quinta-feira, 28 de setembro de 2017

tu-nós...






O MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS. 

Este rosto com que amamos, com que morremos, não é 
nosso; nem estas cicatrizes frescas todas as manhãs, nem estas 
palavras que envelhecem no curto espaço de um dia. A noite 
recebe as nossas mãos como se fossem intrusas, como se o 
seu reino não fosse pertença delas, invenção delas. Só a custo, 
perigosamente, os nossos sonhos largam a pele e aparecem 
à luz diurna e implacável. A nossa miséria vive entre as 
quatro paredes, cada vez mais apertadas, do nosso desespero. 
E essa miséria, ela sim verdadeiramente nossa, não encontra 
maneira de estoirar as paredes. Emparedados, sem possibilidade 
de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso amor, 
assim vivemos. Procuramos a saída - a real, a única - 
e damos com a cabeça nas paredes. Há então os que ganham 
a ira, os que perdem o amor. 

Já não há tempo para confusões - a Revolução é um momento, 
o revolucionário todos os momentos. Não se pode 
confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor. 
Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor
ao homem e à liberdade. NÃO SE PODE CONFUNDIR! Quem 
ama a terra natal fica na terra natal; quem gosta do folclore 
não vem para a cidade. Ser pobre não é condição para se 
ganhar o céu ou o inferno. Não estar morto não quer forçosamente 
dizer que se esteja vivo, como não escrever não
equivale sempre a ser analfabeto. Há mortos nas sepulturas 
muito mais presentes na vida do que se julga e gente que
nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda 
uma geração de escritores. 

A acção poética implica: para com o amor uma atitude 
apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, 
para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a 
sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são 
autónomas, a sua comunicação esotérica. 

Os profetas, os reformistas, os reaccionários, os progressistas 
arregalarão os olhos e em seguida hão-de fechá-los de 
vergonha. Fechá-los como têm feito sempre, afinal, e em 
seguida mergulharem nas suas profecias. Olharem para a parte 
inferior da própria cintura e em seguida fecharem os olhos 
de vergonha. Abandonarem-se desenfreadamente à carpintaria 
das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima das 
nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o 
amor e em seguida fecharem os olhos de vergonha às 
manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor. 

MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU 
SOZINHO no meu desespero e na minha revolta. Sei pela luz 
que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto 
de matar, pela que se extingue em cada homem à vista dos 
massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram, 
pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da 
infância, por um estandarte negro sobre o coração, pela luz 
crepuscular como uma navalha nos olhos, pelas cidades que 
chegam durante as tempestades, pelos que se aproximam de 
peito descoberto ao cair da noite - um a um mordem os pulsos 
e cantam - sei pelos animais feridos, pelos que cantam nas 
torturas. 

Por isso, para que não me confundam nem agora nem 
nunca, declaro a minha revolta, o meu desespero, a minha 
liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em 
punho e que ninguém se aproxime para aquém dos mil passos 

EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU 
MEU AMOR 

minha aranha mágica agarrada ao meu peito 
cravando as patas aceradas no meu sexo 
e a boca na minha boca 
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança 
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca 
um ano       dois anos       um século 
agora um alfinete na garganta deste pássaro 
tão próximo e tão vivo 
outro alfinete       o último       o maior 
no meu próprio plexo 

MEU AMOR 
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância 
e nenhum avião ainda percorreu 
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos 
e ainda ficam cabelos por contar 
anos e anos ficarão por contar  

DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE 
O TEU ÚLTIMO CABELO 


António José Forte





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