segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A importância de adoecer







Psicanálise e Psicossomática

São conhecidos e freqüentemente lembrados dois exemplos de organizações de grande resistência ao adoecimento físico: o autismo, que parece incompatível com as doenças comuns da infância, de modo que o surgimento delas em crianças autistas costuma estar associado à melhora de seu quadro; e a psicose, que parece servir de eficaz proteção imunológica, especialmente quando em estado de descompensação. O que poderia haver nessas organizações que favorecesse tal estado de “saúde física”? Ou ainda: as diversas dinâmicas psíquicas seriam diferentemente vulneráveis à disfunção fisiológica? Estas perguntas seriam cabíveis em uma perspectiva psicanalítica?

Há um desconforto na psicanálise com investigações que incluam processos do corpo biológico. Tendo se diferenciado da medicina, e constituído seu campo pela delimitação de um psíquico irredutível ao somático, como poderia avançar para além de suas fronteiras? Caso o faça, não comete um abuso simétrico e oposto àquele que atribuímos às neurociências, em sua pretensão de abarcar o psíquico? De qualquer modo, as incursões psicanalíticas pelo campo da chamada psicossomática são um fato. E antes que se possa colocar os aventureiros em qualquer tribunal, propomos recuperar, embora de modo muito resumido, algumas das principais propostas feitas a esse respeito por psicanalistas.

Freud, ao que tudo indica, não se interessou em estender ele mesmo a psicanálise ao campo das desorganizações somáticas. A hipótese da conversão indicava que conflitos psíquicos podiam produzir sintomas corporais, mas neste caso a materialidade do distúrbio não exigia qualquer dano estrutural. Pelo lado das neuroses atuais, havia sem dúvida uma perturbação neurovegetativa, mas então o que faltava eram os complexos psicológicos; nada se encontrava nesse quadro, malgrado sua determinação sexual, que justificasse situá-los como psiconeuroses. Então, pela via freudiana, teríamos a tendência de não misturar os dados: realidade psíquica, “realidade somática”, eis dois crivos indicadores de campos clínico-teóricos distintos.

Verdade que Freud considerou a possibilidade de distúrbios sexuais interferirem nas funções fisiológicas: se várias destas funções eram capazes de produzir excitação sexual, então, por serem vias de mão dupla, perturbações na sexualidade podiam levar a alterações na alimentação, na excreção, na visão etc. Freud estende essa idéia, argumentando que os órgãos do corpo são obrigados a servir dois senhores (na época, as pulsões do eu e as pulsões sexuais), o que freqüentemente os leva a desconcertos não somente ligados à ação do recalcamento pelo seu uso erótico; mesmo sem essa defesa, pela intensificação do uso, mudanças na excitabilidade e na inervação poderiam prejudicar seu funcionamento. Em todo caso, seriam ocorrências ainda ligadas à dimensão psico-sexual, e cuja solução também estaria nela.

Há uma diferença entre falar do lastro corporal do psíquico, e suas relações, e pensar uma psicossomática. De fato, os primeiros psicanalistas que apontaram o leme para a terra das doenças físicas o fizeram sem usar essa noção, que sugere um campo específico de investigações. Pareciam somente falar de mais um tipo de sintomatologia; sem ocupar-se em demasiado com as dificuldades epistemológicas, pretendiam apenas fazer psicanálise.
Refiro-me a Walter Georg Groddeck e Sandor Ferenczi.

Groddeck (1866-1934) teria conhecido a ação dos símbolos e do inconsciente por via de seu trabalho em clínica médica. Soube da existência da psicanálise depois, por volta de 1910, mas chegou a escrever tomando posição contrária a ela em 1912, atitude que posteriormente atribuiu à inveja: queria ter sido ele o primeiro a divulgar aquelas descobertas que estava fazendo. Em 1917 iniciou sua correspondência com Freud, com cuja aprovação publicou, nesse mesmo ano, Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise, no periódico Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse.

É um texto ousado e instigante. Nele já aparece o conceito de Isso, “por quem somos vividos”, ao qual atribui poder de ação sobre todo o organismo. Groddeck estende a teoria do processo conversivo a todo episódio de adoecimento, raciocinando de modo finalista: o motivo do sintoma, inconsciente, elucida-se pelas conseqüências que ele provoca, senão práticas, ao menos simbólicas. Assim, dores de cabeça aplacam os pensamentos; magreza e fraqueza denunciam a nostalgia da condição de recém-nascido; uma barriga, o desejo de gravidez. Groddeck cita vários de seus próprios sintomas que fez desaparecer – inclusive gota – somente com a auto-análise. Defende a doença como uma das expressões do Isso, tal como seriam o formato do nariz, o jeito de andar, enfim, como uma manifestação de vida, e não como um mal a ser combatido a qualquer preço.
A vida e a morte estariam sempre nas mãos do Isso.

A doença não provém do exterior, o próprio ser humano a produz; o homem só se serve do mundo exterior como instrumento para ficar doente, escolhendo em seu inesgotável arsenal de acessórios ora a espiroqueta da sífilis, ora uma casca de banana, depois uma bala de fuzil ou um resfriado (Groddeck,1923, p. 219).



Olhando em perspectiva

O percurso que realizamos pelas idéias da psicossomática mostrou diversas tentativas de abordar o adoecimento físico no campo psicanalítico, ora considerando-o como tendo o mesmo estatuto do sintoma neurótico, ora supondo-o como par antitético da elaboração psíquica, ou mesmo como um fenômeno intermediário entre o biológico e o representacional. A questão do sentido do sintoma esteve sempre no horizonte das discussões, mas em diferentes posições – segundo uns, a doença teria um sentido a ser interpretado; segundo outros não teria sentido algum; conforme terceiros, a doença apresentaria uma demanda de sentido, um sentido a ser construído a posteriori. No que se refere à implicação do “outro” no adoecimento, também as teorias diferem, algumas explicando a somatização em uma perspectiva intra-subjetiva, outras defendendo a necessidade de considerá-la no contexto da intersubjetividade. Uma primeira constatação, portanto, poderia ser pelo simples desacordo das idéias nessa área.

Entretanto, colocando-se estas diferenças em perspectiva no tempo, detecta-se o que parece ser um certo movimento (dialético): a somatização transita de um modelo mais estritamente conversivo para a sua negação, e em seguida para um terceiro estado em que se apresenta como um horizonte de significações ainda irrealizado. Também do ponto de vista da relação eu-outro, registra-se uma tendência semelhante – de um sintoma produzido pelos conflitos neuróticos do Eu, passa-se para uma reação da desorganização do Eu, e por fim para a expressão de distúrbios pré-egóicos, impasses das relações primitivas.

É como se, tendo-se iniciado a discussão em psicossomática com a metapsicologia da primeira tópica freudiana, tivesse havido um reconhecimento de processos cada vez mais primitivos, fronteiriços do psique-soma. Mas trata-se de uma fronteira nada estreita, em que cada vez mais se descobrem traços elementares de mecanismos complexos (neuróticos, psicóticos, perversos). Donde o reconhecimento de que ali, naqueles fenômenos psicossomáticos, deveríamos nos deparar com as ausências do psiquismo já constituído, mas também com todas as suas pré-condições.
A somatização não seria, portanto, nem propriamente a neurose do corpo, nem o retorno regressivo ao orgânico, mas a reativação de processos elementares, aquém da consciência e talvez mesmo do inconsciente, mas direcionados ao encontro com o outro e à significação. Eis o que parece ser a tendência das teorizações em psicossomática psicanalítica, e o que explicaria o título deste artigo.


Sidnei José Casetto





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