domingo, 21 de novembro de 2021

Os Filhos da Meia-Noite












Os Filhos da Meia Noite, 
conta a história do personagem-narrador 
Saleem Sinai, que, 
nascido no exato momento em que a Índia 
se torna independente, 
tem o seu destino 
diretamente ligado à história do seu país.
A história da Índia moderna, 
a partir de sua independência em 
15 agosto de 1947, 
a guerra indo-paquistanesa de 1965 e 
os anos de ferro da primeira ministra 
Indira Ghandi de 1975 a 1977, 
são a base do romance de Salman Rushdie. 


À meia-noite de 15 de agosto de 1947, data em que a Índia oficializava a sua independência e se tornava, enfim, uma república, milhares de crianças nasceram. Não exatamente a essa hora, mas ao longo dos primeiros 60 minutos da Índia como um país independente, essas crianças vieram ao mundo e foram chamadas de “filhos da meia-noite”. O facto de nascerem junto com seu próprio país poderia, por si só, ser especial. Mas como quase tudo na Índia é envolto por magia e fantasia – ou assim nos faz pensar as suas lendas e histórias – elas vieram ao mundo com algo a mais. Com poderes que, mais tarde, seriam descobertos por outro filho da meia-noite, Shiva o bebé legítimo dos Sinai.

A trajetória de Saleem Sinai começa, para ser exato, na Caxemira durante a primavera de 1915 quando seu avô, o jovem e recém-diplomado dr. Aadam Aziz, bate com o nariz num montículo de terra endurecida pela neve durante as suas orações. Dono de um nariz expressivamente grande, acaba por ferir o nariz ao levar a testa ao chão para rezar; a partir de então, o rapaz decide não voltar a adorar deus nenhum. Aadam acaba de chegar da Alemanha, onde se formou em Medicina, e passa a ser discriminado por seus antigos amigos como se fosse ele próprio um estrangeiro.   

É uma bela passagem e um exemplo representativo da prosa lírica de Salman Rushdie: 

"Três gotas de sangue saltaram de sua narina esquerda, endureceram instantaneamente no ar gelado e caíram, diante de seus olhos, transformadas em rubis, sobre o tapete de oração. Jogando o corpo para trás, até ficar com a cabeça novamente ereta, ele percebeu que as lágrimas que lhe haviam surgido nos olhos também tinham se solidificado; e naquele momento, enquanto desdenhosamente afastava diamantes dos cílios, ele decidiu que nunca mais voltaria a beijar a terra por nenhum deus ou homem. Essa resolução, criou um buraco dentro dele, um vazio numa câmara vital interna, deixando-o vulnerável às mulheres e à história." 

O buraco que a fé deixou no interior de Aadam Aziz é preenchido posteriormente pelo amor à filha de um rico latifundiário de Caxemira. Ele é chamado para diagnosticar a doença misteriosa da jovem Naseem, com a condição de que o exame fosse realizado através de um lençol com um pequeno círculo furado no centro, para que a pureza da jovem pudesse ser preservada. E assim, através de repetidas consultas, ao longo de três anos, e também de "uma colagem desconjuntada das partes inspecionadas aos pedaços", diga-se de passagem, cada vez mais detalhadas, ambos acabam por se apaixonar e casar. 

Os recém-casados Aadam e Naseem mudam-se para a Índia, Bombaím, onde começam a formar a sua família. É importante ressaltar que o futuro avô do narrador Saleem demonstra ter um sentimento de vazio desde que abandonou a religião, o que o próprio personagem descreve como “um buraco de sete polegadas” dentro de si. Esse vazio e essa descrença são, futuramente, transmitidos aos filhos e netos do casal. 
Além das particularidades do avô, Saleem descreve a personalidade da avó, Naseem, como dominadora e impositiva, características estas que viriam a fazê-la merecer a alcunha de Reverenda Mãe. 

Esta é a origem da árvore genealógica que culminou, após duas gerações, no nascimento do protagonista, Saleem Sinai. A união do casal Aziz irá gerar cinco crianças, as filhas Alia, Muntaz e Esmeralda e dois meninos Hanif e Mustafá. A pequena e negra Muntaz, o patinho feio da família, acabará, no seu segundo casamento, por roubar o namorado da irmã Alia e casa-se com Ahmed Sinai, passando a chamar-se Amina Sinai. O casal terá dois filhos, sendo que o primeiro, o nosso herói, será trocado na maternidade de Bombaim pela enfermeira Mary Pereira que troca os bebés, fazendo o rico tornar-se pobre e o pobre tornar-se rico, igualando a “balança”. 
Posteriormente, a sua irmã, a Macaca de Cobre, vem a ser a famosa Jamila Cantora no Paquistão.

Saleem conta-nos a história do primeiro casamento de sua mãe, com um poeta incapaz de fazer rimas que se esconde no porão da casa dos Aziz, depois de presenciar o assassinato de Mian Abdullah (líder da Aliança Islâmica Livre). Mumtaz, a única dos filhos do casal que nasce com a pele escura, é abandonada pelo marido, Nadir Khan, após dois anos de casamento sem consumação. Meses depois ela casa-se novamente com aquele que deveria desposar a sua irmã mais velha, Alia. Ahmed Sinai rebatiza a sua então esposa para que, com o novo nome, ela também tenha uma vida nova; chama-a Amina Sinai. 

O casal Sinai muda-se para Bombaim após um incêndio criminoso que destrói os negócios de Ahmed em Agra. Amina está grávida de seu primeiro filho, Saleem. A casa onde o casal passa a viver era propriedade de um inglês chamado William Methwold, verdadeiro pai de Saleem Sinai, que era amante da Vanita, mulher de Wee Willie Winkie, artista que animava as tardes de cocktail na mansão do inglês Methwold. 

Chegado o momento da tão esperada independência da Índia, chega também a hora do nascimento do nosso narrador e protagonista. Exatamente à meia noite do dia 15 de agosto de 1947, vem ao mundo Saleem Sinai, junto com seu alter-ego, Shiva. Vanita morre depois do parto.
Aconteceu que, devido à loucura de uma enfermeira da maternidade, Mary Pereira, duas crianças foram trocadas; o filho do casal rico seria criado pela família pobre, e vice-versa. 

A Saleem, filho bastardo de Vanita com o inglês Methwold, foi atribuído o título de Filho da Meia Noite pelo primeiro ministro, Jawaharlal Nehru, e o bebé teve a sua fotografia publicada no jornal;  
Shiva, o verdadeiro filho do casal Sinai, foi criado por um músico de rua, que mais tarde se tornaria mendigo sem saber da traição de Vanita, e Shiva sem desconfiar da verdade sobre as suas origens. 

Salim na verdade não é um filho da família Sinai. 
Ao nascer, uma enfermeira revolucionária e amargurada trocou na maternidade dois bebés. 
Saleem, que nasceu pobre e hindu, foi criado na rica família muçulmana. 
Shiva, que nasceu rico e muçulmano, cresceu na casa de um pobre cantor hindu. 
Duas personalidades contraditórias, que tiveram seus destinos alterados desde a infância.

Apesar da família trocada, Salim cresceu como se fosse um legítimo Sinai. 
O nariz protuberante era creditado aos genes do seu avô, que protagoniza o relato de Sinai no início do livro, quando conta toda a história que envolveu o seu casamento com a “Reverenda Mãe”. E entre casamentos e separações, chega enfim à sua própria história, repleta de desastres que desencadearam os seus poderes de ler pensamentos e, mais tarde, conectar os filhos da meia-noite. Crianças que podiam viajar no tempo, curar enfermidades, transportar-se através das superfícies refletoras ou, trocar de sexo. Crianças importantes na vida de Saleem, mas com as quais nunca realmente se encontrou.

Saleem Sinai descobre, aos dez anos, que tem o poder da telepatia, assim como, cada uma das 1001 crianças nascidas na Índia, neste mesmo dia, que também possuem alguma aptidão extraordinária. 
Saleem conseguirá, por algum tempo, conectar-se telepaticamente com todos os outros filhos da meia-noite. Uma dessas crianças, o terrível Shiva, o bebé trocado, virá reinvindicar o seu lugar roubado involuntariamente por Salim Sinai. 
Outras crianças nasceram na mesma hora mágica, e todas elas tinham poderes especiais.
O Dom da meia noite não era igual para todos; quanto mais próximo da hora exata a criança tivesse nascido, mais fortes seriam seus poderes. 
A Saleem foi concedido o poder de olhar dentro do coração das pessoas, e a Shiva, o Dom da Guerra. 
É formada então a Aliança dos Filhos da Meia Noite, que reúne as crianças mágicas dentro da cabeça de Saleem, graças à sua telepatia. 

Uns anos depois, a família de Saleem, sem saber dos poderes do rapaz, leva-o ao hospital para tratar uma crise de sinusite. O tratamento é rápido mas deixa sequelas irreversíveis; devido à drenagem feita ao seu nariz, Saleem perde os seus poderes telepáticos. No lugar da telepatia, que acabara de se perder para sempre, ele descobre o poder de cheirar. Pela primeira vez na vida, Saleem sente os odores, mas de forma muito mais poderosa que as pessoas normais, podendo reconhecer inclusive o cheiro dos sentimentos, como raiva, inveja, ciúme.              




Saleem, no início do livro, tem agora 31 anos, e enquanto cria fórmulas de condimentos em conserva e os deposita em potes numerados, cada um também com um título – como capítulos de um livro – conta a sua história a uma mulher, Padma, com o nome da Deusa de Lótus, a quem ele chama carinhosamente de sua "deusa da merda". 

A morte persegue Saleem de perto, com a mesma doença que matou o seu avô, Aadam Aziz, uma espécie de lepra nos ossos, e vê-se obrigado a escrever a sua história para que o filho não corra o risco de crescer sem saber quem foi o seu pai e o que lhe aconteceu.

Padma ouve atentamente a narrativa de Saleem, uma funcionária da fábrica de conservas onde Saleem trabalha, semi-analfabeta, que se apaixona por Saleem e sonha com um possível casamento, e sofre, emociona-se com as desventuras da família Sinai/Aziz. 
Saleem relata a Padma, toda a sua trajetória, a de sua família e a de seu país:

Saleem cresceu e descreveu suas aventuras desde a escola até sua adolescência, a infância ao lado da irmã, apelidada de Macaca de Cobre, e dos vizinhos da propriedade de Methwold. 
Ao ser revelado o segredo da Ayah Mary Pereira, a que tinha trocado os bebés na maternidade, Saleem descobre-se apaixonado pela irmã, a então cantora Jamila. Neste ponto da história, a família Sinai já se tinha mudado para o Paquistão, em busca de uma vida nova, deixando para trás os problemas e as decepções.
O Paquistão é atacado por uma chuva de bombas, e três delas atingem seus familiares: a primeira atinge a casa recém-construída de seus pais, a segunda extermina sua avó, Naseem, e sua tia Pia, e a última mata seus outros parentes, os parentes ricos e importantes, a tia Emerald e seu marido, o general Zulfikar, seu primo Zafar com a esposa Kif, e sua tia Alia. Saleem e Jamila são os únicos sobreviventes
Saleem perde a memória e é enviado para o exército paquistanês para lutar na guerra contra a Índia. Com o seu nariz extremamente grande e poderoso, olfativamente falando, Saleem ocupa na tropa o lugar de cão farejador. Embrenha-se na floresta dos Sundarbans para fugir da guerra, e leva três companheiros com ele sem que eles saibam que estavam a fugir. Os três adolescentes que o seguiam são mortos em combate quando conseguem sair da selva, oito meses depois de lá terem entrado.
Sendo o único sobrevivente, regressa de novo à Índia, com a ajuda da magia de Parvati, também ela filha da meia-noite.
Passa a viver em Nova Deli, no gueto dos mágicos, junto com a feiticeira Parvati e Singh da Fotografia, numa barraca de papelão e com a única coisa que restou do seu passado, uma escarradeira de prata com incrustações em Lápis Lazuli.
Parvati apaixona-se por Saleem, que é incapaz de amá-la devido à lembrança da irmã, a cantora Jamila.
Saleem diz que não pode ter filhos como desculpa para fugir do casamento, mas não contava que Parvati usaria a sua magia para atrair até ela o comandante Shiva, alter-ego e inimigo pessoal de Saleem (que agora era militar),para engravidar e dar um filho a Saleem, ficando grávida pouco tempo depois, e como previra fora abandonada por Shiva. Vendo a desgraça estampada no rosto da amiga, Saleem aceita casar-se com ela e assumir o filho do seu rival como se fosse seu.
Nasce o filho de Saleem, Aadam Sinai, que assim como o pai, tem seu destino ligado ao de seu país.
Durante o estado de Emergência, a primeira-ministra, Indira Gandhi, aprisionou vários de seus inimigos políticos, incluindo os integrantes da Aliança dos Filhos da Meia Noite. A Viúva, como é chamada por Saleem, consegue aprisionar todos os ex-companheiros do rapaz com a ajuda de Shiva, que acabava por se tornar um importante aliado do Partido. Os prisioneiros foram torturados e, no final, esterilizados, para que não pudessem se reproduzir. O que nenhum deles esperava é que o efeito da cirurgia acabou por ter o mesmo efeito que teve o tratamento para sinusite de Saleem, fez desaparecer por completo seus poderes mágicos.
Durante as torturas no cativeiro, antes de ser libertado, Saleem foi informado que Parvati tinha morrido. Decidiu então sair em busca de Singh da Fotografia e de seu filho, Aadam. 
Encontra-os, e segue com Singh e Aadam para Bombaím, para um concurso de Encantadores de Serpentes. Lá, servem-lhe um Chutney verde que ele reconheceu como sabor da infância. Descobre que foi vendido pela fábrica de Conservas Bragança. Vai lá e encontra a Mary Pereira, a enfermeira que o trocou na maternidade e que foi sua Ayah na infância, conhecida então como Mrs. Bragança, dona de uma grande fábrica de conservas. Mary ajuda o seu protegido a criar o filho Aadam, e Saleem passa a assumir as funções de supervisor da fábrica de conservas. 


O romance é encerrado por Rushdie com uma palavra que resume perfeitamente toda a magia que circunda a narrativa: ABRACADABRA. Palavra esta que é dita pelo pequeno Aadam, que até então não sabia (ou recusava-se a) falar. Ao contrário do que Saleem imaginava, esta palavra não desencadeou o fim dos tempos, mas sim o começo de uma nova história, a história de seu filho, que pode ou não ser tão mágica quanto a sua.


Os Filhos Da Meia-Noite é um livro maravilhoso, enraizado na realidade, mas que se permite passear nas histórias misteriosas e fantásticas, contribuindo ainda mais para a ideia de que a Índia é um país mágico e complexo, com mil poderes escondidos e, mil faces que convivem entre si. 

Salman Rushdie, com este livro, ganhou o Man Booker Prize de 1985, e em 1993 o Booker of Bookers Prize. 

O romance Os Filhos da Meia-Noite do escritor Salman Rushdie foi eleito por leitores de todo o mundo como o Melhor Prémio Booker de sempre. 

O prémio The Best of the Booker, foi criado para celebrar o 40.º aniversário do The Booker Prize. 
7800 pessoas votaram via Internet ou através de SMS nos seis títulos que foram escolhidos por um júri. A shortlist deste The Best of the Booker era composta por seis romances: 
  1. The Ghost Road, de Pat Barker (1995), 
  2. Oscar e Lucinda, de Peter Carey (1988), 
  3. Desgraça, de JM Coetzee (1999), 
  4. The Seige of Krishnapur, de JG Farrell (1973), 
  5. O Conservador, de Nadine Gordimer (1974) e 
  6. Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie (1981). 

Todas estas obras foram premiadas com o Booker Prize no ano da sua publicação. 
Foram escolhidas numa lista de 41 obras premiadas quer com o Booker Prize quer com Man Booker Prize. 
Trinta e seis por cento do total dos votos no concurso foram para Os Filhos da Meia-Noite. 


Na verdade, 
o grande personagem da obra 
não é uma pessoa ou duas, mas sim 
uma nação: a Índia. 
E, de certa forma, também, 
“seus filhotes”, 
o Paquistão 
e, mais tarde, 
Bangladesh. 






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