento, este meu. Amor falhado desde
o começo. Se o tempo de vida é dividido entre trabalho,
repouso, convívio, um bom polígamo é uma máquina de
amor, que não trabalha, não convive, ficando apenas a produzir toneladas de amor, para distribuir na medida
certa por todas as esposas, amantes e concubinas.
As minhas rivais entraram todas no paraíso, sim,
entraram. De marginais passaram a gravitar dentro do
cerco da família. De ignoradas e invisíveis passaram a
conhecidas e visíveis. Podem a partir de hoje saudar os
tios, os avôs dos filhos, sem nenhum receio. E eu, o que
ganhei com esta farsa?
Ele parecia um fantasma. Mas por que é que um polígamo é feliz quando as
mulheres se batem e é infeliz quando elas se entendem?
Começou a procissão das mães e das crianças. O
Tony já não aguentava, fugia deles. Rami, aguenta tu com
essa gentalha. Aguentei com elas até onde pude, até que
lhes disse: Isto acontece porque não trabalham. Em cada
sol têm que mendigar uma migalha. Se cada uma de nós
tivesse uma fonte de rendimento, um emprego, estaríamos livres dessa situação. É humilhante para uma
mulher adulta pedir dinheiro para sal e carvão.
— Temos que trabalhar — diz a Lu —, ainda temos
um pedaço de pão porque o Tony ainda está vivo. E
quando ele morrer? Do luto até encontrar um novo parceiro vai um longo período de fome. É preciso prevenir
o futuro.
Arranja um amante pescador, se o teu negócio
é peixe. Um padeiro, se o teu negócio é pão. Um oficial
alfandegário, se o teu negócio é importação e exportação. Um carregador, se o teu negócio é carga e descarga.
Rio-me à socapa e declaro:
— Posso entregar-me a um só por amor.
— E o que é o amor senão um acordo de interesses?
Conseguimos ter um mínimo de segurança para
comprar o pão, o sal e o sabão sem suportar a humilhação de estender a mão e pedir esmola.
O meu marido estava
completamente retalhado. Retalhados todos os meus
bens, a nossa segurança social, a nossa reforma, o nosso
conforto que estava a ser jogado na terra como um
punhado de sal numa panela de água. Eu partilho o pão
e o vinho em comunhão. Partilho o marido por cinco,
partilhamos um amante, a Lu e eu.
Ah, vida! Fazes-me aceitar esta
mordaça só para ter o Tony por perto. Se eu digo não a
toda esta confusão, o meu amor se espanta.
— Para começar, vocês devem elaborar uma escala
conjugal. O marido deve ficar uma semana por cada
uma, numa escala rotativa. Quem menstruar na semana
de escala deve notificar-se imediatamente. Não podem
conspurcar o corpo do Tony com as impurezas das vossas menstruações. Isso pode-lhe provocar aquelas
doenças que fazem os testículos ganhar o tamanho das
abóboras. Devem servir o vosso marido de joelhos, como a
lei manda. Nunca servi-lo na panela, mas sempre em pratos. Ele não pode tocar na loiça nem entrar na cozinha.
Quando servirem galinha, não se esqueçam das regras.
Aos homens se servem os melhores nacos: as coxas, o
peito, a moela. Quando servirem carne de vaca, são para
ele os bifes, os ossos gordos com tutano. É preciso investir nele, tanto no amor como na comida. O seu prato deve
ser o mais cheio e o mais completo, para ganhar mais forças e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a família não existe. Não dêem batatas cozidas no dia
anterior, porque incham os testículos dos homens, principalmente dos rapazes em crescimento. Não comam
nunca a cabeça de peixe, nem de vaca, nem de cabrito,
que é comida de homem. A cabeça do animal representa
a cabeça da família. A cabeça da família é o homem. Façam uma escala conjugal. Uma semana em cada
casa é quanto basta para conviver. Dormir e despertar no
mesmo lugar é saudável. O homem não deve percorrer
o perímetro da cidade em cada dia, porque é desgastante, pode morrer cedo. Tem muitas vantagens: em
casos de aflição, todas saberão o lugar certo onde o
poderão procurar.
Ah, Tony já não estou sozinha no teu encalço. Agora
somos cinco. Quero ver se nos escapas com a tua esperteza de rato.
O rosto da Mauá perdeu o brilho de outros dias e as
palavras caem soltas como folhas mortas no prenúncio
do inverno. Nos olhos, uma aura cor de névoa. Duas lágrimas caindo. O amor é assim. Um dia te ergue à altivez das
catedrais, noutro dia derruba-te ao mais profundo do
chão, fazendo-te chafurdar como um verme nas águas
fétidas dos pântanos.
— Ele andava bem, cantarolava e assobiava quando
tomava banho, numa expressão de felicidade total, mas
quando chegava a hora, só dormia! E como dormia! Ressonava como as trombetas do paraíso e nada mais.
— Não houve nada?
—Nada!
— Dizem que isso acontece, de vez em quando —
esclarece a Ju —, deve ser algum stress, excesso de trabalho, depressão, sei lá!
—Também pensei nisso e fiz de tudo. Coloquei afrodisíacos na sopa, no guisado, no caril, no chá. Não deu
nada!
— Nada?
— Pois é. A princípio julguei que era doença. Mas um
dia encontrei um fio de cabelo na roupa. Um fio longo,
grosso, não daqueles cabelos artificiais. Desconfiei, cacei
e acabei descobrindo. Ele tem outra. Perdi o meu
tempo a preparar afrodisíacos macuas, para ele viver
bem com uma outra qualquer.
Oh, Mauá, para quem já tem cinco,
basta acrescentar um zero para se ler cinquenta. O Tony
terá cinquenta mulheres, vais ver. Na poligamia não há
limites de paixão, Mauá.
— Se é
casada, não há perigo nenhum. Se é solteira, não deve ser
boa peça, mulher solteirona ao lado de um polígamo só
pode ser caça-maridos ou caça-fortunas. Daqui a pouco
ela engravida e exige estatuto. E seremos seis. Se ela é
viúva, tem a herança do seu morto e só quer um
momento de amor. Divorciada? Nunca se sabe o que anda
na cabeça de uma divorciada, se passar o tempo, se caçar
o bolso ou gozar a vida.
— Não nos basta a
escala, esta espera horrível? Se ela se junta a nós, o tempo
de espera passará a ser de seis semanas e não cinco. É
preciso evitar esse desastre.
Poligamia
é destino de homem e castidade é destino de mulher. Um
homem mata para salvar a honra e é aplaudido. Uma
mulher faz ciúmes e é condenada. Nesta coisa de fabricar homens à sua semelhança Deus falhou em alguma fórmula: Ele permanece solteiro e os homens polígamos.
Francamente falando, não tenho nada a ver com a
poligamia. O meu problema já expliquei: se eu reclamo
de mais, perco o marido todo. Se entrar no seu jogo fico
quieta no meu cantinho e ele fica bem mais pertinho. De
resto, nas nossas tradições, essa coisa de poligamia
depende do potencial de cada homem.
Os reis da nossa
terra tinham uma potência superior a vinte mulheres, e
a tia Maria foi a vigésima quinta. Os ministros, governadores e toda a nobreza tinham potencial de cinco a dez.
Os pobres, com poucas posses, tinham o limite de três.
Aliás, três é o número ideal. Homem com uma mulher é
solteiro maior, chefe dos solteiros, é insignificante, não
pode eleger nem ser eleito porque pertence à classe dos
inexperientes. Homem com duas mulheres é um bocadinho homem. Pode dar opinião, mas não pode decidir.
Não pode ser rei, nem regente, nem régulo. Homem com
três é verdadeiro homem, sabe mediar conflitos, sabe
conduzir negócios de família. Nas nossas tradições as
mulheres não têm direito a voto; de resto, na aristocracia
não se vota, mas as mulheres adquirem algum estatuto. Só ganha estatuto aquela que sabe partilhar o marido,
que ultrapassou o ciúme, que preserva os valores da tradição, que cumpre tudo o que a lei manda. Ganha muito
mais prestígio aquela que sugere ao marido um novo
casamento e ajuda a escolher a nova esposa.
Pudera que assim tivesse sido, no meu caso. Não teria
nunca escolhido nem aprovado uma rival tão fogosa
como a Lu.
Mas a realidade do amor é esta. Amar e ser amado é
coisa de homem. Para a mulher, o amor recebido dura apenas um sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar
da vista. Para a mulher, amar é ser trocada como um pano
velho por uma outra mais nova e mais bela — como eu
fui. É ser enterrada viva quando a menopausa chega —
está seca, está gasta, estéril, não pode produzir nem prazer, nem filhos, e já não floresce em cada lua—dizem os
homens.
—A Mauá é o meu franguinho — diz —, passou por
uma escola de amor, ela é uma doçura. A Saly é boa de
cozinha. Por vezes acordo de madrugada com saudades
dos petiscos dela. Mas também é boa de briga, o que é
bom para relaxar os meus nervos. Nos dias em que o trabalho corre mal e tenho vontade de gritar, procuro-a só
para discutir. Discutimos. E dou gritos bons para oxigenar os pulmões e libertar a tensão. A Lu é boa de corpo e
enfeita-se com arte. Irradia um magnetismo tal que dá
gosto andar com ela pela estrada fora. Faz-me bem a sua
companhia. A Ju é o meu monumento de erro e perdão.
É a mulher a quem mais enganei. Prometi casamento,
desviei-lhe o curso da sua vida, enchi-a de filhos. Era boa
estudante e tinha grandes horizontes. É a mais bonita de
todas vocês, podia ter feito um grande casamento. Da
Rami? Nem vou comentar. É a minha primeira dama. Nela
me afirmei como homem perante o mundo. Ela é minha
mãe, minha rainha, meu âmago, meu alicerce.
—Tony—desabafa a Ju com certa amargura —, cada
uma de nós tem a sua função. Para ti as mulheres são
objectos de uso assim como papel higiénico.
Ele vai-se desfazendo entre ofensas e galanteios, como um D. Juan. Não vê as feridas que abre. A ideia de ofensa nem existe, pois não corre nenhum perigo. Perigo de
quê? As mulheres são suas. Loboladas. Compradas. Apaixonadas. Com filhos já paridos. Elas estão seguras, pescadas. Ao peixe pescado, amanha-se, tempera-se, coze-se e come-se. Ele pode dizer tudo o que lhe vai na alma
sem correr qualquer perigo.
— O que te faz então procurar uma nova mulher?
—Vontade de variar, meninas. Desejo de tocar numa
pele mais clara. Vocês são todas escuras, uma cambada
de pretas.
Pela primeira vez enfrentámo-lo sem medo e dissemos todas as verdades. Dissemos tudo o que nos doía.
Delirámos. Estamos cansadas das tuas paixões, dizíamos, esgaravatas aqui e ali, bicas, largas e partes, como
uma ave de rapina. Estamos cheias de filhos e privadas
de carinho. Aos nossos filhos ofereces amor instantâneo,
e corres logo para outros braços e outros carinhos. Em
cada casa há crianças em coro, gritando, onde está papá,
quando vem papá, onde foi papá, eu quero papá. Temos
vontade de nos enfeitar e ficar bonitas. Mas para quem se não temos quem nos veja, quem nos leve ao cinema,
ao baile, ao jantar? Temos vontade de cozinhar melhor.
Mas cozinhar para quem se comemos sós? Tu não passas
de uma abelha, beijo aqui, beijo ali, só para produzir teu
mel, transportando doenças de uma para a outra, e qualquer dia morreremos de doenças incuráveis. O teu coração tem o tamanho de um camião, para transportar tantas
mulheres ao mesmo tempo. Calamos as nossas ansiedades durante quatro semanas à espera da vez. Guardamo-nos o mais possível para te sermos fiéis. Mas presta atenção: isto vai acabar mal. Os dias não são todos iguais. A
natureza tem outras flores, outros perfumes e outro mel.
Tu és a nossa estrela, mas os planetas também brilham,
iluminam e fazem sorrir.
— Desde quando vocês me afrontam?
— Desde hoje, agora, e assim será.
—Com que direito?
—Com o direito que a poligamia nos confere. Podíamos até convocar um conselho de família para declarar
a tua incapacidade e solicitar a liberdade para ter um
assistente conjugal, sabes disso?
—Vocês são minhas esposas.
—Que esposas, Tony—diz a Ju, com voz tristonha —,
nós somos mulheres de ninguém, mulheres sozinhas
com uma cruz às costas.
— O que quer isto dizer?
—Simplesmente que amamos a tua companhia, mas
a solidão pode ser melhor ainda.
— Posso largar-vos na miséria por baixo da ponte,
saibam disso. Fiz-vos um grande favor, registem isso. Dei-vos estatuto. Fiz de vocês mulheres decentes, será que não
entendem? São menos cinco mulheres a vender o corpo
e a mendigar amor pela estrada fora. Cada uma de vocês
tem um lar e dignidade, graças a mim. Agora querem controlar-me?
Para estes homens, amar uma mulher é
prestar um favor a ela. Levá-la ao altar é dar um estatuto
a ela. Ah, o meu Tony é um generoso distribuidor de estatutos!
Aqui no sul, os jovens iniciados aprendem a
lição: confiar numa mulher é vender a tua alma. Mulher
tem língua comprida, de serpente. Mulher deve ouvir,
cumprir, obedecer.
As mulheres entram no coro das recriminações, dos
conselhos e todas essas coisas que julgam saber. E sem
pensar começam a falar da vida que mal conhecem.
Espalmam-nos bem no solo como papaia madura na
planta do pé. Falam-nos do amor como se na vida tivessem recebido algum. Abandonam o inimigo, viram os canos para os aliados, e fazem o jogo dos homens. Ah, vida
ingrata! Para quando a solidariedade entre as mulheres?
Generosas mães, oferecem-nos aquilo que têm. Coroas
de fel e espinhos na passagem de testemunho, rainhas
cessantes, entronando a nova geração. Coroam-nos de
rainha de obediência. Miss submissão, damas de temor.
Como conspiração, fomos abatidas por
outras mulheres. Como força, fomos aniquiladas pela fraqueza das outras mulheres. Ninguém nos perguntou o
que sentíamos, o que comíamos, como vivíamos. Atiraram-nos da falésia, caímos em queda livre, esborrachámo-nos. Com fel e vómitos amortalharam os nossos
corpos.
Semana vai, semana vem. Alimentamos o corpo de
sonhos e memórias de amores que duram apenas uma
semana. De coisas boas não se enche o papo. tudo o que
é bom dura pouco. Poligamia é isto mesmo. Encher a
alma com um grão de amor Segurar o fogo que emerge
do corpo inteiro com mãos de palha. Estender os lábios
à brisa que passa e colher beijos na poeira do vento.
Esperar. Ouvir os suspiros do teu homem nos braços de
outra mulher e esconder o ciúme. Sentir saudade e não
sofrer. Sentir a dor e não chorar.
Francamente falando, não tenho nada a ver com a
poligamia. O meu problema já expliquei: se eu reclamo
de mais, perco o marido todo. Se entrar no seu jogo fico
quieta no meu cantinho e ele fica bem mais pertinho. De
resto, nas nossas tradições, essa coisa de poligamia
depende do potencial de cada homem. Os reis da nossa
terra tinham uma potência superior a vinte mulheres, e
a tia Maria foi a vigésima quinta. Os ministros, governadores e toda a nobreza tinham potencial de cinco a dez.
Os pobres, com poucas posses, tinham o limite de três.
Aliás, três é o número ideal. Homem com uma mulher é
solteiro maior, chefe dos solteiros, é insignificante, não
pode eleger nem ser eleito porque pertence à classe dos
inexperientes. Homem com duas mulheres é um bocadinho homem. Pode dar opinião, mas não pode decidir.
Não pode ser rei, nem regente, nem régulo. Homem com
três é verdadeiro homem, sabe mediar conflitos, sabe
conduzir negócios de família. Nas nossas tradições as
mulheres não têm direito a voto; de resto, na aristocracia
não se vota, mas as mulheres adquirem algum estatuto.
Só ganha estatuto aquela que sabe partilhar o marido,
que ultrapassou o ciúme, que preserva os valores da tradição, que cumpre tudo o que a lei manda. Ganha muito
mais prestígio aquela que sugere ao marido um novo
casamento e ajuda a escolher a nova esposa.
Tenho um medo terrível de me apresentar diante do
meu espelho, mas vou. Preciso. Quero ver a nudez do
meu corpo. Será que me vai assustar? Quero também ver
a nudez da minha alma. Lanço um olhar ao espelho que
me repreende: será mesmo por amor que chegaste a este
ponto? E que tipo de amor é este que te rouba a dignidade e a vergonha a ponto de mostrar o teu nu diante das
tuas rivais?
Escondo os meus olhos do espelho. Cobre-me de
indecência este amor, a ponto de me deixar arrastar por
actos tão indecorosos. Que mulher sou eu que não se estima? Que pessoa sou eu, que pisa a vergonha e o
ciúme, transformando o meu corpo num objecto de vingança? Deus meu, tira-me desta farsa, desta hipocrisia,
desta maldade disfarçada!
Nesta luta não ganhei, só perdi. Mas
sou rija, forjada, tenho nervos de aça Meu choro não é
de fraqueza, é de raiva. Vou arregaçar as mangas e entrar
numa nova briga. Vou atacar o Tony com a sua própria
arma: mulheres. Não se pode dormir com todas as
mulheres do mundo, sabe-se. Mas vou incitá-lo a ter
todas as mulheres do planeta. Todas! Nas minhas têmporas o cabelo branco já espreita. Sinal de maturidade e
sabedoria. Isso é experiência. Estas quatro mulheres à
minha frente são as minhas armas e as outras que ainda
hão-de vir serão as minhas balas. Veremos quem sairá
vencedor!
Precisa-se de um homem para dar dinheiro. Para
existir. Para ter estatuto. Para dar um horizonte na vida a
milhões de mulheres que andam soltas pelo mundo.
Para muitas de nós o casamento é emprego, mas sem
salário. Segurança. No tempo da operação produção,
eram presas todas as mulheres que não tinham maridos
e deportadas para os campos de reeducação, acusadas
de serem prostitutas, marginais, criminosas. Por todo o lado há assédio sexual para os cavalheiros mais abastados tanto em músculos como em dinheiro.
Os homens também assediam mulheres. Para guardar em casa e lavar a roupa. Obedecer. Pôr a mesa e tirar
a louça. Parir filhos e encher a casa. Dizem que um
homem forte não chora quando a mulher o abandona.
Um homem solitário coloca os pés no caminho, dá dois
passos e sente dor nos joelhos e desiste da marcha porque é longa. Arranja um pretexto e diz que, para lá do
horizonte, não há vida, só pedras. E consola-se no álcool
como companheiro, a solidão é má conselheira. Homem
sem mulher tem peso de vento. É visto como irresponsável, as mulheres o rejeitam porque o julgam pouco macho.
Uma mulher solteira diz que o mundo é uma bola
de esterco, que ninguém lhe entende. É azeda. Grita por
tudo e por nada. E diz que as flores são ervas. Que o brilho do sol apenas fere. Que é melhor a noite e o escuro.
Busca a morte em vida. É um cadáver em movimento.
— For isso me afrontam, porque têm dinheiro. For
isso me abusam, porque têm negócios. Por isso me faltam ao respeito, porque se sentem senhoras. Mas eu sou
um galo, tenho a cabeça no alto, eu canto, eu tenho dotes para grandes cantos. Pois saibam que o vosso destino é
cacarejar, desovar, chocar, olhar para a terra e esgaravatar
para ganhar uma minhoca e farelo. Por mais
poder que venham a ter, não passarão de uma raça cacarejante mendigando eternamente o abraço supremo de
um galo como eu, para se afirmarem na vida. Vocês são
morcegos na noite piando tristezas, e as vossas vozes
eternos gemidos.
—Espelho meu, o que será de mim?
O espelho dá-me uma imagem de ternura e responde-me com a maior lucidez de sempre.
— Não serás a primeira a divorciar, nem a última. Os
divórcios acontecem todos os dias, como os nascimentos e as mortes, mas tranquiliza-te. Se homem e mulher tivessem sido feitos para morrer
juntos, teriam nascido juntos, do mesmo ventre e ao
mesmo tempo. Mas cada um nasce no seu dia e na sua hora. Só o amor tem a força da união.
Ah,
meu amor ingrato. De ti sempre aceitei tudo, suportei
tudo: doenças, desejos, problemas, lamentos, vergonhas,
sujeiras, conflitos. Agora libertas-te, dispensas-me, trocas-me, humilhas-me, por outras mais novas, mais belas.
Escolhi o casamento como profissão.
Na carreira matrimonial a mulher nunca sobe de escala.
Desce. Estou na idade de subir ao trono e consagrar-me
rainha nesta vida, e eis que me retiram a cadeira real. O
que será de mim? Se oTony corre comigo daqui. onde irei
viver com os meus Filhos? Procurar um novo marido?
Com tantos filhos?
— Espelho meu, sou uma bilha de barro fendida no
meio e já não retenho água. Sou sapato gasto no meio da
sola que já não serve para marcha nenhuma. Sou uma falhada. Sou uma frustrada. Uma mulher abandonada por
incompetência conjugal. Uma velha. Um trapo. Um traste.
—Mas o mundo não começa contigo, gémea de mim.
Não termina contigo. Há neste mundo mulheres sofrendo
muito mais do que tu. Se o divórcio se consumar é porque estava escrito no livro da vida que tu e o Tony não
morreriam juntos.
— Como chegaste ao extremo de fazer seis filhos,
sem prazer—diz a Mauá com muita compaixão—, com
um homem que nunca te quis?
— Tinha a esperança de prendê-lo. Mas no lugar de
o prender me rasgava, e multiplicava.
— Muito me espanta esta cultura do sul! — conclui a
Mauá.
— Para nós, o amor e o prazer são muito importantes. Quando um destes elementos falha, mudamos de
parceiro. Para quê sofrer?
— Queria ter mais filhos. Fiz de tudo para evitar congregar diferentes apelidos num só ventre. Tinha medo de
ser chamada prostituta. Pobre. Feiticeira. Ladra de maridos. A nossa sociedade não aceita uma mulher com
filhos de pais diferentes, e apelidos diferentes.
—Ter filhos de pais diferentes não é fraqueza. Antes pelo contrário, uma mulher assim amou
muito e foi amada. É experiente. Teve a sorte de ser desejada por muitos, a vida é feita de tentativas, falha aqui,
acerta ali, qual é o problema?
— É uma questão moral, Saly
— Moral! — diz a Lu com voz severa. — Uma moral
que vos obriga a chocar ovos de víbora. Veja só o que a
moral fez de ti. És um fantasma. Vives no inferno. O
homem fez de ti simples máquina reprodutora e tu aceitaste o pacto. É muito grave a tua situação. No teu lugar
teria abandonado este homem faz muito tempo.
—A nossa sociedade do norte é mais humana—explica a Mauá.—A mulher tem direito à felicidade e á vida.
Vivemos com um homem enquanto nos faz feliz. Se estamos aqui, é porque a harmonia ainda existe. Se um dia o
amor acabar, partimos à busca de outros mundos, com a
mesma liberdade dos homens.
As vozes das mulheres do norte censuram em uníssono. No sul a sociedade é habitada por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a morrer sem
saber o que é amor e vida. No sul as mulheres são tristes,
são mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. Não cuidam do
corpo, nem fazem massagens ou uma pintura para alegrar o rosto. Somos mais alegres, lá no norte.
— Vocês, do sul, não se preocupam com coisas importantes — a Mauá volta à carga. — Fazem amor à
moda da Europa. Concentram toda a energia no beijo na
boca, como se o tal beijo valesse alguma coisa. Dizem
que pensamos apenas no sexo? Quantos homens do sul
abandonaram os lares para sempre? Chamam-nos atrasadas. Vocês só têm livros na cabeça. Têm dinheiro e brilho. Mas não têm essência. Têm boas escolas, empregos,
casas de luxo. De que vale tudo isso se não conhecem a
cor do amor? De que vale viajar para a lua para quem
ainda não viajou para dentro de si próprio? Já Fizeste uma
viagem para dentro de ti, Rami? Nunca, vê-se pela amargura que tens no rosto. O paraíso está dentro de nós,
Rami. A felicidade está dentro de nós. Vocês, do sul, ainda
não são mulheres, são crianças. Seres reprodutores apenas. For isso os homens vos abandonam a torto e a direito. A vossa vida a dois não tem encantos. Por isso, mal
declararam a independência gritaram: abaixo os ritos de
iniciação. O que julgavam que faziam?
— Não tens culpa — comenta a Saly—Vocês do sul
deixaram-se colonizar por essa gente da Europa e os
seus padres que combatiam as nossas práticas. Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de nós? Depois trouxeram a pornografia, essa estupidez só para enganar os incompetentes e entreter os tolos.
— Pergunta ao Tony se queres confirmar. Às vezes
digo-lhe: se não trazes o que quero, faço a greve de sexo.
Vais ficar em jejum. Fecharei as minhas portas para a viagem no tempo. Ele fica atrapalhado e faz de tudo para me
agradar. Rami, tens que acreditar. Todo o homem é escravo nas mãos de uma mulher que sabe amar.
—Se fosse homem não veria toda esta desgraça. Maldita a hora em que Deus me fez mulher—desabafo.
— Bendita hora em que Deus me fez mulher—diz a
Mauá.—As mulheres foram feitas para o amor e não para
o sofrimento. Posso comer sem trabalhar, que oTony dá-me tudo o que quero, porque ele é meu escravo.
Dói-me esta revelação. O meu marido é sugado por
mulheres-anfíbios. Mulheres com escamas. Mulheres
lulas. Mulheres polvos. Elas vêm do mar e habitam a terra,
meu Deus, elas acabaram comigo, derrubaram o meu
casamento. Venceram-me. Estou perdida. Agora compreendo por que é que os ritos de iniciação foram combatidos, mas, mantidos em segredo, sobreviveram durante séculos como sociedades secretas. Homem que
passa por essa escola sabe amar. Mulher que passa por
essa escola encanta, enlouquece, vive, vibra.
A Mauá gaba-se de ter um cacho de lulas capazes de embrulhar um homem como uma fralda. Louca!
Que vá à fava com as suas magias.
Pergunto-lhes se são felizes com o seu destino. Cada
uma me conta histórias intermináveis de magias de
amor, com makangas, xitbumivas, wasso-wasso, sais,
ervas, mezinhas, fumo de tabaco, cannabis, vassouras,
garrafas, mentol, só para fazer um homem perder a
cabeça por ela. Olhar para as outras e pensar apenas nela.
Para não despertar o fogo com as outras e dormir apenas
com ela. Para dar maior sensação. Maior impressão. Colar. Prender. Sugar. Fazer o homem abandonar o corpo e seguir o caminho das estrelas mais longínquas.
Escuto a história desta, a história daquela. Todas
dizem a mesma coisa. Sobram poucos homens para alimentar as nossas bocas canibais. É por isso que os disputamos e só vence quem tem garras. Nós, as menos corajosas no combate, vivemos na renúncia e abstinência
sofrendo o martírio da insónia.
E tu, polvo implacável, onde consegues tanta caça?
Sou polvo, não percebes? Aspiro tudo. Tenho um pote
de mel que nunca acaba. Sou uma fonte inesgotável, dou
de beber a todos os caminhantes. Sou a inimiga emboscada que provoca incêndios, explosões, insónias, pesadelos e enlouquece os homens.
Olho para ela e baixo a cabeça e digo: dás de beber
a qualquer um, a troco de quê? Olha que essa fonte é o
santuário da vida, e os lugares santos se devem purificar.
Esse cantinho que tens contigo é o altar que Deus criou
para manifestar todo o seu amor. Não o profanes. Mas se
te faz feliz, bem hajas!
Não respondo, apenas lamento: pobrezinha! Entristeço e choro. Esta... vive num compartimento hermético
sem nascente nem poente. Não pode chorar porque falta
ar. Não pode gritar porque não tem eco. Não conhece a
brisa, nem azul, nem estrelas. Aprendeu a dizer sim e a
nunca dizer não. Aprendeu a dizer obrigada, a dizer perdão e a viver na humilhação. Quando o carrasco diz:
Maria, chega para aqui, ela responde, sim senhor. Agora
deita-te. Sim senhor. Agora abre. Sim senhor. Agora come.
Sim senhor. Agora chega. Obrigada senhor. Agora levanta-te, comeste de mais hoje. Perdão senhor.
—Vocês são do norte, e tratem das vossas coisas nas
vossas casas, que nós, do sul, temos as nossas tradições
— responde o irmão do Tony — Não nos venham aqui
dar ordens porque vocês, macuas, não são homens. Na
vossa terra as mulheres é que mandam. Onde já se viu
um homem casar e ir viver na família da mulher? Onde já
se viu um homem trabalhar a vida inteira para abandonar o produto do suor nas mãos dela, quando morre ou
quando há separação?
—As mulheres são flores, devem ser bem tratadas. As
mulheres são fracas, devem ser protegidas. Quem melhor que a família da mãe para dar carinho e protecção?
Quando morre o marido, a casa fica com ela e com os filhos. Afinal foi construída para eles.
— Vocês, do norte, são escravos delas. Trabalham a vida inteira só para elas. Até os filhos têm o apelido da
mãe. Que tipo de homens vocês são?
— E vocês do sul são brutos, tratam as mulheres
como bichos. Alguém, neste mundo, sabe quem é o verdadeiro pai dos filhos da mulher? O senhor, que tanto nos
insulta, tem a certeza de que os filhos que diz serem seus
o são, de certeza? Na nossa terra os filhos têm o apelido
da mãe, sim. Pai é dúvida, mãe é certeza. Um galo não
choca ovos, nunca. É bom dar a César o que é de César.
—Soubemos dos maus tratos que estão a dar à D. Rami—diz o tio da Mauá. — Gostaríamos de declarar que
as macuas e as macondes não são gado para serem maltratadas. Viemos avisar que não devem tocar num centímetro da pele das meninas. Não queremos ouvir falar
desses vossos rituais de cortar cabelo e fazer vacinas.
— Isso tudo é conversa, xingondos desgraçados.
Vocês investem nas mulheres? Que tipo de investimento?
—Investimos, sim. Porque a mulher é terra. Sem adubar, sem regar, ela nada produz. Enquanto vocês batem
nelas, pisam nelas, nós as enfeitamos, amamos e cuidamos como plantas do mais belo jardim.
Chamam-nos para uma nova reunião de família, a
mim e à Ju. As nortenhas ficam de fora. Viram-se todos
contra mim e descarregam a fúria.
—Rami, tens que assumir a responsabi1idade do que
se passou com o Tony Ele perdeu a vida por tua culpa. Ele começou a arranjar mulheres lá fora e acabou
por se tornar polígamo, porque não o satisfazias. Porque
tinhas sempre a mesa mal posta e a cama fria. Porque és
altiva e nada compreensiva. Porque não sabias amar nem
conviver. Se não fosse essa tua mania
de juntar as esposas, nada disto teria acontecido. Juntaram-se e as cinco fizeram correntes negativas dentro
desta casa. Mataste-o para evitar o divórcio e
ficares com os bens do falecido.
São as mulheres que falam. E como falam! Vomitam
dores, espinhos, desgostos, frustrações.
Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os
olhos dos meus cunhados, candidatos ao sagrado acto,
brilham como cristais. Cheira a erotismo no ar. A expectativa cresce. Sobre quem cairá a bendita sorte? Quem irá
herdar todas as esposas do Tony? Fico assustada. Revoltada. Minha pele se encharca de suor e medo. Meu coração bate de surpresa infinda. Kutchinga!'Eu serei tchingada por qualquer um. E todos aguçam os dentes para
me tchingarem a mim. A parede é firme e fria. Ampara-me.
O dorso do chão é duro, é seguro. Suporta-me. É tão cruel
e tão malvada esta gente... Peço a qualquer Deus qualquer socorra Ninguém me ajuda, nem Deus, nem santos. Kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurara viúva na nova vida, oito dias depois da fatalidade.
Kutchinga é carimbo, marca de propriedade. Mulher é
lobolada com dinheiro e gado. É propriedade. Quem
investe cobra, é preciso que o investimento renda.
No meio desta desgraça, há uma
coisa boa. Com a falta de homens que dizem haver, é bom
saber que a viuvez me reserva um outro alguém, mesmo
que seja de vez em quando. É confortante saber que tenho onde encostar o meu ombro sem precisar de andar
pelas ruas a vender os meus encantos diminuídos pelo
tempo. Incesto? Incesto não, apenas levirato. Incesto só
há quando corre o mesmo sangue nas veias.
Depois do funeral, a divisão de bens. Carregam tudo
O que podem: geleiras, camas, pratos, mobílias, cortinados. Até as peúgas e cuecas do Tony disputaram. Levaram quadros, tapetes daa casa de banho. Deixaram-me as
paredes e o tecto, e dão-me um prazo de trinta dias para
abandonar a casa. Pilharam a mim, só a mim. As outras
não. Contam histórias mais extraordinárias à volta delas.
Dizem que não são viúvas verdadeiras. Que são nortenhas e têm cultura diferente. Que os xingondos são unidos e provocar um é provocar todos. Que os espíritos
desses senas, macuas, macondes, além de poderosos são
perigosos. Beneficiar do estatuto de viúva é ficar nua, careca e com uma mão à frente e outra atrás?
—Vi a tua morte e fui ao teu funeral — desabafo. —
Usei luto pesado. Os malvados da tua família até o meu
cabelo raparam. Até o kutchinga, cerimónia de purificação sexual, aconteceu.
— Quando?
— Há poucas horas, nesta madrugada. Sou tchingada de fresco.
Ele olha para o relógio. São dez horas da manhã.
— Quem foi o tal?
— Foi o Levy
—Não me maltratou, descansa. Foi até muito suave, muito gentil. É um
grande cavalheiro, aquele teu irmão.
Falo com muito prazer e ele sente a dor de marido traído. No meu peito explodem aplausos. Surpreendo-me.
Sinto que endureci nas minhas atitudes. O meu desejo
de vingança é superior a qualquer força deste mundo.
— E agora?
— Ah, Tony! Estou magra, desfigurada, acabada.
Careca. Raparam-me o cabelo com navalha, como uma
reclusa. Fui tatuada com ferro na brasa. Carimbada
como uma escrava. Deserdaram-me de tudo como uma criminosa.
Na cabeça rapada colocaram-me uma coroa de espinhos. Deram-me um trono de espinhos. Um ceptro de
espinhos. Varreram a casa e deixaram este tapete de espinhos.
—Rami, tu sabias que não era eu, tu sabias.
— Sabia, sim. Mas quem me iria ouvir? Alguma vez
tive voz nesta casa? Alguma vez me deste autoridade para
decidir sobre as coisas mais insignificantes da nossa
vida? O que querias tu que eu fizesse?
O coração do homem quebra em mil pedaços.
Honra, dignidade, orgulho, vaidade, são ondas imensas
onde todo ele se afunda. Está num precipício. A sua alma
mergulha num oceano fundo. Não sabe nadar.
— E as outras?
— Estão desorientadas, coitadas. Elas são viúvas
jovens e belas. Devem estar a planear novos amores. Eu
já tenho o Levy. Os teus irmãos não param de visitá-las
para prestar condolências. Mas tiveram mais sorte do que
eu e mantiveram tudo o que era delas. O espólio, a pilhagem e todas as barbaridades foram só para mim.
A minha linguagem é mais dura que uma rajada de
granizo. Chicoteia. Eu dizia tudo sem rodeios. Queria que
ele provasse de uma só vez o seu próprio veneno. Que
sentisse o cheiro do seu próprio esterco, e que reconhecesse de uma vez a maldade que o rodeia.
— Foi desumano o que fizeram contigo. Ah, cultura
assassina!
Ele entra em delírio. Diz que não sabia que a vida era
má, nem imaginava que as mulheres sofriam tanto. Sempre achara que a sociedade estava bem estruturada e que
as tradições eram boas, mas só agora percebia a crueldade do sistema.
— Um homem mede-se pela solidez da obra que
deixa, quando a morte chama. Olha à tua volta: o que vês?
Ruínas, desolação, tristeza. Construíste o teu castelo na
areia do mar, foi derrubado pela maré, pelo vento, pelos
gatos, pelos ratos, és um homem fraco, um homem pobre,
meu Tony.
—Disseste que concordavas com a poligamia, Rami.
— Na poligamia verdadeira, não é o homem que
impõe os seus desejos de ter mais uma, mas as próprias
mulheres sugerem um novo casamento. As mulheres
não são violentadas e vivem umas perto das outras. Os
casamentos são programados, planeados.
Vou ao espelho para
ver se a minha careca se desfaz. Fecho os olhos com
medo de ver a minha terrífica imagem. Voltei a abri-los.
Estavam completamente embaciados de lágrimas. De
repente o meu espelho plano se transforma em bola de cristal e reflecte imagens, reflecte segredos. Prediz o futuro e revela-me segredos inconfessáveis. Pergunta-me:
— Quem és tu, que não reconheço?
Entre lágrimas eu respondo:
— Sou aquela que sonhou amada e acabou desprezada. A que sonhou ser protegida e acabou por ser trocada. Sou eu, mulher casada, quem foi violada mal o
homem deu sinais de ausência. Sou a Rami.
— Não és a Rami. Tu és o monstro que a sociedade
construiu.
Encostei o meu rosto no espelho e chorei perdidamente.
Ganhei o controlo de mim mesma e olhei de
novo. A imagem do espelho sorri. Dança e voa com leveza
de espuma. Levita como um jaguar correndo felino nas
florestas do mundo. Era a minha alma fora das grades
sociais. Era o meu sonho de infância, de mulher. Era eu,
no meu mundo interior, correndo em liberdade nos
caminhos do mundo.
— Diz-me, espelho meu. Haverá no mundo mulheres mais traídas do que eu?
—São todas. Todas! No amor, todos os homens são traidores.
— Explico-me melhor: para os homens, primeira
esposa é a esposa de serviço, e a segunda a esposa do
prazer. A primeira é a esposa de espinhos e a segunda
esposa de flor. Se a vida da mulher é a poligamia, jamais
sereia primeira. Quero ser sempre o que agora sou: a terceira. Prazer e flor. Vendo bem, tu sofres, eu sorrio. Tu semeaste, eu
colhi. Nunca soube o que era sofrimento conjugal. Tu
lavas o marido e o perfumas, nós, as segundas e terceiras,
recebemo-lo já lavado, perfumado. Tu o preservas e nós
o usamos e gastamos. O Tony vem aos meus braços só
para ser feliz e quando chega a hora parte sem deixar
problemas. E contigo deixa toda a carga: levar a sogra à
consulta, visitar o irmão doente, ir a todos os eventos
sociais em nome da família, representá-lo em funerais,
etc, enquanto eu, a terceira, estou livre de tudo, cuido da
casa e do meu corpo, preparando-me apenas para o
amor.
Meu Deus, ela não mente. Ela é o meu espelho
revelando de forma cruel o meu retrato de submissa.
—Tenho um marido sete dias de quatro em quatro
semanas. No tempo de espera, está o Vito a fazer-me
companhia para quebrar a monotonia. Deves compreender, sou de carne e não me alimento só de arroz.
— O que sentes pelos dois?
— O Tony me cuida, respeito-o. O Vito me agrada,
amo-o. Ambos me completam. Casada com o Vito, terei
de mais prazer, amor e novas rivais.
— És uma mulher dura.
— Uma mulher é educada para ser sensível como a
boneca de porcelana, que se desfaz em cacos na simples
queda. Preparada para a fineza e delicadeza, mas os
homens dão-nos carícias com mãos rijas como ferro e
nos quebram ao simples toque. Querem-nos suaves e
meigas como cabelos. Mas os homens cortam-nos com
a frieza das tesouras de aço. Aos homens ensinam a amar a si mesmos e só
depois ao próximo. Às mulheres se ensina a amar ao próximo, mas nunca a amarem-se a si próprias. Eu amo a
mim mesma e depois aos outros, tal como os homens.
Agora entendo. O mundo é este chão que os meus
pés pisam. É esta cadeira onde me sento. É o carinho que
dou, é a flor que recebo. O mundo é o meu espelho, o
meu quarto, o meu sonho. O mundo é o meu ventre. O
mundo sou eu. O mundo está dentro de mim.
Para nós, mulheres, um marido não é leveza, é um
fardo. O marido não é companheiro, é dono, é patrão.
Não dá liberdade, prende. Não ajuda, dificulta. Não dá
ternura, dá amargura. Dá uma colher de gosto e um
oceano de desgosto.
— Um homem em casa é trabalho duplo — diz a
Mauá —, não há tempo. É preciso perseguir os negócios
e recolher o dinheiro que passa.
—Já ninguém quer o Tony? — pergunta a Saly num
grito.—O que se passa? Ele está há mais de quinze dias
na minha casa e nunca mais sai e vocês nada reclamam.
Não fizemos nós o pacto da partilha, semana aqui, semana ali? Eu também preciso do meu tempo. Quero cuidar dos meus negócios, ganhar dinheiro para criar este filho, e projectar o meu futuro. Se nenhuma de vós o quer,
eu juro, hei-de enxotá-lo à pedrada. Não posso viver com
ele eternamente.
— Calma, Saly — diz a Ju. — Hei-de recebê-lo, mas
aviso desde já. Cuidar dele tornou-se um fardo. Cozinhar
para o almoço e jantar. Preparar a mesa, levantar a mesa.
Suportar-lhe os caprichos a que vocês o habituaram é
coisa que nunca mais irei fazer.
O mundo
está em permanente mudança. Muda em silêncio. Só o
Tony é que não deu pela mudança. Está na dança de
homem, onde tudo é permitido. No ar há maldade com
sabor a néctar. Há uma flor envenenada em cada beijo.
Tortura feita com doçura, gota a gota, na pedra dura. Não
reparou ainda na minha vingança silenciosa, nem vê as
leoas que o devoram deliciosamente. Ah, meu Tony Para
as mulheres vives, pelas mulheres, morrerás.
— Se tivéssemos estudado mais, teríamos uma sorte
diferente. Poderíamos ter a liberdade de escolher entre
o amor e a carreira. Entre a cruz e o calvário. Entre o forno
e a frigideira. Mas agora não temos nem uma coisa nem
outra — digo eu.
— Estudar mais na aldeia de onde eu venho? Para
quê?—comenta a Saly com ar sarcástico. — Para contar
o número de pássaros que debicam os grãos nos campos de arroz? Para contar os dentes que faltam na boca
desdentada do homem velho que te dão como marido?
— Oh, estudar é importante, nem que seja para ler a
receita do médico, Saly — digo eu.
— Nas nossas aldeias a vida é virgem, homem e
mulher são gémeos da natureza, regidos pelo sol e pelas
estações do ano—confirma a Mauá.—As pessoas estão
perto de Deus. O hospital está a vinte quilómetros, a
escola a quinze, não há estrada, nem emprego, nem perspectivas. As pessoas nunca viram um carro nem luz eléctrica. O mais importante é procriar. Quanto mais filhos,
melhor, morrem uns tantos mas sobram outros para
apoiar na velhice. Se eu fiz a sexta classe é porque a
minha tia era professora e vivia perto da escola.
—Vocês, as mulheres do sul, têm mais sorte — diz a
Saly—Nas nossas aldeias as raparigas casam-se aos doze
anos, mal terminam os ritos de iniciação. Desistem da
escola na terceira classe e têm o primeiro filho antes dos
quinze anos — conclui, numa voz de lamento.
— Será que a escola não é importante? — pergunto
à Saly
— É, sim, e como é, meu Deus! É por isso que estou
de novo a estudar. Quero falar bem português e escrever
bem. Quero gerir bem o meu negócio.
— Na poligamia, as mulheres todas velam pelo seu
homem, sabes disso — recorda-me a Ju. — Quando as
esposas mais velhas se cansam, envelhecem, como nós,
não pela idade, mas pelo uso, é preciso rejuvenescer o lar
com sangue novo de uma virgem sensível como um ovo.
Esta reunião me dói. Sempre acreditei que o amor é
uma eternidade. Primeiro foi o Tony a quebrar as minhas
crenças. Agora são estas abelhas, com os seus amores de
um instante. Morderam o pólen e esvoaçam para outros
ares, abandonando a flor que murcha. E elas dizem saber
amar mais do que eu.
— Em matéria de presença, um marido polígamo é
tal e qual um amante. É aquele que vem, aquele que vai,
aquele de quem nunca se sabe quando parte e quando
volta, é como a chuva, o marido polígamo. Mas é pior do
que um amante. O marido polígamo é complicado, caprichoso, orgulhoso, preguiçoso. Senta-se no trono o dia
inteiro e dita ordens como um rei. Depois de comer,
banha-se, perfuma-se e parte. E nós sempre mendigas,
de mão estendida, formamos um clube, reforçamos as
nossas fraquezas e exigimos os nossos direitos. Estou a
reivindicar direitos? Mas que direitos? O que é um marido polígamo senão um ser errante que se espalha pelo
mundo, como uma nuvem, uma semente, uma pluma, um
pedaço de ar? Por acaso pode-se exigir direitos ao vento?
—Qual vai ser o nosso fim, quando ele tiver a coluna
quebrada, e de bengala na mão? — reclama a Ju. — As
escalas serão mais prolongadas, um mês aqui, outro mês
ali. Se a espera semanal é tão dolorosa, como será depois?
O mais certo é ficar com apenas uma, e viver com as
outras no pensamento. Qual de nós vai ser a sortuda, que
vai herdar esse ferro-velho, quando a velhice chegar? Talvez a Rami, que é a primeira e a dona, com documentos
de propriedade. Talvez a Saly Ou talvez a Mauá a quem
ele ama tanto. Nós, as restantes, viveremos na solidão das
solteironas e das viuvonas. Eu não quero ser nem solteirona nem viuvona. Em algum canto deste mundo há-de
existir um homem só para mim.
Nós, mulheres, vivemos num poço silencioso e profundo e julgamos que o céu tem o diâmetro do nosso ponto de mira. Mas um dia descobrimos que
as águas que nos cobrem têm a cor do céu. Os nossos
sonhos crescem à altura das estrelas. Descobrimos que
os gritos dos homens são o marulhar das ondas, não
matam. E a grandeza dos homens simples coroa de
pavão. Descobrimos que há coisas extraordinárias no
mundo proibido que merecem ser provadas. Descobrimos que os lírios dos campos têm perfume divino e que
o amor verdadeiro tem gosto de liberdade. Por isso voltamos a ser crianças.
E queremos tudo. O amor. A
ilusão. O sonho. O cheiro da terra e o cheiro do mar num
só perfume. A velhice e a infância no mesmo ponto. Procuramos em vão a juventude perdida. E procuramos salvar a vida que resta com garras de falcão. Gostamos de
fazer poemas de estilo romântico. Receber cartinhas de
amor. Ir às quermesses e subir à montanha-russa. Comer
algodão doce e lamber sorvetes. Lançar o coração no
mar de aventuras. Trocar beijos ao luar. Andar de mãos
dadas à beira do mar com o homem amado e contar as
estrelas do céu.
— Deixa-me partir para um mundo onde não há
mulher nenhuma, sem tentações, nem amores, nem
filhos. Um mundo só de homens. Mas sei que esse
mundo não ultrapassa as fronteiras da minha imaginação. Por isso vou para a casa da única mulher do mundo
com amor sem igual: a minha mãe.
Hoje, quando fecho os olhos vejo como a vida me
estrangulou. Teci sobre mim um manto de espinhos. Sangro. Vivi a vida inteira com uma espada aguçada encostada no pescoço. Não a vi. Fiz do amor um jogo suicida e os vossos choros me
perseguem como fantasmas. Ter muitas mulheres não é
ser macho, é ser pasto. Nem sei como esses filhos nasceram ou cresceram. Nunca acompanhei as mães à maternidade, nunca os peguei ao colo, são tantos que até lhes
troco os nomes, nunca fui aos aniversários deles. Vocês todas juntas são leoas soltas na arena. Derrubaram-me, Rami. Acabaram comigo
— Ah, meu Tony não podes sofrer assim. Tu és apenas um palco, onde o teatro da vida corre. És uma praça
onde desfilam tradições, culturas, princípios, tiranias. A
poligamia é um sistema com filosofia de harmonia. Uma
mulher parte para o lar, sabendo que não será a única.
Levaste-me ao altar e fizeste um falso juramento. Assinaste uma lei contrária aos teus desejos. Entraste neste sistema desconhecendo as normas, traindo-me a mim e a
todas as outras.
A
sua boca ressequida cola-se à minha num beijo divino.
Ai, meu Deus, este beijo me enlouquece, me derrete, me
transcende, nunca antes me dera um beijo assim. O
abraço é forte e pressiona-me o ventre duro como uma
pedra, palpitando de vida.
— Rami, é um filho?
Baixo o olhos. Chegou a minha vez de chorar.
—Mas como, se...
Não respondo, continuo no meu choro silencioso.
— Diz que é meu, diz e salva-me.
Ruínas de uma família. A Lu, a desejada, partiu para
os braços de outro com véu e grinalda. A Ju, a enganada,
está loucamente apaixonada por um velho português
cheio de dinheiro. A Saly a apetecida, enfeitiçou o padre
italiano que até deixou a batina só por amor a ela. A Mauá,
a amada, ama outro alguém. Só fiquei eu, a rainha, a principal, para lhe salvar a honra de macho. Todas elas vieram
e pousaram no meu tecto, uma a uma, como aves de
rapina. Agora levantaram voo uma atrás da outra. Todas
amaram o meu homem, sugaram-lhe todo o mel e partiram. Agora está à beira do abismo. Treme, pede socorro.
Meu Deus, eu sou poderosa, eu sinto que posso salvá-lo
desta queda. Tenho nas mãos a fórmula mágica. Dizer
sim e resgatá-lo. Dizer não e perdê-lo. Mas eu o perdi muito antes de o encontrar. Ignorou-me muito antes de
me conhecer.
— Não te posso salvar. Tento salvar-te mas não consigo, não tenho força, sou fraca, não existo, sou mulher.
Os homens é que salvam as mulheres e não o contrário.
— Rami!
— O filho é do Levy!
Ele
só vê o escuro e a chuva. Fica uns minutos intermináveis
a contemplar o vazio. Era uma ilha de fogo no meio da
água. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direcção
ao coração do deserto, ao inferno sem fim.
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