sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O perigo dos espelhos









O perigo dos espelhos é exporem-se os ossos. 
A luz reflui através das omoplatas, distribui-se 
pelos flancos, concentra-se nos pés. 
Entramos na obscuridade com o fascínio 
de um dom próprio. 
Não possuímos um deus, mas duas mãos lisas 
e uma boca de vidro - e uma voz 
que vai morrer. 

Fazer estalar a amnésia, pouco a pouco, 
ou de um só golpe. Ninguém acorda 
senão numa sala de pânico. 
Levas o dedo à ferida: uma fechadura. 
E, rodando o dedo, há por baixo 
uma tulipa aberta, 
decifrada. 
Podias amar concretamente esta dolorosa, 
solitária investigação dos interiores, 
as malhas soltas da luz. 

Porque o mundo é um contínuo acto de costura. 
Rompemos com o mistério apenas para 
que se teça um mais alto e apaixonante enigma. 
Tudo o que nos fulmina, cresce devagar. 
Entende-se que seja assim, trôpego, o existir? 
Não, não temos uma súbita iluminação, 
mas recantos e recantos, penumbras 
- e uma voz exausta que vai morrer


Vasco Gato
in, Contra Mim Falo





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