terça-feira, 30 de outubro de 2018

a-ha - Take On Me [ Live From MTV Unplugged, Giske / 2017 ]

Tenho mil irmãs para amar





Tenho mil irmãs para amar sem palavras. 
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas 
pelo mármore de estátuas, reflectidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram 
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem, 
é porque eu próprio não me compreendo. 
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me 
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo 
à escola e tenho aquela irmã que é uma 
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.



JOSÉ LUIS PEIXOTO
in, GAVETA DE PAPÉIS 





I am not a noun


Buckminster Fuller holds up a Tensegrity sphere




I live on Earth at present, and I don’t know what I am.
I know that I am not a category.
I am not a thing — a noun.
I seem to be a verb, an evolutionary process – an integral function of the universe. 

– Buckminster Fuller




sábado, 27 de outubro de 2018

FUNERAL BLUES





Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.


W. H. AUDEN
in, ANOTHER TIME





As Afinidades Electivas






Um dos grandes clássicos da literatura do Séc XX, “As Afinidades Electivas” do escritor alemão Johann Wolfgang Goethe. É um escritor que está na linha de grandeza de Dante e Shakespeare, os grandes do seu tempo. Os três escreveram muito sobre o sofrimento, a paixão, e a loucura.

É um livro simbólico, que questiona a afinidade entre o Mundo Natural e o Mundo Ético, e o conflito entre a Liberdade da Razão e a Necessidade das Paixões, assim como o desfecho motivado pelas reações mútuas, de acordo com as leis da química, e ainda a complexidade da esfera humana e a necessidade da intervenção de uma Força Superior, que quase sempre aparece como Destino, Deus ou o Diabo.

A expressão “Afinidades Electivas” designa na Química um processo no qual os elementos presentes, de acordo com o seu grau de afinidade, podem desfazer as suas ligações nos compostos tradicionais, e entrar num processo de escolha aparentemente “livre” em novas combinações.
É a chamada Tabela de Afinidades na Química, fixada pela primeira vez pelo químico francês Etienne-François Geoffroy em 1718.

No início do livro, seguimos o casal Eduard e Charlotte que, apaixonados desde a juventude, vivem tranquilamente dedicados à sua propriedade e aos projectos que têm para ela. A transformação dos jardins, a construção de um abrigo, a abertura de novos caminhos, marca o ritmo do entretenimento das personagens com a paisagem e o seu ordenamento.
A personagem Charlotte fala sobre o simbolismo das afinidades e das relações cruzadas ao longo do livro de uma forma muito interessante, no plano do romance e da natureza, numa dialética entre ética e natureza, pulsões e razão, paixão e ordem, liberdade e necessidade, demoníaco e sagrado. Uma mulher determinada, activa, ponderada, gestora das finanças do casal, e totalmente dedicada ao casamento, a ponto de enviar a filha do seu anterior casamento para um internato para se dedicar a Eduard. Ambos apaixonados um pelo outro desde novos mas, por influência dos pais casaram-se por conveniência com pessoas mais velhas. Mais tarde, quando já estavam ambos viúvos, casaram-se e dedicaram-se a rentabilizar as suas propriedades e ao casamento com que tanto sonharam.
No entanto, e apesar de a tanto custo conseguirem ficar juntos, a entrada do capitão Otto e da sobrinha de Charlotte, a Ottilie, nas suas vidas, afasta-os irremediavelmente.
O capitão, amigo de Eduard, que se encontrara sem trabalho, é convidado por este a viver em sua casa, ficando responsável pela administração das propriedades.
A vinda do capitão é antevista por Charlotte com receio:
“Nada é mais decisivo, em qualquer situação, do que a intervenção de um terceiro. Vi amigos, irmãos, amantes, esposos cuja relação se modificou totalmente, cuja situação se transformou por completo com o aparecimento, ocasiona o propositado de outra pessoa”. 
Se havia a reserva ao novo hóspede, rapidamente ela se transformou numa presença desejada, reforçando em Charlotte a vontade de trazer também para junto de si Ottilie, sua sobrinha, uma jovem bonita e discreta que vivia num internato.
Mulher astuta, passou a observar atentamente Otto e Ottilie, sendo da opinião de que deveria familiarizar-se o mais rápido possível com o carácter das pessoas com quem tinha de conviver, de forma a saber o que esperar delas, o que nelas pode incentivar, permitir e perdoar. E cedo se apercebeu que Eduard e Ottilie estavam apaixonados um pelo outro e que o seu casamento estava em risco.

Uma das belezas do livro do Goethe, é a relação dos personagens com a música e com a natureza  paralela às suas relações com o amor. Eduard acaba por se apaixonar por Otille e Charlotte pelo capitão. Os dois amores são recíprocos. Mas como poderiam corresponder se Eduard e Charlotte estavam presos ao casamento?
Cada personagem lida com a situação de forma diferente.
Enquanto Eduard se entrega ao amor romântico e quer valer-se de todos os meios da época para anular o casamento, Charlotte pensa que o amor deve ser contido porque não há maneiras de sair de tal situação.
E é em torno dessa questão que toda a narrativa se desenvolve:
É possível anular o casamento?
É possível permitir o amor?
Quem vencerá?
O casamento ou o amor?

Segundo Goethe, ao contrário de Kant, o acontecer das coisas abre-se permanentemente às forças do acaso, aos impulsos imprevisíveis da natureza humana. Por vezes os indivíduos ficam sobre o domínio de forças invisíveis a que não podem resistir e que lhes impõem o caminho; e muitas vezes as suas tendências parecem dominar arbitrariamente um campo que se situa para lá de toda a Lei. Tudo, mesmo aquilo que eticamente é mais anormal, tem uma faceta à luz da qual se apresenta com grandiosidade. Essa grandiosidade vem da fidelidade à paixão e à ordem, e da sua vivência livre para a morte.
E é aqui que Goethe insere na história o casamento e o adultério, não como uma questão social, mas como um problema ético de sentido humano universal explorando os labirintos da alma humana, com uma nova sensibilidade. Goethe diz que os sentidos têm de dominar sempre para serem atingidos pelo destino, isto é, pela natureza moral, que ganha com a morte a sua liberdade.
Só aí a Lei Moral celebra o seu triunfo.
O casamento, o mundo da ordem que assenta na sociedade burguesa, com a força das paixões e do elementar, para inevitavelmente a Lei Moral triunfar através da consciencialização da Culpa, da Renuncia, e da aceitação da Morte como libertação.

Ottilie, tal como Goethe, não renuncia ao amor de uma forma dolorosa…trata-se de uma recusa do amor por uma impossibilidade pessoal. Apaixona-se inocentemente pelo marido da tia Charlotte, Eduard, paixão essa que irá mudar o rumo da história. Charlotte renuncia à sua paixão pelo capitão Otto, mas Eduard não renuncia à sua paixão por Ottilie. No entanto, a gravidez inesperada de Charlotte impede-os de ficarem juntos e Eduard decide ir para a guerra e lutar até morrer.
Nasce um menino, a que Charlotte dá o nome de Otto, e o bebé acaba por morrer afogado quando ia com Ottilie numa barca de regresso a casa.
Este acontecimento trágico, influência o final da história.

Ottilie nasceu para santa e não para esposa ou amante.
É a personagem típica de um purgatório, não inferno, em que tudo é morno e tíbio, mas com desejo, intuição, premonições, sem vontade de afirmação, sem violência de paixões, e mais como um “amor romântico”. Ela não tem conteúdo ético, está para além do bem e do mal. O seu reino é o da bela aparência, da inocência, que a transforma em vítima à espera de celebrar a própria morte, que não é o resultado de uma livre decisão em consequência de conflitos acumulados, mas de uma pulsão inconsciente que a arrasta ao longo do tempo, e que a afasta da esfera social, ética e física do amor, restando-lhe apenas a esfera mítica onde se refugia, onde olha e escreve no seu diário, e se remete a uma mudez voluntária. É a sua tristeza que a torna muda, e a perda voluntária da linguagem é em Ottilie um gesto radical do corte de relações com um mundo e com uma Ordem com os quais ela sempre se relacionara mal. A sua transfiguração deliberada e forçada é a prova de que o amor como paixão, a paixão do amor como absoluto, não é realizável no âmbito dos conflitos próprios da ordem social e humana, de acordo com uma intervenção de natureza superior.

Para Goethe, o amor é a Força Real que faz mover o Universo. Essa Força Interior, a mais sagrada e divina do mundo, confunde toda a Ordem do mundo. A sociedade do romance, aristocrática, burguesa, decadente, artificial, está inconscientemente doente de tédio melancólico.

Há uma frase do personagem Mittler, advogado, que diz:
“Pensais que existo para dar conselhos? É o oficio mais estúpido que alguém pode exercer. Que cada um oiça o seu próprio conselho e que faça o que não pode deixar de fazer. Se tiver sucesso, que se regozije com a sua sabedoria e com a sua sorte, se fracassar, então, eu estarei à sua disposição. Quem se quer livrar de um mal, sabe sempre o que quer; quem quer melhor do que aquilo que já tem, está completamente cego, joga à cabra-cega, talvez apanhe qualquer coisa, mas o quê?
Fazei o que quiserdes, é completamente indiferente! Pouco importa! Já vi fracassar o que era mais razoável, e a triunfar o que era mais absurdo. Não quebreis a cabeça e, se, de uma maneira ou de outra, as coisas correrem mal, não a quebreis também. Nessa altura virei em vosso auxílio.
Todas as tentativas são aventuras.
O que delas poderá advir ninguém pode prever.
Tais condições novas podem ser férteis em felicidade ou em infelicidade, sem que nós possamos atribuir-nos especialmente méritos ou culpas.”
Este diálogo diz respeito a uma dúvida que Charlotte tinha em relação a ceder ou não ao pedido de Eduard de convidar o capitão Otto e a Ottilie para viverem com eles, prevendo que paixões cruzadas poderiam vir a acontecer, o que se confirmou.
Este Mittler é um advogado moralista, conservador, e que é totalmente contra o divórcio. Considera o casamento um fundamento da sociedade moral, o princípio e o fim de toda a civilização, e a infelicidade de cada um não deve ser tida em conta, visto que, na sua opinião, o Ser Humano gosta de ser infeliz e sofre de impaciência. Defende que os esposos têm uma dívida infindável para o resto da vida um com o outro e só a eternidade a poderá saldar. Chega a dizer assim:
“Não estamos nós também casados com a nossa consciência, de que muitas vezes gostaríamos de nos livrar, porque ela é para nós mais incómoda do que um marido ou uma esposa poderiam ser?”

O Conde e a Baronesa, personagens mais liberais e a favor de viver o amor quando ele surge sem desperdiçar a vida com quem não os faz felizes, são dois personagens mais liberais, esclarecidos, de mente mais aberta, que acabam por se casar a meio da história. Defendem que os Seres Humanos gostam de imaginar as coisas terrenas, e sobretudo, os laços matrimoniais como algo de eterno, romanceado e fantasioso. Dizem que todo o casamento devia ser celebrado apenas por um período de cinco anos, sendo esse espaço de tempo suficiente para aprender a conhecerem-se, incompatibilizarem-se e, se for o caso, reconciliarem-se. As atenções aumentariam à medida que se aproximasse o prazo para a rescisão, o que acabaria por tranquilizar e conquistar a parte descontente, e teriam uma agradável surpresa quando, decorrido o prazo, verificassem que ele já tinha sido prorrogado tacitamente por mais cinco anos.

Otto, o capitão, também tem uma frase interessante:
“ Separa da tua vida tudo o que é negócio. O negócio exige seriedade e rigor; a vida, arbitrariedade. O negócio requer a mais pura lógica; na vida, a inconsequência faz muitas vezes falta, tem mesmo um certo encanto e alegria.
Se estiveres seguro nos negócios, mais livre podes estar na vida. Se misturares ambos, o que é seguro será arrastado e anulado por aquilo que é livre.”

Charlotte e o seu marido Eduard, quando falavam de afinidades químicas, em termos de minerais e de terra, fazem um diálogo bastante interessante:
“ Aqui trata-se apenas de terras e de minerais. Mas o Homem é um verdadeiro Narciso: gosta de ver a sua imagem em tudo. Aquilo que o azougue é para o espelho, julga ele ser para o Universo. É assim que ele trata tudo o que encontra, à exceção de si próprio: tanto a sua sabedoria como a sua loucura, a ua vontade como o seu capricho, confere-os aos animais, plantas, aos elementos e aos deuses.
O que se entende aqui por Afinidades?
Em todos os seres da natureza, notamos que há neles uma relação consigo próprios. Só depois de se estar de acordo quanto ao que é conhecido, se pode em conjunto, caminhar em direção ao que é desconhecido. Imagina a água, o óleo, o mercúrio: aí encontrarás uma unidade, uma coesão das suas partes. E esta união nunca a abandonam, a não ser pela força. Quando essa força é eliminada, voltam a unir-se. As gotas da chuva juntam-se e formam correntes; o mercúrio, quando separado em pequenas esferas, volta a unir-se. Esta atração pura que a fluidez torna possível, manifesta-se sempre na forma de Esfera.
Tal como cada Ser tem uma atração por si próprio, também terá em relação a outros Seres, e essas relações serão diferentes, como diferente é a natureza dos seres. Nuns casos encontrar-se-ão como amigos que se juntam, se unem, sem modificarem o que quer que seja um no outro, tal como o vinho se mistura com a água.
Outros, pelo contrário, persistem em manter-se estranhos lado a lado, e não se unirão, nem por mistura nem por fricção mecânicas; tal como o óleo e a água que, agitados e misturados, um instante depois voltam a separar-se.
Isso faz-me lembrar das pessoas que um dia conhecemos e dos meios sociais onde vivemos, em que as massas se defrontam nas diversas condições sociais, nas profissões, na nobreza, no Estado Militar e Civil, em que uns se misturam e outros nunca s unem.
No entanto, tal como estes que estão ligados por costumes e leis, também no mundo químico existem mediadores para ligar o que mutuamente se repele. É assim que ligamos a água com o óleo, com um sal alclino.
Aquelas substâncias que, ao encontrarem-se, se apropriam rapidamente uma da outra e se determinam mutuamente, apelidamo-las de afins. Essa afinidade é bastante visível nos alcaloides e nos ácidos, os quais, embora se oponham uns aos outros, se atraem ou se ligam de forma mais marcada, se modificam e, em conjunto, formam um novo corpo.
O calcário, revela por todos os ácidos uma grande inclinação, um desejo pronunciado de união.
Não se trata de uma afinidade de sangue, mas sim uma afinidade de espírito ou de alma. É precisamente desta forma que entre os Seres Humanos podem surgir amizades profundas, visto que qualidades opostas atraem-se e tornam possível uma união mais íntima. (…)
Os casos mais complexos são os mais interessantes.
Só através do conhecimentos dos vários graus de afinidade, ficamos a conhecer as relações mais próximas e mais fortes, as mais distantes e mais fracas. As afinidades só se tornam interessantes quando provocam separações.
O reunir é uma arte superior, um mérito maior. Um mediador da união, seria em qualquer domínio do mundo, muito bem vindo.
Por exemplo, o que designamos por pedra calcária, é uma terra calcária mais ou menos pura, ligada intimamente a um ácido fraco de forma gasosa. Se introduzirmos um pedaço dessa pedra em ácido sulfúrico diluído, este ataca o calcário e juntos formam o gesso; aquele ácido gasoso fraco, por sua vez liberta-se. Operou-se uma separação, uma nova combinação, ou seja, uma Afinidade Electiva, porque uma relação foi preferida a outra, que uma foi escolhida em detrimento da outra.
E Charlotte responde: eu nunca veria aqui uma escolha, antes uma necessidade natural, ou talvez seja apenas uma questão ocasional. A ocasião faz as relações, assim como a ocasião faz o ladrão, e quando se trata das substâncias naturais, parece-me que a escolha está apenas nas mãos do químico que reúne estas substâncias. Uma vez que elas se encontrem reunidas, que Deus as proteja! No caso presente, apenas lamento o pobre ácido gasoso condenado a ficar sozinho no infinito.
Apenas depende dele, retomou Otto, ligar-se à água e, como fonte de água mineral, servir de leniivo aos que gozam de saúde e aos doentes.
E Charlotte responde: o gesso bem pode falar, está pronto, é um corpo, tem tudo o que precisa, enquanto aquele ser banido pode ter ainda muito que sofrer até encontrar de novo um refúgio.
Por exemplo, o Eduard meu marido é o calcário, e tu Otto és o ácido sulfúrico que atacas o calcário e transformam-se em gesso, e eu sou o ácido fraco gasoso que é banido.
Os Seres Humanos, no fundo estão muitos degraus acima destes elementos, e será conveniente que se voltem novamente para si próprios e que aproveitem o ensejo para refletir bem no valor das escolhas e das afinidades. Conheço um número suficiente de casos em que uma ligação íntima entre dois seres , aparentemente indissolúvel, foi destruída pela intervenção acidental de um terceiro e em que um dos dois elementos , que tinham sido tão unidos, se viu arremessado para longe.
Num caso desses, disse Eduard, os químicos são muito galantes…acrescentam um quarto elemento, para que nenhum deles vá de mãos a abanar. Esses casos são os mais interessantes e os mais curiosos, já que eles podem ilustrar a atração, a afinidade, o abandono, a reunião, que se entrecruzam; quatro substâncias, até então unidas duas a duas, são postas em contacto, abandonam a sua antiga união e iniciam uma nova. Nesta forma de se abandonar e de se agarrar, nesta fuga e nesta busca, crê-se na realidade, ver uma determinação superior. Concede-se a tais substâncias uma espécie de vontade e de escolha, e considera-se a fórmula das afinidades electivas completamente justificada.
Há substâncias que parecem mortas e que, interiormente estão sempre prontas para uma atividade, procuram-se umas às outras, atraem-se, agarram-se, destroem, absorvem, devoram, e, em seguida, depois de se terem unido intimamente, manifestam-se outra vez, sob uma forma renovada, nova, inesperada. Só então se lhes atribui uma vida eterna, até mesmo sensibilidade e entendimento, pois sentimos que os nossos sentidos mal chegam para as observar devidamente, e a nossa razão mal dá para as apreender.”

Outros personagens passaram pela casa de Charlotte, após a ida de Eduard para a guerra...
O ajudante da Directora do Internato, que era apaixonado por Ottilie foi um deles.
Esta é uma das várias reflexões que faz ao longo do livro:
" Enquanto a vida nos impele, julgamos agir por nós próprios, escolher a nossa actividade, os nossos prazeres; mas, se olharmos mais atentamente, veremos que não se trata senão dos intentos, das inclinações do tempo, nos quais nós somos obrigados a colaborar. e quem é que resiste à torrente que o envolve? O tempo avança e, com ele, ideias, opiniões, preconceitos e caprichos. Quando a juventude de um filho coincide precisamente com uma época de transição, pode ter-se a certeza de que ele não terá nada em comum com o pai. Se este viveu num tempo em que se tinha o gosto de adquirir, de assegurar, de demarcar, de cercar o que se adquirira, e de fazer depender o prazer dessa propriedade do seu afastamento do mundo, aquele procurará a todo o custo expandir-se, relacionar-se, estender-se e abrir o que estava fechado."

Mais tarde, recebem a visita de um Inglês, amigo de Eduard, e que também faz uma reflexão sobre o mesmo assunto:
" Acostumei-me a sentir-me bem em toda a parte, e acabei por achar que não há nada de mais cómodo do que ver os outros construírem, plantarem e preocuparem-se com os assuntos domésticos em meu lugar. Não anseio regressar às minhas propriedades, sobretudo porque o meu filho, para quem eu efectivamente fiz e organizei tudo, a quem eu esperava transmiti-las, com quem eu esperava ainda desfrutá-las, não se interessa por nada daquilo, foi antes para a Índia, para aí, como tantos outros, aplicar a sua vida mais nobremente, ou mesmo para a dissipar.
Despendemos demasiado tempo com preparativos para a vida. Querendo abranger cada vez mais, para vivermos no fim cada vez mais incomodamente.
Quem goza agora a minha casa, o meu parque, os meus jardins?
Eu não, nem sequer os meus, mas hóspedes estranhos, curiosos.
Estamos sempre irrequietos, falta sempre alguma coisa, estamos sempre a instalar-nos para voltar a partir, e se não o fazemos por desejo e por capricho, são as circunstâncias, as paixões, os acasos, a necessidade e tudo o mais que nos obrigam a tal.
Creio agora estar no bom caminho, porque me considero ininterruptamente um viajante que a muito renuncia para muito desfrutar."

O livro é uma tragédia sobre a impraticabilidade do amor que condena os amantes ao desencontro por razões morais, sociais e... cósmicas. O sucessivo adiamento da vivência amorosa é imposto pela conjuntura tirânica que no início do século XIX preside à mentalidade eminentemente aristocrática defensora do casamento entre classes, mas acima de tudo apologista da instituição do matrimónio como sagrada (embora esta posição seja trabalhada pelo autor por forma a colocar em evidência a hipocrisia característica do apregoado mas não praticado).
Por isso a manifestação de um desejo de união só porque se ama, é rejeitado como uma espécie de sacrilégio.

Não mencionei o vocábulo “tragédia” em vão... com efeito, o elemento trágico interfere de forma definitiva e paira na atmosfera, por vezes aparentemente idílica do romance, desde o seu início com claros sinais premonitórios de acontecimentos dúbios a vir.
Goethe escreve, então, uma tragédia sob a forma de romance o que não deixa de ser curioso tendo em consideração a admiração do autor pela tragédia grega, sendo que ele próprio elaborou por exemplo uma Ifigénia em Táurida tida como uma das incontornáveis tragédias da literatura alemã.

Uma convivência a quatro converte-se rapidamente não na destruição de um lar como seria de esperar, mas na transição (nunca atingida na sua totalidade) do que se julgava querer para o que indubitavelmente se quer. A tragédia reside na circunstância de que o encontro destas almas gémeas não é durável porque lhes é vedado o acesso à concretização do amor. Um silêncio cúmplice está subjacente à estranha aceitação do adultério debaixo do mesmo tecto outrora partilhado por um casal que pensava ser feliz. A “troca” é quase natural até que o mundo exterior se dá conta do perigo que ronda aquela casa e os amantes se afastam, momento a partir do qual se inicia o caminho descendente a percorrer pelas personagens e exposto na segunda parte do livro.
Uma estranha força que me ocorre apenas designar de “cósmica” apaga a esperança no triunfo do amor, daí talvez o final místico da obra que mais não é do que, provavelmente, a vitória de uma outra forma de amor... e afinal, o amor não morre com as pessoas.

O final do livro, como todos os finais de Goethe, suscita inúmeras possibilidades de reflexão sobre a natureza, sobre o ser humano e sobre a civilização.
Tal como acontece em "Os sofrimentos do jovem Werther", e em "Fausto".
Neste livro, ao contrário dos outros, a escrita é mais fluída, e a atmosfera mais tranquila, harmoniosa.

"E assim descansam os dois amantes 
um ao lado do outro. 
A quietude paira sobre sua morada; 
anjos serenos, seus afins, 
olham-nos do espaço. 
E que momento feliz aquele 
em que, um dia, 
despertarão juntos!"



(Epílogo de Afinidades Eletivas)



“As Afinidades Electivas”, obra escrita em 1809, é apontada como um espelho do matrimónio do próprio Goethe, sendo um convite a olhar o casamento e as suas forças contrárias: o divórcio e a infidelidade.

Houve na vida de Goethe, um nome predominante de mulher.
Coincidência, acaso ou adoração?
Que influência teria exercido sobre o grande génio o nome "Charlotte"?

Na vida real, ele amou quase sempre uma Charlotte. 
Influência da própria mulher ou do nome?

Charlotte Kestner e Charlotte von Stein passaram por sua vida, como amantes adoradas e musas inspiradoras.
Na primeira, temos a Charlotte do apaixonado "Werther"; na última, a sublime Charlotte, heroína de "Afinidades Eletivas". 

Na sua imensa bagagem literária, vamos encontrar sempre "Charlotte", sublimada, exaltada, dignificada na beleza de sua prosa, no lirismo apaixonado de suas rimas.
Mas qual a que lhe inspirou o amor, que transbordava de seu pensamento?
Todas, ou cada uma por sua vez?
Teria havido aquela, que nenhuma outra igualava, a insubstituível?

Em Charlotte von Stein, muito mais velha que ele, com muitos filhos, teria sido a mulher ou o nome, que o atraiu? "O belo talismã de minha vida", como ele próprio a chamava. Entre todas as beldades da corte, para ele, foi ela, sem dúvida, a mais sedutora. A primeira vez que a viu tinha apenas, 26 anos e os 33 anos deliciosos dessa bela mulher, espirituosa, culta, delicada e ambiciosa, acenderam, na alma do jovem, o fogo da paixão.

A verdade é que, em Weimar, Charlotte sentiu-se profundamente ferida e decepcionada, ao descobrir a ligação de seu amigo com Cristiana Wulpius, de origem modesta, mas que adorava o poeta; furiosa, deixou a cidade, indo para uma estação balneária, não sem deixar-lhe uma carta, cheia de recriminações, a qual só foi respondida algumas semanas depois, quando o amigo lhe deu algumas explicações ponderadas, fazendo-a ver que ele não podia abandonar Cristiana.

Goethe temia afrontar a ira de sua amiga e a sociedade de Weimar; assim é que, vários anos, apresentou a "doce Cristiana" como governanta de sua casa. 
Só se resolveu a levá-la ao altar, quando, em 1806, achando-se gravemente doente, deveu a vida quase que exclusivamente aos cuidados incansáveis da dedicada jovem. 

Como todos os círculos sociais, o de Weimar sentia também o mórbido prazer de dar curso à maledicência humana, e essa própria elite, que atacara a ligação ilícita dos dois, não aceitou, do mesmo modo, com agrado, aquele casamento "desigual".

Poucos meses antes da sua morte, Charlotte escreve a Goethe, no dia do seu aniversário, como um adeus velado:
 "Mil venturas e bênçãos pelo dia de hoje. Possam os bons espíritos influir para que tudo, de belo e bom, lhe seja conservado, meu caro amigo. Aceite meus votos de um futuro livre de cuidados; para mim, porém, só desejo, caro, mui caro amigo, sua afeição à minha vida, que se extingue". 

Charlotte von Stein (nascida von Schardt).
Momentos antes de morrer, expressou a vontade de que não desejava que seu corpo passasse pela casa de Goethe: queria poupar-lhe esse sofrimento.



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

LLAGAS DE AMOR





Esta luz, este fuego que devora.
Este paisaje gris que me rodea.
Este dolor por una sola idea.
Esta angustia de cielo, mundo y hora.

Este llanto de sangre que decora
lira sin pulso ya, lúbrica tea.
Este peso del mar que me golpea.
Este alacrán que por mi pecho mora.

Son guirnalda de amor, cama de herido,
donde sin sueño, sueño tu presencia
entre las ruinas de mi pecho hundido.

Y aunque busco la cumbre de prudencia,
me da tu corazón valle tendido
con cicuta y pasión de amarga ciencia.




CHAGAS DE AMOR

Esta luz, este fogo que devora.
Esta paisagem cinzenta que me rodeia.
Esta dor por uma só ideia.
Esta angústia de céu, mundo e hora.

Este choro de sangue que devora
lira sem pulso já, lasciva acha.
Este peso do mar que me golpeia.
Este lacrau que pelo meu peito mora.

São grinalda de amor, cama de ferido,
onde,sem sono, sonho a tua presença
entre as ruídas do meu peito vencido.

E ainda que busque a cume da prudência,
dá-me o teu coração um pleno vale
com cicuta e paixão de amarga ciência.




FEDERICO GARCÍA LORCA
in, ANTOLOGÍA DE POESIA AMOROSA CASTELLANO-PORTUGUESA 





Um Verão que fosse eterno





Agora que o Verão já passou.
Talvez não, no sentido meteorológico, mas no sentido temporal.
Agora que as praias esvaziam e as marés baixas, já deixam antever todas as pedras, agora que os dias ficam encolhidos e o ritmo das rotinas retoma, ao mesmo tempo que o bronze evapora dos corpos, é tempo de pensar.
Não é obrigatório pensar.
Mas a verdade é que o Verão introduz uma dose cavalar de letargia.

As férias também são feitas disso, desse pousio cerebral, dessa quietude, dessa desculpa que o calor dá às ideias, para que elas derretam sem misericórdia, em cada golpe de termómetro, em cada gota de suor. Cada vez que o gelo vira água, o pensamento faz igual e evapora-se, enchendo o cérebro de uma matéria sem grandes propriedades e vocações, como o liquido que vai enchendo o copo com sobras de água.

O Verão não tem uma vocação intelectual, nunca teve, mesmo quando se pressupõe pôr a leitura em dia. A grande conquista do Verão é o vazio. O vazio dos bolsos e das ideias.
No Verão a única obrigação é o hedonismo. Uma conquista difícil para os obreiros da vida. Porque há quem viva em Verão eterno. À procura da luz mágica, da hora mágica, do momento mágico.

Diz-se que no Verão, os amores morrem na areia, no fundo de um copo ou na ressaca do dia seguinte. O Verão não foi feito para a “continuidade”, porque não é verbo, é adjectivo atroz e veloz. Se houver grande compromisso no Verão ele vira Outono, no calor só promessas, sem pressas de chegarem a ser coisa alguma.
Para o Verão ser à séria, não pode haver propriedade, só renting e aluguer.
Paga, desfruta e segue.
Check in, check out.

O Verão não casa com ninguém.
É como um bom amante, que só é verdadeiramente bom, porque não é verdadeiramente nosso.
O Inverno até pode durar para sempre, mas todas as pessoas inteligentes, sabem que o Verão acaba.
E há muita inteligência em saber viver o efémero, porque em última análise, é apenas a metáfora mais perfeita do Verão que é a vida, sabendo que a vida nunca é só um Verão.


Isabel Saldanha




quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Mãe, eu quero ir-me embora






Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada 
daquilo que disseste quando os meus seios começaram 
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande, 
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu 
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer. 
.
Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão 
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos, 
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais 
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos 
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia, 
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei 
e o que amei de verdade nunca acordou comigo. 
.
Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre 
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca. 
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez 
não chames pelo meu nome, não me peças que fique — 
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me 
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue 
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito 
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer. 
.
Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem 
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta 
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem. 
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas 
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre 
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias 
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão 
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam 
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.



MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
in, O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES





Time is distance in space






“Since time is distance in space, time is memory on the structure of space. Without memory, there is no time. Without time, there is no memory. It then follows that the energy that we perceive as the material world must be information, or energy on the structure of space" 
– Nassim Haramein




segunda-feira, 22 de outubro de 2018

POEMA 9





Para onde quer que vás a pequena gente não te entenderá
porque tu não fazes a imitação da vida.
A mais sombria das palavras pede sol à tua boca
e tu enches a boca de sol e vens até mim para ser poema,
para ficares cintilando com a luz do leopardo,
essa luz que os pintores misturam com a terra.
Para onde quer que vás a pequenina gente
não deixará de perseguir-te
com vozes que se quebram nas mãos cheias de pressa
levando à boca uma água de vespas,
oprimindo o brilho de todos os instantes; gente
que não aprendeu nunca a lição mais alta
dos pássaros e dos frutos.
Para onde quer que vás a sombra da pequena gente
morderá os teus pés,
gente árida, sem crenças, sem o sentido do amor,
assustada com o sonho, vivendo
na véspera dos dias.
Para onde quer que vás haverá um regresso.
No entanto, a pequena gente ficará lá, o rosto em contraluz,
com a antiquíssima inveja dos arbustos.
E aqui, na terra que tu mesma desejaste assim,
como um rio sem margens,
habitarás a árvore dos meus versos
cujos frutos molhados são palavras cantando.


JOAQUIM PESSOA
in, À MESA DO AMOR




Meditar sem o observador


Pooya Ahmaripour




O silêncio da mente chega naturalmente – por favor ouçam isto – chega naturalmente, facilmente, sem qualquer esforço se você souber observar, olhar. Quando você observar uma nuvem, olhe para ela sem a palavra e portanto sem o pensamento, olhe para ela sem a divisão como observador. Então há uma consciência e uma atenção no próprio ato de olhar: não a determinação de estar atento, mas olhar com atenção, mesmo que esse olhar possa durar apenas um segundo, um minuto – isso é suficiente. Não seja ganancioso, não diga “Tenho que ter isso durante todo o dia”. Olhar sem o observador significa olhar sem o espaço entre o observador e a coisa observada, o que não significa identificar-se com a coisa que é olhada.

Portanto quando se consegue olhar para uma árvore, para uma nuvem, para a luz sobre a água, sem o observador, e também – o que é muito mais difícil, o que precisa de uma maior atenção – se você conseguir olhar para si mesmo sem a imagem, sem qualquer conclusão, porque a imagem, a conclusão, a opinião, o juízo, a bondade e a maldade, estão centrados em torno do observador, então você descobrirá que a mente, o cérebro, se torna extraordinariamente tranquilo. E essa tranquilidade não é uma coisa a ser cultivada; ela pode acontecer, ela acontece sim, se você estiver atento, se você for capaz de observar o tempo todo, observar os seus gestos, as suas palavras, os seus sentimentos, os movimentos do seu rosto e tudo o mais.


Krishnamurti




sexta-feira, 19 de outubro de 2018

ONDE?


Laura Zalenga




Em busca da Verdade, o bem sagrado,
Tenho corrido todos os caminhos,
Ferido os pés em todos os espinhos,
Os horizontes todos perscrutado.

Aos tropeções, portanto ter andado,
A alma queimada em todos os cadinhos
Da Dor e da Amargura, bens mesquinhos,
Cheguei ao fim sem nada ter achado.

Exausta e só, voltei desiludida,
Mísera, nua, ao ponto da partida,
Sem, vislumbrar o bem que tanto almejo.

Meu Deus, suma Verdade, onde te escondes
Que aos meus brados de dor me não respondeis?
Onde existes, meu Deus, que não te vejo?



FLORBELA ESPANCA
in, OS ÚLTIMOS POEMAS DE FLORBELA ESPANCA




A HORA IMPLACÁVEL





Um dia o encontro é inevitável.
Enfrentamo-nos.
Eu e a minha imagem.
Eu e a ideia que tenho de mim próprio.
Eu como avaliador independente do que aconteceu comigo durante estes anos todos e ele, o que fica no reflexo, irónico e desafiador, tímido e assustado, a olhar-me.

Desta vez, reúno toda a coragem e, olhando-me de leve pelo espelho, penso:
Estás velho, companheiro.
Penso isto reparando no cabelo mais branco, mais ralo, mais fino.
Penso isto por causa dos vincos que saem das asas do nariz, das rugas à volta dos olhos, da barbela que a barba já não disfarça, das pálpebras amparadas pelas pestanas.
Sorrio e a imagem não melhora. Muda, apenas.
De ligeiramente irónica, tímida, desafiadora e assustada a um tempo, amacia-se, cobarde, tenta a simpatia. Penso: Estás velho, companheiro, mas és um tipo simpático.

Ainda tens alguma saúde, ainda tens prazer na vida.
Como és guloso, velhadas!
Como ainda gostas de olhar para a juventude, de apreciar um bom jogo de ancas, um rosto alegre, novo e bonito. Como, amigão, ainda te pula o pé para a dança, como gostas de rir com uma qualquer piada, como, sensual e devasso, ainda imaginas orgias, ainda pensas que, felizmente, ainda há quem goste de gente de mais idade.

Insulto-te em pensamento e tu respondes com agressividade mesmo sem palavras.
Não vamos a lugar algum com este diálogo, monólogo, solilóquio!
Fica por aí na tua idade e finge que não me conheces.
Vou fazer o mesmo e vou esquecer que te olhei, hoje, com olhos de ver.
Encolhemos ambos os ombros e eu tento rir-me para não ver os teus olhos encherem-se de lágrimas.


EDGARDO XAVIER
in, LOENGO





quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Princípio do dia





Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.

Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

(Amanhã volto a experimentar).


RUI KNOPFLI




Bênção Nahuati






“Eu liberto meus pais do sentimento de que já falharam comigo. Eu liberto meus filhos da necessidade de trazerem orgulho para mim. Que possam escrever seus próprios caminhos de acordo com seus corações, que sussurram o tempo todo em seus ouvidos.

Eu liberto meu parceiro da obrigação de me completar. Não me falta nada, aprendo com todos os seres o tempo todo.

Agradeço aos meus avós e antepassados que se reuniram para que hoje eu respire a vida. Libero-os das falhas do passado e dos desejos que não cumpriram, conscientes de que fizeram o melhor que puderam para resolver suas situações dentro da consciência que tinham naquele momento. Eu os honro, os amo e reconheço inocentes.

Eu me desnudo diante de seus olhos, por isso eles sabem que eu não escondo nem devo nada além de ser fiel a mim mesmo e à minha própria existência, que caminhando com a sabedoria do coração, estou ciente de que cumpro o meu projeto de vida, livre de lealdades familiares invisíveis e visíveis que possam perturbar minha Paz e Felicidade, que são minhas únicas responsabilidades.

Eu renuncio ao papel de salvador, de ser aquele que une ou cumpre as expectativas dos outros. Aprendendo através, e somente através do AMOR, eu abençoo minha essência, minha maneira de expressar, mesmo que alguém possa não me entender.

Eu entendo a mim mesmo, porque só eu vivi e experimentei minha história; porque me conheço, sei quem sou, o que eu sinto, o que eu faço e por que faço. Me respeito e me aprovo.

Eu honro a Divindade em mim e em você. Somos livres."


(Essa antiga bênção foi criada no idioma Nahuati, falado desde o século VII na região central do México. Ela trata de perdão, carinho, desapego e libertação.)








terça-feira, 16 de outubro de 2018

Ícaro






A minha Dor, vesti-a de brocado, 
Fi-la cantar um choro em melopeia, 
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado, 
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a. 

Por longo tempo, assim fiquei prostrado, 
Moendo os joelhos sobre lodo e areia. 
E as multidões desceram do povoado, 
Que a minha dor cantava de sereia... 

Depois, ruflaram alto asas de agoiro! 
Um silêncio gelou em derredor... 
E eu levantei a face, a tremer todo: 

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro! 
E, misérrima e nua, a minha Dor 
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. 


José Régio
in, 'Poemas de Deus e do Diabo'




Andrea Bocelli, Matteo Bocelli - Fall On Me

On The Universal Force Of Love



In the late 1980s, Lieserl, the daughter of the famous genius, donated 1,400 letters, written by Einstein, to the Hebrew University, with orders not to publish their contents until two decades after his death. 
This is one of them, for Lieserl Einstein.

“When I proposed the theory of relativity, very few understood me, and what I will reveal now to transmit to mankind will also collide with the misunderstanding and prejudice in the world.

I ask you to guard the letters as long as necessary, years, decades, until society is advanced enough to accept what I will explain below.

There is an extremely powerful force that, so far, science has not found a formal explanation to. It is a force that includes and governs all others, and is even behind any phenomenon operating in the universe and has not yet been identified by us. This universal force is LOVE.

When scientists looked for a unified theory of the universe they forgot the most powerful unseen force. Love is Light, that enlightens those who give and receive it. Love is gravity, because it makes some people feel attracted to others. Love is power, because it multiplies the best we have, and allows humanity not to be extinguished in their blind selfishness. Love unfolds and reveals. For love we live and die. Love is God and God is Love.

This force explains everything and gives meaning to life. This is the variable that we have ignored for too long, maybe because we are afraid of love because it is the only energy in the universe that man has not learned to drive at will.

To give visibility to love, I made a simple substitution in my most famous equation. If instead of E = mc2, we accept that the energy to heal the world can be obtained through love multiplied by the speed of light squared, we arrive at the conclusion that love is the most powerful force there is, because it has no limits.

After the failure of humanity in the use and control of the other forces of the universe that have turned against us, it is urgent that we nourish ourselves with another kind of energy…

If we want our species to survive, if we are to find meaning in life, if we want to save the world and every sentient being that inhabits it, love is the one and only answer.

Perhaps we are not yet ready to make a bomb of love, a device powerful enough to entirely destroy the hate, selfishness and greed that devastate the planet.

However, each individual carries within them a small but powerful generator of love whose energy is waiting to be released.

When we learn to give and receive this universal energy, dear Lieserl, we will have affirmed that love conquers all, is able to transcend everything and anything, because love is the quintessence of life.

I deeply regret not having been able to express what is in my heart, which has quietly beaten for you all my life. Maybe it’s too late to apologize, but as time is relative, I need to tell you that I love you and thanks to you I have reached the ultimate answer! “.

Your father,
Albert Einstein




sábado, 13 de outubro de 2018

Concluindo


Jean - Philippe Piter




"Concluindo, há pessoas que se compõem de 
atos, ruídos, retratos. 
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras. "
Manoel de Barros 
.
O mundo não é feito de pessoas nem de casas nem de coisas 
menos ainda de afectos e sentidos. 
O mundo é feito com palavras pefiladas 
como pedras 
sobre pedra 
em cima de outra pedra, ainda. 
.
São de palavras de pedra as paredes do mundo: 
direitas e exactas como um fio de prumo. 
.
Se nos tiram a língua, 
as várias línguas que tem a nossa língua: 
esta língua com que te falo, 
a língua com que te beijo, 
esta mesma língua em que te digo esse nome que tu és, 
roubam-nos mais mundo ao nosso mundo. 
.
E um mundo rente, sem paredes, raso ao chão. 
que não se tenha de pé e num pé direito 
tão alto que lhe caibam todas as palavras empilhadas 
é um mundo do inverso e do regresso 
em que ao privilégio absurdo de viver se segue 
o direito adquirido de sofrer. 



RITA TABORDA DUARTE
in ROTURAS E LIGAMENTOS





Aquela grande galdéria e o nosso Cristiano





O país que se escandalizou 
com o acórdão da "sedução mútua" 
é o mesmo que olha para o vídeo de Las Vegas e diz: 
olha para ela a fazer-se a ele, esperava o quê?


Confesso que quando escrevi sobre o já famoso acórdão do Tribunal da Relação do Porto não esperava que o caso causasse tanto escândalo. Por dois motivos: porque me pareceu, no seu sexismo e moralismo punitivo da vítima, mais do mesmo em relação a muitos outros que foram sendo notícia, e porque considero o machismo da justiça portuguesa um espelho do da sociedade (demonstrando a negação, pela associação sindical dos juízes, do machismo da judicatura a evidência de quanto ele é estrutural e perigoso, por nem sequer refletido e consciencializado).

Assim, foi para mim uma agradável surpresa constatar que não só os comentadores formais se indignaram com os termos da decisão como até no mundo cavernoso nas caixas de comentários dos jornais e do Facebook poucos foram os que se atreveram a julgar a vítima. No entanto, não fiquei convencida de que algo tinha realmente mudado. Não foi preciso esperar muito para constatar o quanto a minha desconfiança era fundada.

Não; não foi decerto por prezar a liberdade e a autodeterminação pessoal e sexual da vítima de Gaia, então com 26 anos, que tanta gente se enraiveceu com o acórdão, nem por dar como assente a definição de violação como penetração sem consentimento e, já agora, porque parece haver muito quem se questione sobre, o consentimento como ausência de dúvida (na dúvida pergunta-se).

Não pode ter sido: fosse esse o motivo e não assistiríamos agora a este coro de gente que critica e julga uma pessoa sobre a qual nada sabe, que fala dela - então com 25 anos - como "uma mulher madura" (querendo dizer "sabidona"), que certifica que se uma mulher dança com um homem e o abraça e a seguir sobe - sozinha ou em grupo - para a sua suite "só pode saber o que lhe vai acontecer". Pessoas - incluindo mulheres -- que afirmam que "ela sabia o risco que corria quando o seduziu". Gente que acha que se uma mulher flirta com um desconhecido numa discoteca só pode ser puta, e que se sobe para o seu quarto só pode ser puta, e se é puta a noção de consentimento não se lhe aplica - porque, pelos vistos, as putas não podem ser violadas, existem mesmo para isso, para não poderem dizer não, para se lhes fazer tudo sem pedir licença.

Gente - homens e mulheres - que falam dos homens como incapazes de controlar os seus instintos sexuais, de não "aproveitar uma ocasião", e das mulheres como presas por definição, que devem por isso ter o máximo cuidado para não se colocarem "a jeito".

Gente para quem, obviamente, a noção de violação no casamento ou no seio de uma relação existente não deve fazer o menor sentido - então, se uma mulher está com um homem, por hipótese, na cama, tem de lhe dar o que ele quiser mesmo que não lhe apeteça, certo?

Gente que crê que no momento em que uma mulher se aventura com um homem, conhecido ou desconhecido, em sexo consensual, não pode dizer ao fim de dez minutos "olha já não me apetece" ou "anal nem penses", ou "sem preservativo não faço" porque se está ali habilitou-se, tem de se submeter.

Gente que ao assim argumentar, achando que está a defender Cristiano Ronaldo, não sabe que está a descrever aquilo a que se dá o nome de "cultura da violação", ou seja, todos os motivos pelos quais é possível que ele ou outro homem qualquer, se colocado numa das situações descritas, possa achar que não está a fazer nada de mais, muito menos a violar, se "se servir até ter vontade", mesmo que pelo meio oiça um não. Porque o que toda esta gente acha, fervorosamente, é que nessas circunstâncias o não de uma mulher a um homem nada significa, não é para ligar, o mais certo é ser, como até pouco tempo, antes da entrada em vigor da Convenção de Istambul, se lia nas doutas anotações de grandes penalistas ao nosso Código e nas fundamentações das sentenças (a mais recente das quais em 2011, no caso da paciente grávida de um psiquiatra), "apenas o jogo de simulada esquivança", "não devendo ser confundido com efetiva resistência".

Não sei - o que li até agora não me permite sequer ter opinião - o que sucedeu naquele hotel em Las Vegas. Mas uma coisa sei: as reações que vejo, até de comentadores encartados que fingem não ter "lado" para pelo meio certificarem que Kathryn Mayorga "não pode ser nenhuma santa porque subiu ao quarto", são em absoluto repugnantes no seu machismo visceral. E ofendem-me pessoalmente - como mulher livre e dona de si, que se arroga o direito de dançar e flirtar com quem quiser, de subir a quartos quando apetecer, de dizer não e vê-lo acatado. Se isso é ser galdéria e pedi-las, é o que sou - e estarei do lado de qualquer mulher que seja vilipendiada por tal.

Como esperaria que comigo - e com Kathryn - estivessem, nisso, todas as mulheres que não querem viver num mundo em que a sua vontade vale menos do que a dos homens e os homens que não se veem como predadores à espera de uma oportunidade.


Fernanda Câncio



sexta-feira, 12 de outubro de 2018

VISITATIONE





os ossos encheram-se de lodo e
eu comprei um albatroz empalhado
para te vigiar a alma - ao anoitecer

é com os dedos incendiados que enterro
os dias - esta poeira brilhante
que se desprende dos cedros e cai
na fissura entre a máscara e o rosto

um lume maligno solta-se então das águas
a pele adquire o sabor do estuque e do bolor
não há morte ou paixão
que esta cidade não conheça - mas o corpo

não se lembra de tudo - a noite ardendo
desperta o coração - este palácio de plâncton
e de fantasmas com asas de sombra

depois
talvez se ouça o canto quase límpido
do mundo - cinzas onde mergulho
para abrir o tempo e visitar tuas mãos
que a lucidez do amor escureceu


Al Berto
in, O Medo





O Executor





Helmut Ortner nasceu na Alemanha em 1950, vive e trabalha em Frankfurt. Escreveu diversos livros de sucesso, publicados em mais de 14 países. Convidado pelo Instituto Goethe, realizou diversas digressões para divulgar o seu trabalho um pouco por todo o mundo. O Executor teve um forte impacto na Alemanha no momento da sua publicação e recebeu elogios nos principais jornais e revistas do país.

É um livro sobre História Mundial, durante o período antes, durante e depois da II Guerra Mundial.

Envolto em mistério até aos nossos dias, o nome do juiz Roland Freisler está fortemente ligado ao sistema judicial da Alemanha nazi. Além de Secretário de Estado do Ministério da Justiça do Reich, Freisler foi o presidente do Tribunal do Povo — o homem que diretamente ordenou a execução de milhares de alemães. O Tribunal do Povo nazi escreveu um dos capítulos mais sombrios da história alemã, já que foi o tribunal que decretou a maioria das sentenças de morte na Alemanha de Hitler e tinha apenas uma função: liquidar toda a oposição ao regime de Hitler. 
Mandou executar alemães activistas da Resistência Rosa Branca, da oposição política, alemães que faziam campanhas secretas de oposição, alemães que manifestassem opinião contrária ao regime nazi, alemães que tentaram assassinar Hitler na conhecida Operação Valkyrie, etc…
O domínio das leis e a destreza verbal nos tribunais fizeram de Roland Freisler o juiz mais temido do terceiro Reich. 

Os interrogatórios do Tribunal do Povo eram filmados com a intenção de se usarem posteriormente as imagens como propaganda. Quase todos os réus eram considerados culpados e condenados à morte por enforcamento, com as sentenças executadas no prazo de duas horas após a aprovação dos veredictos.
Nos seus interrogatórios, Freisler alternava entre a frieza e a ação metódica com a impulsividade, os gritos e furiosas exaltações teatrais exercidas contra os réus.

Esta é a história, manchada de sangue, de um juiz implacável, numa época sem piedade, uma personagem enigmática, terrível e desprovida de coração, que foi morta em fevereiro de 1945 durante um ataque aéreo dos Aliados.

Este livro é de leitura obrigatória, uma história verdadeira de um dos elementos que fez parte do partido nacional-socialista e que para além de surpreendente e atroz, nos leva numa viagem na tentativa de saber mais sobre o histórico movimento Nazi.
Leva-nos a entender como este partido político chega ao poder, eleito democraticamente pelo povo, e como tudo se repete nos dias de hoje em que a extrema direita está a ganhar cada vez mais terreno, devido a um descontentamento geral…foi assim que tudo começou, e está a ameaçar acontecer de novo.
Esta extrema direita dos dias de hoje, começou aos poucos a surgir na Europa com o problema dos refugiados, com o medo dos europeus com relação aos imigrantes, que além de serem promovidos como alguém que chega "de fora" para tomar o emprego dos cidadãos europeus, ainda desvirtuaria a cultura cristã tradicional do continente com as suas diversas religiões, línguas e costumes, com especial atenção ao islão, que seria uma religião promotora do terrorismo.

Está a manifestar um pouco por todo o mundo devido a um descontentamento geral, tal e qual como começou o Regime Nazi a ganhar espaço. São manifestações ultraconservadoras, elitistas, exclusivistas, extremistas, preconceituosas, contra indivíduos e culturas diferentes das do seu próprio grupo.


Quase um século depois, e não se aprendeu nada…e a história repete-se…
Este ano, o partido de extrema-direita não ganhou as eleições na Suécia, mas ficou entre as forças mais votadas. O mesmo se verificou na Itália, Alemanha, Áustria, Hungria ou Holanda.
A extrema-direita continua a ganhar terreno na Europa. 
Mesmo que poucos partidos desta orientação política tenham vencido as eleições nos seus respectivos países, muitos conseguiram ser o segundo ou terceiro partido mais votado.
Vários motivos terão contribuído para a subida da extrema-direita, como por exemplo a crise migratória e financeira que assolou a Europa nos últimos anos. E as principais medidas apresentadas por estes partidos estão relacionadas com este tema. Apesar de haver diferenças de país para país, estes partidos podem ser identificados pelo seu discurso anti-imigração, anti-muçulmano e pelo euroceptismo.

No continente americano, a história repete-se… com a eleição do Trump nos EUA de forma inesperada.
Com quase 50% dos brasileiros a votarem no Bolsonaro… novamente a mesma situação: as pessoas não votaram no Bolsonaro, votaram contra a situação actual no Brasil, tal e qual como aconteceu na Alemanha em 1933 quando elegeram Hitler.
E com Nicolas Maduro a ser reeleito na Venezuela.
Inacreditável mas, a acontecer.
Começa a ser assustador…

E é por isso que faz todo o sentido ler sobre o passado nacional-socialista. Para evitar que volte a acontecer.
Passado esse que, para os alemães,  teve culpa e expiação, fracasso e cobardia, coragem e honradez, criminosos e vítimas, repressão e negação.
É dos alemães que fala este livro.

Da instituição nacional-socialista que desprezou os seres humanos e que, sem o apoio e a complacência dos homens das leis, não poderia ter existido: O Tribunal do Povo. “A Justiça do Terceiro Reich”, a Justiça na Alemanha de Hitler.

Entre 1933 e 1945, os juízes alemães transformaram, de uma forma fanática e com grande sangue-frio, num papel sem valor, a Constituição de Weimar, e aplicaram a lei, apenas formalmente, com uma brutalidade ponderada e sem hesitação. Só que nenhum deles foi obrigado a fazê-lo. Agiram por decisão própria. Foram os executores do Estado Nacionalista-Socialista. São poucos os que ainda estão vivos. De idade avançada, foram bem tratados no pós-guerra, recebem reformas avultadas pagas pelo Estado Alemão. A maioria continua convencida de que cumpriu o seu dever. Consideram-se inocentes e sem problemas de consciência, e não assumem responsabilidade pessoal, muito menos se mostram arrependidos ou envergonhados. Vêem-se como vítimas de uma época fatídica, em que a sua crença na Pátria foi mal empregada pela política e pelos políticos.
Uma Justiça implacável e sem piedade de um sistema Homicida.
E foram os alemães que tornaram possíveis os seus actos, o seu trabalho e as suas carreiras, ainda bem remuneradas nos dias de hoje com reformas altíssimas pagas pelo Estado.
Este é um livro contra o esquecimento.
Porque não é o esquecimento que nos torna livres, mas sim a memória.

Tudo começou quando em Março de 1933, a Presidência da União dos Juízes Alemães defendeu publicamente “a vontade de um Novo Governo para por um ponto final à monstruosa penúria do povo alemão”, e oferecia o seu total apoio à “reconstrução nacional” e um ressurgimento da Alemanha.
“Estamos convencidos de que, com a colaboração de todas as forças disponíveis para a reconstrução, poderemos sanear completamente a nossa vida pública, e com isso, concretizar o ressurgimento da Alemanha.
Em terras alemãs, aplica-se o Direito Alemão!
O juiz alemão teve sempre consciência e responsabilidade nacionais. Teve sempre sensibilidade social e sempre se pronunciou de acordo com a Lei e a consciência.
É assim que deve continuar a ser!
Que a grande obra de construção do Estado dê ao povo alemão um sentido de absoluta unidade.”
A declaração terminava com a garantia de que a União dos Juizes Alemães dava ao Novo Governo “confiança total”

Depois desta declaração seguiram-se outras, nomeadamente a declaração da Associação Prussiana de Juizes:
“No despertar do povo alemão veem os juízes e os procuradores prussianos o caminho correto para pôr fim à penúria e ao empobrecimento monstruosos do nosso povo(…) Os juízes e os procuradores prussianos veem na renovação nacional da Alemanha uma oportunidade de se juntar e trabalhar em conjunto para a reconstrução do Direito Alemão e da Comunidade Popular Alemã. Também eles devem defender a honra e a dignidade do novo Estado criado pela revolução nacional”

Depois destas duas declarações, surgiram outras da Associação Alemã de Notários, da Associação Alemã de advogados, em que reforçavam com agrado “o reforço do pensamento e da vontade nacionais”, assegurando ao governo nacional-socialista que poriam todas as suas forças “ao serviço do restabelecimento do povoe do Reich”

Foi por aqui que tudo começou: a subordinar o Direito e as Leis aos seus propósitos políticos e às suas convicções racistas. Após o incêndio do Reichstag pelos nazis, foram revogados direitos fundamentais por intermédio do Decreto para a Proteção do Povo e do Estado. Foi um verdadeiro golpe que criou as condições iniciais para a perseguição dos inimigos políticos.

O novo governo aprovou também o Decreto Contra a Traição ao Povo alemão e as Atividades de Alta Traição.
Finalmente, Hitler obteve a aprovação à sua Lei dos Plenos Poderes, pela qual o seu governo podia aprovar leis que alterassem a Constituição.
O fim da República de Weimar não foi um elemento perturbador, mas sim um passo libertador. As suas ideias eram antirrepublicanas, antiparlamentares e antissemitas.
A tomada do poder pela “concentração nacional” dos nacional-socialistas e dos conservadores de direita, foi considerada uma mudança normal de governo, legal, e extremamente necessária.
Por muito que que se limitassem de maneira flagrante os direitos que garantiam o usufruto da liberdade individual, para os juízes, só era importante a sua ideia de “independência”, que na opinião de muitos, pouco fora respeitada durante a República de Weimar, e tinham a certeza de que Hitler não atentaria contra a independência dos juízes no exercício do cargo, o que não aconteceu, e essa independência foi-lhes retirada e foi-lhes dada inamovibilidade, em que a partir desse momento, o ponto central da jurisprudência seriam os direitos do povo e não os do indivíduo.

Excertos do discurso de Hitler no dia 23 de Março de 1933:

“ O nosso sistema legal deve, em primeiro lugar, servir para preservar a comunidade do povo. A inamovibilidade dos juízes de um lado deve corresponder à maleabilidade das suas sentenças, a fim de preservar a sociedade. Não é o indivíduo que deve ser o centro das preocupações jurídicas, mas o povo!(…)
Futuramente, a traição ao País e ao Povo será cauterizada com uma desumanidade bárbara!
A base da  existência da justiça só pode ser a base da existência da Nação. Por isso, há que ter sempre em conta o peso das decisões daqueles que, debaixo da pressão dura da realidade, são responsáveis por dar forma à realidade da vida da nação!
Todos os tribunais alemães, incluindo o Tribunal do Reich, devem ser limpos de juízes e funcionários de raças estrangeiras (…) Há que retirar imediatamente a autorização até agora concedida a todos os advogados de raças estrangeiras membros de partidos marxistas, ou seja, o SPD e o KPD. O mesmo é válido para os magistrados de pensamento marxista.”

Tudo isto passou a ser vinculativo com a Lei da Restauração da Administração Pública.

O Tribunal do Povo foi criado para subordinar o povo.
Tinha 3 pilares:
1 – O papel da Traição.
Eram convictos, na sua maioria, de que o império alemão(Reich) perdera a I Guerra Mundial devido ao ato de traição cometido na retaguarda, e por isso os nacional-socialistas achavam que a traição não poderia voltar a acontecer e teria de ser severamente punida.
2- O conceito de Comunidade do Povo
A Traição era sempre contra a Nação, contra a “comunidade do povo”, e eles consideravam-se a mais elevada forma de expressão do povo. E estavam determinados para que não houvessem divisões no povo. Deixou de haver classes sociais e passou a haver um povo único. Quem infringisse as Leis do Estado, punha-se fora da comunidade do povo e convertia-se em inimigo do povo.
3- O Princípio do Fuhrer
Hitler definiu o papel do líder(Fuhrer) com um poder que não estava sujeito a nenhuma limitação, um poder absoluto. A sua consequência era a obrigação de acatar e cumprir as ordens do Fuhrer e a sua vontade passava a ser a medida de todos os seus atos. A ordem, dada de cima e aplicada por uma rede de instituições e de autoridades, passava a ser decisiva e vinculativa.
“A autoridade do Fuhrer não é uma competência. Não é o Fuhrer que faz o cargo. O Fuhrer modela o cargo segundo a sua missão (…) a autoridade do Fuhrer não conhece um vazo de competência, e está acima de todas as competências. A autoridade do Fuhrer é total.”
Nos tribunais, o Fuhrer(líder) seria unicamente o juiz que presidia o tribunal. Os restante juízes, procuradores, oficiais de justiça e advogados deviam acatar as ordens do juiz-presidente sem contestar. A sua autoridade estava acima da Lei e do Direito.

E foi assim que se iniciou a Era Freisler que começou a 15 de Outubro de 1942 no Tribunal do Povo, com Roland Freisler como presidente na sua sede em Berlim. Em 1941, o Tribunal do Povo já tinha 6 varas com 78 juizes e 74 procuradores.
Era um Tribunal Político Superior que atuava em consonância com a chefia do Estado. As penas eram sempre Morte( enforcamento ou fuzilamento), trabalhos forçados e prisão.
Era portanto, um órgão integralmente nacional-socialista cujo único compromisso era salvaguardar a devoção ao Fuhrer, ao Partido e à “causa alemã”.

O Tribunal do Povo era a garantia para os governantes de que, todas as formas de oposição seriam perseguidas e liquidadas.
Para isso também contribuiu a colaboração íntima com a Gestapo, polícia secreta do Estado, encarregada de identificar e prender todos os casos de traição levados ao Tribunal do Povo.
Antes da audiência no Tribunal do Povo, os detidos ficavam presos na Gestapo durante meses onde eram torturados e eram vítimas de maus tratos, obrigados a confessar sob violentos métodos de interrogatório.
O poder absoluto da Gestapo acontecia também quando os detidos cumpriam a pena de prisão e saiam em liberdade depois de cumprida a pena. A Gestapo voltava a detê-los e levava-os para campos de concentração, ignorando as decisões dos tribunais, mas com a aprovação do Estado. Lá eram fuzilados.
Muitos casos nem chegavam ao Tribunal do Povo, e eram logo fuzilados.

No Tribunal do Povo:
“O juiz do Tribunal do Povo deve habituar-se a considerar prioritárias as ideias e as intenções da chefia do Estado, tendo um papel secundário o destino da pessoa que de si dependa. Porque os acusados que comparecem perante o Tribunal do Povo são apenas manifestações menores de um circulo bem maior que está por trás deles e que combate contra o Reich. Isto é especialmente verdade em tempo de guerra.
Identifico alguns exemplos:
1- Se um judeu, e para mais um judeu que ocupe um lugar de destaque, for acusado de traição à Pátria-mesmo que só por cumplicidade- estão atrás dele o ódio e a vontade de todos os judeus de exterminarem o povo alemão. Regra geral, trata-se aqui de alta traição, que deve ser punida com a morte.
2- Quando, no sentido do comunismo e depois do 22 de junho de 1941 com a invasão da União Soviética, um alemão do Reich incite ou tente influenciar o povo com ideias comunistas, a sua ação não deve ser considerada apenas um ato preparatório de alta traição, mas também um favorecimento do inimigo, em concreto da União Soviética.
3- Se, na região da Boémia-Morávia, os checos se continuarem a revoltar contra o Reich, por influência da emissora londrina, isto não é apenas preparação de alta traição, mas também favorecimento do inimigo”

A partir do final de 1943, maior parte dos casos já nem chegavam a julgamento e eram logo resolvidos pela Gestapo e enviadas para campos de concentração onde seriam fuziladas.
E o Tribunal do Povo passou a ocupar-se dos processos de desmoralização das forças militares, classificados por Hitler como “Noite e Nevoeiro”. Esses processos tiveram origem com o aumento de ataques e atos de sabotagem que tinham como alvo pessoas e instituições da Alemanha, nos territórios ocupados do Norte da Europa e da Europa Ocidental. Hitler ordenou a punição com a morte contra todos os que participassem em ações de terrorismo ou de sabotagem, sem que os familiares soubessem do destino do perpetrador e as cartas de despedida eram atiradas para o lixo. Eram assim levados e assassinados na escuridão da noite e no meio do nevoeiro. A condenação à morte era sentenciada no Tribunal do Povo pelo juiz Roland Freisler, e eram fuzilados 2h depois.

A força do Estado era formada pela Polícia, pela Gestapo, pelo Partido e pela Justiça.

E era sempre “em nome do povo”
O objetivo não era fazer justiça, mas sim exterminar o adversário, era esta a missão do Tribunal do Povo.
Dedicaram-se a esta missão com um fanatismo coerente, e não o fizeram às escondidas, muito pelo contrário.
Os alemães sabiam o que se passava, e a forma como tudo acontecia. Cartazes da cor de sangue eram afixados na via pública a anunciar as condenações à morte decididas pelo tribunal, e todos podiam assistir às condenações se quisessem.
Os apoiantes de Hitler, militantes e simpatizantes do partido, celebravam, desfilavam e denunciavam. Os oportunistas iam-se aproveitando da situação e guardavam para si as suas dúvidas sobre o Fuhrer e o Reich. Os alemães de Hitler eram um povo de cúmplices, oportunistas, mirones, denunciantes, de gente que preferia voltar a cara.
E depois, haviam os outros, os adversários, a oposição, os críticos do regime. E esses, estavam presos, tinham sido assassinados, ou fugido para o exílio…e havia os que esperavam pela morte nos campos de concentração.

A “autodepuração” do povo, que Freisler defendia com tanto fanatismo continuou até ao fim da guerra, quando ele morreu. As sentenças de morte do Tribunal do Povo eram ditadas “em nome do povo” e era também em seu nome que executavam os adversários. Eram um povo de culpados e de cúmplices.
Uma frase imprudente, uma piada subtil, por mais insignificantes e inofensivos fossem os comentários, tudo era crime, punível com a pena de morte.
Era a uma justiça desumana, de um regime tirânico, e de um povo cego.

No dia 20 de julho de 1944 explodiu uma bomba no Alto Comando da Wehrmacht. Atirou ao chão os 24 oficiais presentes, entre os quais os principais generais, 4 morreram e os restantes ficaram feridos, e Hitler que ficou em mau estado mas sobreviveu – foi atingido por destroços do teto nas costas, o braço direito ficou imobilizado, dores fortes na perna direita e ficou com os tímpanos perfurados.
Essa bomba foi detonada pelo conde Claus Stauffenberg, chefe do estado-maior da Reserva do Exercito, que a levava na sua pasta para a reunião no Alto Comando. O seu objetivo era matar Hitler, fazendo-se explodir com ele. O grupo de conspiradores era formado por diversos oficiais e generais que tinham apoiado Hitler no início até quando perceberam que já não podiam ganhar a guerra e que o Reich acabaria por ficar reduzido a escombros.
Foi o Atentado Valquíria, para dissolver todos os centros de poder nacional-socialista, entre os quais os departamentos mais importantes do Partido, da administração do Estado e da Polícia, além da Gestapo e da SS.
Mas, não foi o que aconteceu. O plano falhou.
E oficiais de confiança de Hitler descobrem onde os conspiradores estavam reunidos ao final da tarde desse dia 20 e prendem-nos. Foram todos condenados à morte, e por volta da meia-noite desse mesmo dia foram todos fuzilados.
A insurreição dos oficiais terminou, mas a vingança de Hitler não.
Foi dominado por uma fúria tremenda, e fora de si ameaçou todos os conspiradores e as suas famílias com uma vingança terrível. Fez uma declaração na rádio para que soubessem que estava vivo e a comunicar que todos os conspiradores tinham sido fuzilados. E o ajuste de contas começou depois, com uma grande vaga de detenções, seguidas de torturas brutais. Ele queria mostrar ao povo alemão como ele lidava com conspiradores, opositores e traidores. Esta propaganda coordenada serviu para manter inalterada a fé no Reich, no Partido e no Fuhrer, e a oposição ao regime passou a ser uma minoria em vias de extinção.

Os homens de confiança de Hitler passaram a ser o Himmler, que passou a ser o Chefe da Reserva do Exército, e Freisler.
O processo Valquíria, foi o último de Freisler.
Várias centenas de pessoas foram acusadas e executadas por Freisler durante meses após o atentado: pessoas de todas as classes, desconhecidos e conhecidos, suspeitos, oficiais, generais, simpatizantes dos conspiradores, seus subalternos, oposição política, e todos foram condenados à morte e executados 2 horas depois de lida a sentença.
Freisler não queria dececionar Hitler, e tudo correu como o Fuhrer ordenou. Foram todos condenados à morte.
Hitler, chegou a pensar fazer o processo público que funcionasse como espectáculo, para ser filmado e transmitido pela rádio. Mas Himmler, manifestou-se contra, argumentando que as circunstâncias haviam mudado e que já não estavam em 1939/40. Hitler acabou por concordar com ele:
“Tem razão, Himmler. Se organizo um processo público, terei de deixar falar publicamente esses tipos. E algum deles pode ser capaz de argumentar bem e de se transformar em defensor da paz para o povo alemão. Isso poderá tornar-se perigoso”
Os 8 conspiradores, foram pendurados como gado num matadouro, como Hitler ordenou e tudo foi filmado. O filme foi exibido publicamente.
Em setembro começou um processo contra os conspiradores civis. A vingança de Hitler continuava através da mão impiedosa de Freisler, que como Hitler lhe ordenou, condenou todos à morte por alta traição, derrotismo, desmoralização das forças militares e favorecimento do inimigo.

Enquanto os Aliados reforçavam os ataques aéreos e a Alemanha se ia afundando no meio dos escombros causados pelos contínuos bombardeamentos, o Tribunal do Povo continuava a levar avante a vingança de Hitler e a decretar sentenças de morte, umas atrás das outras, todas ordenadas por Freisler.

Os membros do “Círculo de Kreisau”, como eram conhecidos os opositores ao regime, de início não queriam assassinar Hitler, mas depois, numa ação de desespero decidiram-se pelo atentado, de forma a salvar o que ainda podia ser salvo no regime. Até hoje, ainda está por apurar o que levou várias figuras de topo do regime a mudar de campo e a formar o Círculo de Kreisau. Este atentado de 20 de julho, tem servido até hoje como sinónimo de uma “Alemanha diferente e democrática” e como “um raio de luz moralista” nas trevas criminosas do regime nazi. Mas, ambos os conceitos são duvidosos. Porque, um grande número de alemães, comunistas, socialistas, sindicalistas, cristãos radicais ou independentes, sozinhos ou em grupo, sem cargo nem nome, militaram na oposição e foram, por isso, perseguidos, presos, assassinados, ou enviados para o exílio.
O destaque dado aos “homens do 20 de julgo” foi uma das grandes mentiras da Alemanha do pós-guerra.
Na República de Adenauer, não houve lugar para a sacrificada oposição de esquerda à ditadura nazi.

1944, foi o ano do medo, e Freisler usou os processos e as condenações à morte para dar uma lição a todos os que pensavam em traição à causa alemã e à vitória final.

Setembro de 1944 – a Alemanha estava enfraquecida e o “Reich dos Mil Anos” morria visivelmente de dia para dia no meio dos destroços e das cinzas. Os ataques aéreos dos Aliados eram cada vez piores, a invasão era imparável. Mas, a população continuava a acreditar que Hitler iria dar a volta até chegar à vitória, com base na sua promessa de uma nova arma implacável. A propaganda dizia para resistirem, e os alemães num misto de abatimento e raiva, de sofrimento e culpa, tentavam encorajar-se mutuamente. O atentado de 20 de julho serviu para fortalecer psicologicamente o regime, deu-lhe fome de vingança, e a sobrevivência de Hitler foi uma prova de que a Providência o poupava porque estava do seu lado, e ele era invencível. Esta era a força da propaganda política.
As ilusões eram vistas como se fossem realidades.
Ainda havia vontade e força para resistir.

Mas, a 11 de setembro de 1944, os soldados dos EUA atravessam a fronteira do Reich perto de Trier. 
A 25 de setembro Hitler forma uma milícia chamada ”Tempestade Popular Alemã” formada por todos os homens alemães entre os 16 e os 60 anos., “capazes de usar armas” e que até ali tinham estado isentos do serviço militar. Para os Aliados, foi um sinal de fraqueza militar e uma indicação de que a Wehrmacht chegara de vez ao fim. E a partir daqui começou a instalar-se a dúvida se a Alemanha conseguiria ganhar a guerra.

Hitler, nesta altura começou a sofrer de depressão, dores de cabeça e crises gripais. A sua atitude parecia a de um velho obstinado. A sua decadência era visível, especialmente depois do desembarque dos Aliados a 7 de setembro de 1944.

No final de novembro, cria o “Corpo de Auxiliares Femininas da Wehrmacht” com mulheres jovens com mais de 18 anos, para voltar a atacar o inimigo.
Ainda havia muitos que continuavam a acreditar na vitória, movidos pela propaganda política e cegos pela ideologia, e milhares de jovens foram morrer uma “morte alemã”.
Foi resistir até “ao amargo desenlace”.
Heinrich Himmler a 11 de janeiro de 1945 faz um apelo contra os “desistentes” e pediu às mulheres e às raparigas que enviassem para a frente de combate os “ cobardes impenitentes a golpes de esfregona”, e Freisler continuava a decretar sentenças de morte e a dar continuação à vingança de Hitler.
A meio de um julgamento, a 3 de fevereiro de 1945, soa o alarme antiaéreo, e a força aérea bombardeia Berlim com 700 bombardeiros e largaram 3 mil toneladas de explosivos sobre Berlim…morreram mais de 20 mil pessoas.
O alvo deste ataque foi o Centro de Poder Nacional-Socialista.
E uma das vítimas foi o carrasco do Tribunal do Povo, Roland Freisler.
O seu sucessor no Tribunal do Povo foi Harry Haffner, que era procurador-geral, e também era um fanático tal como Freisler.

Em abril de 1945 a Alemanha estava reduzida a escombros. As forças americanas, soviéticas e inglesas ocupavam as cidades alemãs. A 20 de abril, Hitler fez 56 anos e Goebbels declarou na rádio: “ o Fuhrer percorrerá o seu caminho até ao fim e o que o espera não é a derrota do seu povo, mas um novo começo, de felicidade e de florescimento sem igual da germanidade”

A 30 de abril de 1945, Berlim foi conquistada pelos soviéticos, hastearam a bandeira da União Soviética na capital alemã, e Hitler ao final do dia suicidou-se no bunker da chancelaria do Reich, na companhia de Eva Braun, com quem se casara pouco antes. O seu criado de quarto encontrou-o ensanguentado com uma pistola na mão. Ao seu lado, estava Eva Braun, que se envenenou. Levaram os dois corpos para fora do bunker, puseram-nos no jardim da chancelaria, regaram-nos com gasolina e queimaram-nos. Depois, enterraram os corpos carbonizados com os dois cães de Hitler que tinham sido envenenados.
Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda,  fez o mesmo a si próprio e à mulher e aos seus 6 filhos de seguida, no jardim da chancelaria. O profeta ia de novo ao encontro do seu messias.

No início de Maio de 1945 a Alemanha de Hitler estava derrotada, e com ela o fim do Tribunal do Povo. Deixou de existir um tribunal do terror.
E quanto aos alemães, vítimas e criminosos, que tanto sofrimento infligiram a outros povos, terão sentido vergonha, ou sentiram-se apenas derrotados?
Conseguiram compreender o que se passou, aquilo com que colaboraram e permitiram?

A “Hora Zero” que serviu para a “desnazificação”, também deveria ter servido para “purificação” dos alemães. Um povo inteiro ficou sujeito a um procedimento de purificação política e moral feito pelas potências vencedoras para a reabilitação coletiva dos alemães. Começaram de imediato a perseguição e captura dos nazis e as punições para os criminosos de guerra. Mas, quem era culpado e quem era apenas simpatizante? Foram criados os “Princípios de Potsdam”, cidade onde se reuniram os 3 chefes de Estado vencedores, onde foram definidos 5 grupos de pessoas para aplicação das penas: principais culpados, pessoas com antecedentes políticos (ativistas, militaristas e beneficiários), pessoas com menores responsabilidades, colaboradores e os que estavam isentos de culpa e podiam fazer disso prova nos tribunais civis criados para o efeito.
O povo, ficou todo ele sentado no banco dos réus.
O povo sentia-se derrotado, mas não culpado.
Os americanos distribuíram questionários para os alemães responderem a 131 perguntas de forma clara. As respostas incompletas, evasivas e omissões eram puníveis. 13 milhões de questionários foram analisados, separando os nacionais-socialistas dos outros. Os nazis do partido foram detidos  automaticamente, e os outros foram afastados dos seus empregos. Os simpatizantes puderam manter os seus empregos.
Todo este processo de “desnazificação” deu muitos problemas, como deficiências de ocupação de cargos de elite, e os campos de internamento onde os alemães eram detidos com lotação mais do que lotada. Outro problema que surgiu foi o que fazer aos juízes. Era necessária uma justiça democrática e justa, e 90% dos juízes alemães foram afastados dos tribunais.

Em 1947 o processo de “desnazificação” começou a abrandar porque se revelou um fracasso. Maior parte dos alemães achavam que o nacional-socialismo foi uma coisa boa mas que foi mal concretizada, e seriam esses alemães que iriam fazer a sua desnazificação.
Por isso, foram criados 2 Estados Federados, controlados pelos EUA e a União Soviética, onde foram criadas comissões de desnazificação, mas com êxito duvidoso.

Todas as tentativas feitas para distinguir os alemães decentes dos nazis revelaram-se impossíveis. Quase ninguém queria aparecer como testemunha de acusação, e testemunhas de defesa sobravam.
Os alemães já se sentiam suficientemente castigados pela derrota. Não havia lugar para a consciência de culpa, nem para a expiação, nem para a vergonha.
Consideravam nazis de má índole apenas os funcionários do partido, os criminosos nacionais-socialistas e os carrascos dos campos de concentração.

Já os chefes das células, informadores e delatores, tesoureiros, chefias intermédias, cúmplices com cargos elevados como os oficiais, gerentes económicos, burocratas, professores, magistrados e advogados, eram considerados nazis de boa índole que “apenas quiseram o que era melhor para a Alemanha e para o povo alemão, e estavam apenas a cumprir o seu dever”, e por isso deveriam ficar em liberdade, deixá-los ir em paz com benevolência. Todos esses se safaram. Salvaram as suas carreiras, garantiram as suas reformas, e todos os seus bens.

Apenas foram declarados culpados 16 magistrados alemães, por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes organizacionais. No entanto, os mais destacados representantes da “Justiça do Terceiro Reich” não foram responsabilizados porque o Ministro da Justiça, Gurtner, morreu nos bombardeamentos; Thierack que o sucedeu suicidou-se num campo de prisioneiros inglês; Bumke, presidente do Tribunal do Reich, também se suicidou; e Roland Freisler também morreu nos bombardeamentos. Só restavam aqueles 16 magistrados com provas evidentes de culpa de cumplicidade com o sistema de terror nacional-socialista acusados de “ assassinarem a justiça e cometerem atrocidades que destruíram a lei e a justiça na Alemanha, e ao desvirtuarem os procedimentos legais, permitiu-lhes perseguir, escravizar, torturar, condenar e exterminar, seres humanos numa escala gigantesca”. As provas foram esmagadoras, e foram julgados por serem nacional-socialistas fanáticos à semelhança de Freisler e Thierack, e também por serem representantes de toda a magistratura conservadora que expôs a ligação tão próxima entre o Sistema Judicial e o Regime de Terror Nazi da Gestapo e SS. Sem esses magistrados os governantes nacional-socialistas não poderiam ter chegado ao poder. Foram condenados a prisão perpétua. Os criminosos de secretária tiveram penas entre os 5 e os 10 anos de prisão.

No entanto, esta purificação falhou, porque foi sentido como uma represália injusta dos Estados vencedores, já que “estavam apenas a cumprir o seu dever com a Pátria”, dizendo que “o que antes foi legal, não pode ser agora considerado ilegal”.
Todos se consideravam inocentes e julgados injustamente.
Ou seja, um nazi convicto podia ter atitudes nobres.
Foram poupados milhares de magistrados considerados culpados, como ainda puderam começar de novo. Regressaram aos seus lugares nos tribunais e continuaram as suas carreiras.
Entre corvos não se arrancam olhos!
Protegeram-se todos uns aos outros.
E a justiça não foi feita.
A “Hora Zero” não existiu!

E assim se fez a “superação eterna do passado”, no governo de Adenauer, como uma “tarefa social de longo alcance”, e declarou que os alemães eram “uma nação normal que tivera o azar de ter maus políticos à frente do seu país”.
Então Hitler foi um mero acidente de percurso?
Os alemães…um povo iludido!!!!
Foram “vítimas de Hitler”?
O Terceiro Reich foi obra de criminosos?
Membros da antiga SS foram considerados pessoas decentes, os carrascos dos campos de concentração, nomeadamente os de Auschwitz e de Majdanek, eram obrigados por “ordens superiores” a fazer o que fizeram.
“Nunca soubemos de nada”
“Nem tudo o que se passou foi errado”
 Só 10% dos suspeitos foram condenados, e acabaram por sair em liberdade pouco tempo depois.

Do tribunal do Povo, o tribunal do terror, ninguém foi condenado, 570 funcionários e 67 magistrados, alegando que “Qualquer Estado, mesmo que totalitário, tem o direito de autoafirmar-se. Não se lhe pode censurar que, em época de crise, recorra a métodos excecionais e dissuasores”. Um juiz nacional-socialista “não fez nada de mal, apenas cumpriu o seu dever”.
Todas as sentenças de morte impiedosas sem direito de defesa eram apenas “o direito do Estado a autoafirmar-se”.
Toda a Justiça Federal criada depois de 1950 foi construída com centenas de assassinos. E não perturbava ninguém que os antigos juízes do Tribunal do Povo, carregados de culpas, assassinos implacáveis, estivessem novamente a aplicar a lei em cargos de destaque, como cidadãos exemplares.
A absolvição dos magistrados nazis não foi uma exceção, mas sim a regra.

Criminosos que se sentiam livres de qualquer culpa e responsabilidade, e consideravam o passado superado.
Quase todos os alemães, exceto uma reduzida minoria, consideravam-se vítimas, e ninguém reconheceu que era criminoso, que cooperaram com os delinquentes, ninguém viu, ninguém desviou o olhar.
“Não reconheciam que seguiram Hitler e os nazis com um zelo e um entusiasmo espantoso, não apenas no começo, mas também depois quando ficou bem claro o que Hitler e os seus seguidores andavam a fazer”

Depois de 1950, os alemães consideravam ofensivo a recordação constante do Terceiro Reich, e Adenauer apoiou os alemães nesta atitude defensiva.
Foi o  grande processo coletivo de Repressão da Memória.


E hoje, 80 anos após a queda do regime nacional-socialista, como são as circunstâncias?
Os que colaboraram, denunciaram, os cúmplices, os simpatizantes, tendem a embelezar, falsificar e a relativizar a realidade, quando chega o momento de falar do papel desempenhado pela Justiça do Terceiro Reich. Estabelecem uma diferença entre os magistrados conservadores honrados (os que cumpriram o seu dever evitando males maiores), e os magistrados nazis (os únicos responsáveis pelos atos criminosos da justiça nacionalista-socialista). É uma diferenciação descabida que, desde a “Hora Zero” é apresentada como justificação de atos nada aceitáveis, já que foram precisamente os magistrados conservadores que criaram as condições necessárias para o desaparecimento do Direito Democrático, para que pudesse ser pervertido pelos nazis e dar legalidade aos atos de terror por eles cometidos.
Foram os magistrados conservadores que permitiram que o Hitler fizesse o que fez com base legal. Sem eles, o Hitler não teria criado o Partido Nazi.
Foram os magistrados conservadores que asseguraram e garantiram o poder da ditadura de Hitler.
E foram todos inocentados e absolvidos, e continuaram a exercer a sua carreira na magistratura no pós-guerra.
Foram cúmplices de Hitler.
As leis e as normas foram abolidas, alteradas e aplicadas de acordo com a vontade de Hitler e os nazis.
A Justiça que é a grande culpada, foi absolvida!

O tempo de expiação dos crimes por quem os cometeu já passou, a maioria dos juízes assassinos já morreram, e fica para a história o fracasso e as falhas da justiça pós-guerra.