domingo, 19 de maio de 2024

O Mito das Sereias





A fim de se proteger do canto das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e mandou que o acorrentassem firmemente ao mastro principal do barco. Sem dúvida, desde sempre, quaisquer outros marinheiros, teriam podido fazer o mesmo, mas mesmo assim pouco ou nada lhes adiantava fazê-lo. O canto das sereias era avassalador e a paixão dos seduzidos teria arrebentado as correntes e mesmo o próprio mastro. Ulisses, porém, não pensava nisso, pois confiava plenamente na cera e correntes, pelo que na inocente alegria, com os meios de que dispunha, partiu ao encontro das sereias.
Mas as sereias possuem uma arma ainda mais terrível que o canto, o silêncio. Desconheço se isso aconteceu alguma vez com algum navegante, mas admito que haja quem se tenha salvo do seu canto, mas não do seu silêncio. O sentimento de tê-las vencido com as próprias forças, a avassaladora arrogância daí resultante, nada neste mundo é capaz de conter.
Estes poderosos e insinuantes seres, não cantaram quando Ulisses chegou, ou porque acreditavam que só o silêncio poderia com esse opositor, ou porque a visão da felicidade e segurança expressas no rosto daquele, os tenha feito esquecer o canto.
Ulisses, contudo, e por assim dizer, não ouviu o seu silêncio, acreditou que estivessem a cantar e que apenas ele se encontrasse a salvo de as ouvir. Com um olhar rápido, viu as curvas dos seus pescoços, o respirar fundo, os olhos cheios de lágrimas ou as bocas entreabertas. Mas como não era melómano, acreditou que tudo aquilo fizesse parte das árias que soavam inaudíveis a sua volta. Em breve, tudo perpassou pelo seu olhar, perdido na distância. As sereias desapareceram, e, quando supunha estar mais próximo delas, já nem mais sabia de sua existência. Mas elas, mais belas que nunca, mexiam-se, esticavam-se, deixavam os cabelos esvoaçar ao vento, soltando as garras na rocha. Abdicaram de o seduzir, mas queriam apanhar pelo máximo de tempo possível, o reflexo dos grandes olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas então. Mas permaneceram e Ulisses, escapou-lhes.
Desta história, há a destacar um breve epílogo.
Segundo reza a lenda, Ulisses era astuto, tão astuto como uma raposa, e que nem a deusa do destino, conseguiu penetrar no seu íntimo.
Embora isto não seja muito compreensível para cada um de nós, talvez ele tenha, de facto, percebido que as sereias estavam mudas, e oferecido a elas e aos deuses aquela simulação, como um mero escudo.

Franz Kafka
in, A Metaformose





O canto da sereia, em específico, carrega uma simbologia rica, podendo ser interpretado de modos diversos, com enfoques variados. O alerta para as tentações, o horror ao desconhecido, o receio da perdição pela incontinência dos desejos, são alguns dos temas mais instigantes deste mito.

As sereias, na mitologia, não são humanizadas: elas são monstros, e sua relação com a humanidade é a da predação. Sereias caçam seres humanos.

Além disso, não há menções à sua beleza — pelo contrário: a única coisa bela a respeito das sereias, no mito grego, é seu canto. Após atrair os marinheiros com sua voz irresistível, elas, é claro, matam suas presas. Não é de todo claro se o objetivo das sereias é alimentar-se do corpo dos navegantes, embora esta seja a explicação mais provável.

O mundo grego era obcecado por muitos tipos de feiura e maldade. 
É um mundo dominado pelo mal, no qual as criaturas, mesmo as belíssimas, realizam ações "feiamente" atrozes. Neste universo, vagam seres assustadores, odiosos por serem híbridos que violam as leis das formas naturais.

— Umberto Eco  

A maior diferença, porém, entre a imagem moderna da sereia e sua concepção original é a cauda de peixe. Originalmente, as sereias eram metade mulher, metade ave de rapina, à semelhança das harpias.
Foi apenas na Idade Média que as sereias passaram a ser representadas como mulheres-peixe, devido à junção de dois mitos distintos: o das sirenes e o das mermaids.

Como se pode deduzir, a palavra sereia provém do mesmo vocábulo que produziu o termo sirene (como em siren, em inglês, que pode significar "sereia" ou "sirene"). Mas outra entidade mitológica popularizou-se no período medieval: as donzelas do mar — seamaids (sea + maids), ou mermaids (mer + maids), junção de sea/mer (mar) e maid (moça).

A beleza feminina da sereia também é proveniente da tradição medieval, provavelmente de origem teutônica. Esta tentação visual é bastante conveniente, visto que, tanto nas iluminuras medievais quanto nas pinturas clássicas, sua capacidade de seduzir os marinheiros pode ser enfatizada pela tentação carnal.

Simbolicamente, esta sereia atraente aos olhos pode representar o temor masculino de arruinar-se devido à provocação sexual e à incapacidade de autocontrole. Não à toa, as sereias têm como presa os marinheiros, homens. E a configuração da mulher-peixe, fortuitamente, permite que a parte inferior de seu corpo fique submersa, o que reflete a cegueira momentânea do homem apaixonado/seduzido, devido a seu foco na tentação hipnótica.

Mas como esta associação não existia ainda na mitologia grega, já que as sereias da Antiguidade tinham uma aparência grotesca, sua simbologia é um tanto diferente. A tentação, neste caso, não era a sexual, mas a da beleza de forma geral. O temor parece mais relacionado à perda do autocontrole, ao enlouquecimento.

Assim é narrada uma das mais antigas aparições das sereias na literatura: a deusa Circe, em Odisseia, instrui o herói Odisseu (Ulisses) sobre como passar pelo habitat das sereias sem ser destruído pela tentação.

Este episódio da Odisseia indica-nos que o ninho das sereias, na tradição grega, não era no mar, mas em um prado — o que é esperado, já que estas criaturas são mulheres com corpo de ave. O que chama mais atenção, porém, é o uso da engenhosidade para satisfazer a curiosidade do herói.

Paulo Nunes 






Os povos do Mediterrâneo viam geralmente a alma sob a forma de um pássaro, o que faz que as Sereias e a Esfinge sejam “músicas", como todas as suas irmãs que cantam e "encantam" perigosamente. 

No canto XII, 184sqq. da Odisseia, Ulisses consegue escapar à sedução das Sereias, cuja voz irresistível "encantava" suas vítimas para devorá-las. Como sentiam o "desejo", mas não podiam realizá-lo, por serem peixes, frias, portanto, da cintura para baixo, bebiam o sangue dos que atraíam com seu canto.

Os artistas dos últimos séculos têm confundido as Tritónidas com as Sereias. 
Mitologicamente, a diferença é enorme: as Sereias são mulheres de corpo de ave, as Tritónidas mulheres de corpo de peixe.

Antes de Ulisses, conta-se que o navio Argos, na expedição em busca do Velo de Ouro, passou pela ilha das Sereias, que ficava no Mar Mediterrâneo. 
Orfeu, no entanto, tocou, com sua lira, uma melodia muito mais bela do que a música das criaturas e, por conseguinte, os Argonautas não foram atraídos para as rochas, com exceção de um deles, chamado Butes, que devido a sua beleza foi salvo depois das profundezas do mar por Afrodite.
Ao praticar uma arte mais bela, Orfeu simboliza uma forma de resistência à mediocridade.

Ulisses, ou Odisseu, era curioso, queria ouvir o canto das Sereias. 
Depois de voltar do Hades, foi alertado por Circe que elas seriam a primeira prova pela qual teria que passar para voltar à Ítaca, antes de enfrentar Cila e Caribde:

Encantam todos os que porventura passam por elas.
Quem inadvertidamente se entregar ao canto
delas nunca mais retornará ao lar, nunca mais cairá
nos braços da mulher, não verá os pequerruchos
nunca mais. Elas enfeitiçam os que passam,
acomodadas num prado. Em torno, montes de
cadáveres em decomposição, peles presas a ossos.
Evita as rochas. Tampa com cera os ouvidos
dos teus companheiros para não caírem na
armadilha sonora. Se, entretanto, quiseres o
o mel do concerto delas, ordena que te amarrem
de pés e mãos ereto no mastro. Que o nó seja
duplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las.

 — Odisseia, XII, 25-45


Ulisses tentava se livrar das cordas, mas seus companheiros, devidamente impedidos de ouvir o canto devido à cera nos ouvidos, foram firmes em não soltá-lo e apertavam mais ainda os nós. Bons amigos nos livram de músicas indesejadas, bons amigos nos alertam, nos livram do perigo. Não por acaso, a expressão “se deixar levar pelo canto da sereia” ganhou a conotação de se deixar ser arrastado para maus caminhos.

Machado de Assis já nos alertava sobre esse canto da sereia no seu “Conto de escola”:

O narrador é o menino Pilar, que assume estar longe de ser “um menino de virtudes”, pois cabula a aula e só vai ao colégio para não apanhar mais do pai. Depois de aceitar uma moeda de prata do colega Raimundo, para “uma troca de serviço”, que seria explicar “um ponto da lição de sintaxe” e ser descoberto devido a uma delação de outro colega, acaba apanhando, dessa vez do professor (lembrando que a história se passa no século XIX). No outro dia, Pilar mata a aula de novo, dessa vez seduzido por um batalhão de soldados marchando ao som de um tambor. Conclui a narrativa se explicando: “a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...”

Pilar foi seduzido por dois cantos das sereias: o do dinheiro fácil em troca de favores, como nossos políticos, e a música, que para os estudantes de hoje é o “tamborzão” do “pseudo funk carioca”, que destroça os cérebros assim como as criaturas mitológicas faziam com os inocentes marinheiros.



Franz Kafka, no começo do século XX, reescreve o mito. 
À maneira kafkiana, obviamente. 
Para Modesto Carone, “os mitos são objeto da meditação artística, em geral irônica, do criador de O processo”. 
Em “O silêncio das sereias”, Ulisses não só é amarrado ao mastro do barco, como também enche seu ouvido de cera. 
“Mas eis que então as sereias mostram ter uma arma ainda mais terrível do que o canto: a de seu silêncio”, diz o narrador do conto (aqui na tradução de Marcelo Backes, em Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias, Editora Civilização Brasileira). “Embora não tenha acontecido, talvez possa ser imaginado que alguém se salvou de seu canto, mas de seu silêncio com certeza não.”
Ulisses não ouve, as sereias não cantam. 
A inversão do mito nos coloca contra a parede. 

A literatura de Kafka sempre nos faz isso. 
Às vezes o leitor, como o Ulisses do conto, tenta ignorar o canto da sereia da Literatura, quer passar longe da arte nessa odisseia que é a vida, deseja o mais confortável. Faz ouvidos moucos, como se dizia antigamente. 

Os artistas, então, desistem de praticar sua arte (“...assim que Ulisses chegou, as formidáveis cantoras não cantaram, fosse porque acreditassem que esse inimigo pudesse ser vencido apenas com o silêncio, fosse porque a visão da felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em nada a não ser em cera e correntes – fizera com que elas se esquecessem de todo o seu canto”), se entristecem por causa da indiferença pela sua obra (“Ulisses, porém, para expressá-lo de modo simples, não ouviu o silêncio das sereias, achou que elas estivessem cantando e que ele apenas estava protegido de ouvi-las. 

Fugidiamente, viu primeiro os movimentos de seu pescoço, a respiração profunda, os olhos cheios de lágrimas, a boca semiaberta, mas achou que isso fazia parte das árias que se perdiam em torno dele sem ser ouvidas”) e tentam outras formas para atrair o público, apelando para a dança, por exemplo (“Elas, no entanto – mais belas do que nunca –, se esticaram e se contorceram, deixaram os cabelos terríveis balançar soltos ao vento e cravaram as unhas livremente no rochedo. Não queriam mais seduzir, mas apenas capturar o reflexo dos grandes olhos de Ulisses por tanto tempo quanto lhes fosse possível”). 

Ou então pode-se dizer que Ulisses é o crítico literário senhor da razão (“À sensação de tê-las vencido com suas próprias forças e à arrogância que tudo leva de arrasto resultante disso, nada há na terra que possa resistir”) e, apesar dele, o artista continua criando (“Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas, na época. Sendo como foi, no entanto, elas continuaram ali, apenas Ulisses lhes escapou.”) à procura de outro crítico que o reconheça.

Outros contos de Kafka tratam da dolorosa relação do artista com seu público, como “O artista da fome” e “Josefine, a cantora, ou O povo dos camundongos”. 



Cassionei Niches Petry 






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