Buscas ouro nativo entre a ganga da vida.
Que esperança infinita no ilusório trabalho.
Para cada pepita, quanto cascalho.
Helena Kolody
A poesia nasce da tristeza.
Alberto Caeiro era amigo da sua tristeza:
“Mas eu fico triste como um pôr de sol quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela”.
E concluiu: “Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma…”. Num outro lugar, Fernando Pessoa escreveu algo mais ou menos assim:
“Ah! A imensa felicidade de não precisar de estar alegre…”.
Existe uma perturbação psicológica ainda não identificada como doença. Ela aparece num tipo a que dei o nome de “o alegrinho”. O alegrinho é aquela pessoa que está o tempo todo esbanjando alegria, dizendo coisas engraçadas, e querendo que os outros riam. Ele é um flagelo. Perto dele ninguém tem a liberdade de estar triste. Perto dele todo mundo precisa estar alegre… Porque ele não consegue estar triste, o alegrinho não consegue ouvir a beleza dos noturnos de Chopin, nem sentir as sutilezas da poesia da Cecília Meireles, nem gozar o silêncio triste da beleza do crepúsculo. Sempre alegrinho, na sua alma não há espaço para sentir a compaixão. Para haver compaixão, é preciso saber estar triste. Porque compaixão é sentir a tristeza de um outro.
Houve um menino que chorou ao ler a estória O patinho que não aprendeu a voar. Aconteceu assim: o seu pai comprou o livro esperando que eu, o autor, fosse um alegrinho e que o livro iria fazer seu filho dar muitas risadas. Voltou no dia seguinte muito bravo. Trazia o livro na mão, para devolvê-lo. Ao invés de dar risadas, no fim da estória o seu filho pôs-se a chorar. A estória é, de fato, triste. Eu a escrevi para o meu filho que estava passando por uma crise de vagabundagem. O seu prazer nas vagabundagens era tanto que ele não queria saber de aprender. O patinho também não queria saber de aprender. Não pôde voar com seus irmãos quando chegou a estação das migrações.
O menininho tinha razões para chorar? Não. As razões do seu choro não eram dele. Eram do patinho. Ele sofria o sofrimento do patinho. O seu coração batia junto ao coração do patinho. Mas o patinho não existia. Era apenas um personagem inventado de uma estória do mundo do “era uma vez”. E o menino sabia disso. Mas, a despeito disso, ele chorava. Aqui está um dos grandes mistérios da alma humana: a alma se alimenta com coisas que não existem.
Eu havia levado minha filha de seis anos para ver o E. T. Ao fim do filme ela chorava convulsivamente. Jantou chorando. Resolvi fazer uma brincadeira: “Vamos no jardim ver a estrelinha do E. T.!”. Fomos, mas o céu estava coberto de nuvens. Não se via a estrelinha do E. T. Improvisei. Corri para trás de uma árvore e disse: “O E. T. está aqui!”. Ela me disse: “Não seja tolo, papai. O E. T. não existe!”. Contra-ataquei: “Não existe? E por que você estava chorando se ele não existe?”. Veio a resposta definitiva: “Eu estava chorando porque o E. T. não existe…”.
Volto então à pergunta que fiz sem saber a resposta. O menino chorou ao ler a estória do patinho. Mas o patinho não existia. Minha filha chorou ao ver o filme do E. T. Mas o E. T. não existia.
Pensei então que um caminho para se ensinar compaixão, que é o mesmo caminho para se ensinar a tristeza, são as artes que trazem à existência as coisas que não existem: a literatura, o cinema, o teatro. As artes produzem a beleza. E a beleza enche os olhos d’água…
Meus amigos podem ficar tranquilos. Sou triste sim. Mas minha tristeza “é natural e justa e é o que deve estar na alma…”. Volto às Escrituras Sagradas: “Com a tristeza do rosto se faz melhor o coração”. É isso que desejo ensinar aos meus alunos…
Rubem Alves
in, “Pimentas – para provocar um incêndio, não é preciso fogo”
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