segunda-feira, 8 de março de 2021

O Problema Espinosa






O romance O Problema Espinosa (2012), do psicanalista norte-americano Irvin D. Yalom, propõe uma estranha aproximação entre o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677) e o ideólogo nazi Alfred Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do Século XX, uma pretensa teoria das raças, de orientação nitidamente anti-semita, na continuação dos trabalhos de Houston Stewart Chamberlain. A aproximação romanesca destes dois homens que tudo separava foi desencadeada pela descoberta pelo jovem Rosenberg da profunda admiração que o Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) – o maior génio alemão, segundo Rosenberg – nutria pela filosofia do judeu Baruch Espinosa. 
Como seria possível um ariano ajoelhar-se perante o pensamento de um homem de raça inferior?

“O Problema Espinosa” 
é o último livro que faz parte da trilogia 
que o psicanalista americano, Irvin D. Yalom dedica a 
três grandes pensadores da história da filosofia: 
Nietzsche, Schopenhauer e Espinosa. 


Yalom tem a capacidade de apresentar as linhas gerais das ideias desses três grandes homens que tanto contribuíram para o conhecimento do Ser, da Natureza, do Universo, de Deus, de uma forma extraordinariamente fascinante. Numa mescla entre realidade e ficção, Yalom constrói as bases teóricas não só das respectivas filosofias como ainda explora as suas raízes, influências, experiências e acontecimentos que enformaram os sentimentos daqueles filósofos, de uma forma descontraída, desapaixonada, informal na senda daquilo a que o próprio autor designa como um "romance de ideias".

Como já tinha feito com Nietzsche e com Schopenhauer, Irvin D. Yalom escreveu um romance acerca das ideias de Espinosa, o filósofo judeu do humanismo laico. 
Hegel, Goethe e Kant reverenciaram os seus pensamentos. 
"Como é que os nazis conseguiam lidar com esta dissonância?", pergunta Yalom.

"O homem livre de Espinosa é aquele que pensa sobre a morte como um final", diz Irvin D. Yalom,  autor de O Problema Espinosa, um romance que apresenta de maneira clara algumas das ideias do filósofo holandês (filho de pais portugueses, judeus fugidos da Inquisição). Fascinado desde muito novo pela filosofia de Bento Espinosa - que com Descartes e Leibniz foi um dos três grandes racionalistas da filosofia do século XVII -, esse interesse de Irvin D. Yalom fortaleceu-se quando teve conhecimento de que Einstein, um dos seus primeiros heróis, era um "espinosista". Durante alguns anos, pensou insistentemente num romance sobre a figura sem conseguir arquitectar uma trama.

Espinosa tinha uma concepção panteísta da realidade e desde muito novo divergiu da ortodoxia judaica, o que lhe trouxe a maior das condenações do judaísmo, o cherem, equivalente à excomunhão católica. "Quando Einstein falava de Deus, falava do Deus de Espinosa - um Deus inteiramente equiparado à Natureza [Deus sive Natura], um Deus que incorpora toda a substância, e um Deus que "não joga aos dados com o Universo" - e, com isso, queria dizer que tudo aquilo que acontece, sem qualquer excepção, segue as leis estipuladas pela Natureza".

Yalom dá-nos a conhecer a vida do filósofo, cuja família, perseguida pela Inquisição, emigrou para a Holanda, vivendo no seio da comunidade judaica de Amsterdão ao mesmo tempo que nos revela a existência de Alfred Rosenberg, o principal teórico, ideólogo do nacional-socialismo, amigo íntimo de Adolph Hitler e que seria julgado e condenado à morte por decisão dos juízes de Nuremberga.

Aliás, o problema Espinosa é um sentimento que teria despoletado na mente de Rosenberg um enorme imbróglio emocional na medida em que, ao apropriar-se de alguns dos conceitos de Espinosa e ao facto do filósofo judeu ter sido profundamente admirado pelo herói da nação alemã, Goethe, fez com que o militante nazi quisesse explorar o conteúdo da obra do português, concluindo que Espinosa não seria um verdadeiro judeu, o que justificava a extraordinária inteligência do pensador luso.

Quando o jovem de dezasseis anos, Alfred Rosenberg, é chamado ao diretor devido a comentários antissemitas no liceu, é obrigado a estudar passagens sobre Espinosa. Rosenberg fica espantado ao descobrir que Goethe, o seu ídolo, era um grande admirador do filósofo português Bento Espinosa. Um judeu. Mais tarde na sua vida, Rosenberg continua a ser perseguido por esse «problema Espinosa»: Como poderia o génio Goethe inspirar-se num membro de uma raça inferior, uma raça que ele estava determinado a destruir?
Ao longo da sua evolução no partido nazi - e da ascensão do partido ao poder - as ideias de Espinosa virão a ser o grande problema na mente de Rosenberg, levando-o a questionar, ainda que com argumentos também questionáveis, a possibilidade de integrar uma linha de pensamentos com que se identifica na sua visão dos judeus enquanto inimigo essencial e raça inferior. E, enquanto lhe são atribuídas funções cada vez mais importantes, Rosenberg acaba por sentir, ainda que caminhando em sentido oposto, o impacto do mesmo isolamento do próprio Espinosa após a sua excomunhão. 
Com a diferença inevitável de que a obstinação de um é uma ideia fixa, enquanto a de outro reside numa racionalidade incomparável.

Espinosa, um judeu português refugiado na Holanda, viveu uma vida de castigo e isolamento. Devido aos seus pontos de vista, passou a ser "o problema Espinosa" para os Rabinos da Sinagoga da Comunidade Judaica de Amesterdão, que acabaram por decidir que Espinosa iria ser excomungado, e banido do único mundo que sempre conhecera. Apesar de viver com poucos meios, Espinosa produziu obras que mudaram o rumo da História. 

Com o passar dos anos, Rosenberg tornou-se um ideólogo nazi eloquente, fiel servidor de Hitler, e principal responsável pela política racista do Terceiro Reich. Todavia, a sua obsessão por Espinosa continuava a afetá-lo.

Yalom explora a mente de dois homens 
separados por trezentos anos
dois homens que mudaram o rumo do mundo, 
as vidas interiores de Espinosa, o virtuoso filósofo secular, 
e de Rosenberg, o ímpio assassino de massas.


A narrativa alterna entre o percurso de Rosenberg antes e durante a ascensão do nazismo, e a vida de Espinosa na iminência e após a sua excomunhão. 
Em comum, têm a perspectiva da solidão e é neste aspecto que se encontra um dos grandes pontos fortes do livro, já que, diferentes como são as suas histórias, Yalom consegue realçar, de forma magistral, os efeitos do progressivo isolamento nos seus dois protagonistas. 
Além disso, também este contexto realça as suas diferenças de personalidade. 

Espinosa escolhe a solidão quase total, 
em nome de uma vida dedicada à razão. 
Já Rosenberg depende quase obsessivamente 
da necessidade de louvores e do afecto do líder, 
tornando-se instável e insensato. 

Yalom – ele mesmo judeu – partiu de um facto real, o saque da biblioteca do museu Espinosa em Rijnsburg, na Holanda, um saque sem sentido tendo em conta a pouca valia daquilo que foi roubado, para construir a narrativa. Esta permite-lhe fazer uma caracterização da filosofia de Espinosa, pintar as relações intelectuais e religiosas dos judeus holandeses, judeus fugidos da Península Ibérica, e também construir uma leitura, a partir de uma abordagem psicanalítica, da personalidade do ideólogo nazi. 

A obra, fala de dois problemas fundamentais: 
O da identidade de si, e o da relação entre razão e fé.

Espinosa era um jovem e brilhante aluno da comunidade judaica de Amesterdão. 
No entanto, o questionamento racional que ele opõe aos ensinamentos religiosos, o sublinhar das incongruências da tradição e insubmissão geral do espírito levam a que seja proferida contra ele uma sentença de excomunhão, sendo proibidos, a todos os membros da comunidade judaica, quaisquer contactos com o proscrito. Espinosa é despido da sua identidade de judeu e vai ter de reconstruir uma nova identidade fundada agora apenas nos preceitos da razão. Estamos perante a afirmação de uma singularidade radical, assente no corte com a cultura de origem. 

Em contraponto, Alfred Rosenberg era um jovem solitário e inseguro, vítima dos seus colegas de liceu. A construção da identidade de Rosenberg faz-se a partir da sua solidão, do seu anti-semitismo e no mergulho no que poderia chamar-se espírito do povo. É a crença na superioridade da raça ariana – e a crença de que ele pertença a essa raça – que lhe permite a construção da sua própria identidade. 

Espinosa constrói a identidade pela singularização produzida pela rejeição da comunidade. 
Rosenberg fá-lo pelo afastamento da sua singularidade forçada, e sentida como problemática, e pelo mergulho no magma comunitário. Yalom estabelece uma relação entre o nascimento do indivíduo, com a figura luminosa de Espinosa, e o seu desaparecimento com a figura tenebrosa de Rosenberg.

A questão da identidade, contudo, terá de ser percebida num âmbito mais amplo. 
Trata-se da questão das Luzes. 
Espinosa é um dos pais do Iluminismo, da afirmação da Razão sobre a fé, as tradições e os preconceitos. O filósofo é apresentado como uma figura da libertação em relação ao pensamento dogmático. 
Rosenberg, pelo contrário, é a figura da regressão. 
Ele representa aqueles que trocam o uso da razão pela afirmação de um fanatismo, de uma fé radicalizada em preconceitos raciais e na mitificação do povo alemão. 

Com Espinosa, o autor traça o caminho que conduz do mito à razão. 
Com Rosenberg, traça a via contrária, aquela que leva da razão ao pensamento mítico. 
Não por acaso, o livro do ideólogo nazi chama-se O Mito do Século XX.

A oposição entre razão e mito ou entre razão e fé, tomada esta na sua dimensão de fanatismo, serve para sublinhar os fundamentas da intolerância entre os homens. Esta nasce de crenças que não suportam o exame da razão, nasce em pessoas que sofrem de uma patologia que a psicanálise deveria tratar. O fanatismo resultará menos do exercício do livre-arbítrio, de uma decisão livre, e mais de uma patologia que condiciona as crenças e os comportamentos dos indivíduos, incluindo os comportamentos perante as suas próprias crenças, evitando submetê-las ao exame da razão. A patologia em que todo o fanatismo assenta está ligada a uma ausência de comunicação ou a uma incapacidade de comunicar. 

O fanatismo judaico impõe o corte comunicacional com o herege Espinosa. O fanatismo nazi é alimentado por homens como Rosenberg, cuja capacidade de comunicar com os outros é notória. 
Só uma terapia através do diálogo teria, então, o poder de restabelecer a comunicação e evitar o fanatismo. Uma apologia do papel da psicanálise na sociedade.

Foi durante uma visita à Holanda, em 2007, que Yalom encontrou a história que o levaria à escrita do romance:
"Como podemos escrever acerca de um homem que teve uma vida de tal modo contemplativa, marcada por tão poucos acontecimentos exteriores que possam ser considerados impressionantes? Não existiam dramas familiares, nem assuntos amorosos, ciúmes, histórias curiosas, disputas, questiúnculas, nem qualquer registo de encontros. Ele tinha uma grande quantidade de correspondência mas, depois da sua morte, os seus colegas seguiram as instruções por ele deixadas e removeram quase todos os comentários pessoais das suas cartas", conta o escritor. 
De visita ao Museu Espinosa, em Rijsburgo, ao olhar para um aparelho de polimento de lentes - para conseguir sobreviver, o filósofo trabalhou como polidor de lentes -, Yalom teve uma espécie de epifania quando por acaso ouviu contar na sala ao lado a história de que o Terceiro Reich tinha pilhado a biblioteca a mando de um dos ideólogos racistas e anti-semitas do nazismo, Alfred Rosenberg. 
A sua investigação sobre o assunto começou quase de imediato - e Irvin D. Yalom encontrou a expressão "problema Espinosa" no documento escrito pelo responsável da força de intervenção do Reich que se apropriou do recheio do museu. 

Mas que "problema" seria esse? 
"O problema dos nazis vinha do facto de todos os grandes pensadores alemães, Hegel, Goethe, Kant, reverenciarem os pensamentos de Espinosa. E ele era judeu, um membro de uma "raça inferior". Como é que eles conseguiam lidar com esta dissonância?", interroga-se Yalom. Parte do romance, que segue duas linhas narrativas distintas, em capítulos alternados, procura aprofundar o assunto.

Yalom alterna capítulos em que narra a vida de Espinosa na Holanda, começando em 1656 até 1666 (ano, para o pensamento judaico, da chegada do Messias) com os que revela a ascensão social e política do anti-semita Alfred Rosenberg desde a terra natal na Estónia onde se encontrava em 1910 até ao dia em que morre no cadafalso em 1946. 


Entretanto, acompanhamos o cherem (excomunhão judaica) de que que Espinosa foi alvo, por força dos seus pensamentos e palavras contrastantes com a religiosidade dos livros sagrados, a sua adaptação a uma vida solitária e fora da comunidade, ao mesmo tempo que vamos conhecendo a ascensão das ideias anti-semíticas numa Alemanha afundada numa crise económica e social.

Irvin D. Yalom, que foi durante mais de 50 anos professor de psiquiatria na universidade de Stanford (é actualmente professor Emeritus) e também psicoterapeuta, recorreu aos seus conhecimentos científicos para tentar perceber Espinosa e Rosenberg. 
"Tive de criar outras personagens que tivessem capacidades verosímeis para entrar em diálogo íntimo com os protagonistas. Com Rosenberg não foi difícil, uma vez que se sabe que ele tinha problemas psiquiátricos: inventei um psicólogo para perceber e iluminar a singularidade daquele mundo. Com Espinosa introduzi uma personagem que tinha uma extraordinária percepção do trabalho do filósofo e uma relação de amizade muito próxima."
O autor, por força da sua profissão, coloca os dois personagens principais em claras sessões de psicoterapia fazendo de Franco (o único amigo judeu que restaria a Espinosa), o psicanalista, enquanto o mesmo papel é desempenhado por Friedrich Pfister em relação a Rosenberg. E é através destas dialéticas que nós também vamo-nos apropriando do pensamento e a personalidade de cada um.


Para Yalom, são várias as ligações entre a filosofia de Espinosa e as ciências que estudam a psique humana: 
"Com as ideias de que o conhecimento leva à transcendência, e de que tudo tem uma causa, de que se pode obter um vislumbre desses nexos causais, então podemos ultrapassar preocupações menores, podemos entrar numa vivência mais libertadora, compreender um pouco mais do mundo." A liberdade não depende da vontade, mas do entendimento. E diz ainda sobre o poder da literatura: "Acredito que a ficção é a mentira que mais nos aproxima da verdade sobre a mente humana."

Foi grande o trabalho de investigação que precedeu a escrita. 
O facto de ter de lidar com duas épocas históricas muito distintas, a Alemanha nazi e o século XVII holandês, levou a que tivesse de investigar muita documentação nos dois países. 

Outro desafio, que não foi menor: o facto de ter de apresentar de maneira lúcida e compreensível a difícil filosofia de Espinosa, o que o obrigou a estudar toda a sua obra muito profundamente. 

Mas houve ainda um terceiro desafio, e este de ordem mais íntima, pois Irvin D. Yalom é também ele de origem judaica: 
"O facto de me ter obrigado a confrontar-me com muitas descrições gráficas do horror do Holocausto pesou-me muito; este livro, por causa da personagem de Alfred Rosenberg, obrigou-me a ler material que eu andava a evitar havia várias décadas."





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