terça-feira, 10 de agosto de 2021

Um anjo atirou-se do céu e morreu

 





a notícia abriu ontem os telejornais :
' um anjo atirou-se do céu e morreu, estão ainda por esclarecer os motivos '
a seguir mostraram a praia onde o anjo jazia. 
pouco mais era do que um novelo de luz a apagar-se na areia, as asas desfeitas pelo embate, a mancha incorpórea de uma qualquer substância divina irrompendo da túnica branca, mas sem que uma única gota de sangue a manchasse ou desfigurasse. 

à sua volta, a multidão conspirava. 
  • porquê estatelar-se no meio de uma praia mortal, se ao seu dispor tinha as extensões imortais do azul? 
  • por que razão escolher um destino perene e humano, se ao seu alcance estavam os cumes do céu, as benesses de deus, os esplendores perpétuos da luz? 

não é todos os dias que se assiste à queda de um anjo e é normal que a multidão se questione se o paraíso terá, afinal, precipícios, abismos, que a câmara ofereça o banquete da morte de um anjo em directo, que a repórter se esmere por recolher impressões, que a notícia dê azo a comentários em estúdio sobre a justiça divina e a sua eficácia, que ninguém compreenda por que razão uma criatura, por natureza mansa e benigna, se atrofia desta forma ridícula, quase perversa, na orla costeira de um mapa terrestre.
espero que todos se afastem, que a multidão se dissipe, que as câmaras se apaguem, que a noite derrame o seu manto sobre ele e o cubra de estrelas. 

então, devagar, aproximo-me. é ele, não há dúvida, o meu anjo da guarda, saberia reconhecê-lo entre mil, mesmo sem nunca o ter visto, o anjo que há anos mantenho num pedestal de ficção, 
ou de fé, 
hoje já não tenho a certeza de nada, 
e ao qual pedi vezes sem conta uma prova da sua presença ao meu lado. 

com jeito, endireito-lhe as asas, sacudo-lhe a areia do manto, pego-lhe ao colo e levo-o para casa. 
afinal, foi do meu coração, e não dos abismos do céu, foi do meu coração que se atirou ontem à noite, quando 
fora de mim
lhe disse que tinha deixado de acreditar em anjos da guarda.

já era tarde quando chegámos a casa, mas nenhum dos dois tinha sono.
abri-lhe a espreguiçadeira no meio do terraço e estendi-lhe uma manta, para o defender do ar fresco da noite, que teimava em insinuar-se nas cartilagens macias.
que farsa!
sorriu-me o anjo, já instalado no seu trono de verga, por debaixo das bunganvílias que tínhamos posto os dois a crescer em vasos de barro, fazia já algum tempo, e a seguir pediu-me um copo de vinho.
fui buscar a garrafa e brindámos
à morte do anjo
disse ele.

as suas asas guardavam ainda a salmoura das ondas, à tona das penas a areia brilhava, um fino vapor cobria-lhe os olhos, o azul mareava-lhe as pálpebras, reparei que pendurara uma concha ao pescoço, presa ao fio dos meus dias, e que nada na sua brancura fora tomado pelas sombras terrestres.
pediu-me para ler o meu texto e mostrei-lho.
que pena não ser capaz de escrever
disse o meu anjo da guarda.
enchi-lhe o copo outra vez e de novo brindámos à farsa
tchim tchim!

a seguir, perguntei-lhe
porquê?
porque queria sentir, como tu sentes, a humanidade a escorregar-me dos dedos e perceber o porquê das paisagens e das metáforas que cria
disse ele.

fez-se um breve silêncio entre nós, bebemos os dois mais um pouco de vinho, a seguir perguntou-me
tens a noção da quantidade de equívocos que as palavras convocam?
assenti, com um ligeiro aceno das mãos.
deixa-me lá ler isso outra vez...
abri-lhe a janela e de novo o deixei à mercê da praia mortal, da multidão e das câmaras, do suor das palavras, da repórter excitada com a notícia da morte de um anjo em directo, da orla humana do mundo, do ónus da prova.
imagina que eu tinha mesmo morrido? o que farias sem mim?
perguntou-me, com alguma ironia.
foi a minha vez de sorrir.
nenhuma das minhas palavras seria capaz de te matar
respondi.

a seguir, pousei o meu copo de vinho no chão, abri mais ainda a janela, a paisagem e o coração, empurrei-lhe a espreguiçadeira para mais perto das estrelas e deitei-me ao seu lado.
quando estávamos quase a dormir, embalados pelo contágio do céu, perguntou-me
diz a verdade, alguma vez duvidaste da minha existência?
por debaixo da manta, estendi-lhe os meus dedos. benignamente, o meu anjo da guarda amparou-os na luz da sua presença, enquanto eu lhe sussurrava ao ouvido
não, mas todos os dias duvido que seja capaz de traduzir o que aprendo contigo...




Inês de Barros Baptista




Sem comentários:

Enviar um comentário