quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A inútil poesia


Memorial do Holocausto, Berlim




Eu não vivo numa bolha de ar em Hartford.
Como posso ser fiel aos fiéis poemas
de Stevens
sem trair esta cilada?

Milosz sabe que a história é tudo o que temos
e que as traições maiores
são cometidas contra a história,
mas também em nome dela.

Como podemos nós
recuperar o sopro
que exaspera domínios no escuro,
a inumana beleza de um pavão
que abre a sua cauda
na noite iluminada,
e dizer depois
na rasa voz de quem abandonou
a inflexão retórica da sua voz,
Varsóvia, Treblinka, Celan, aldeias
cujos nomes esquecemos –
e é sintomático que os tenhamos esquecido –
onde lâminas aceradas esquartejaram
a eternidade de um rosto,
lugares – porque em cada nome
há um lugar – onde outros nomes se perfilam
num vórtice de tempos que se abrem sobre tempos
e gritos que se abrem sobre gritos,
e pétalas se expõem ao mortal apuro de se ter
sobre ombros a herança da qual
não há despedida, somente um cobarde desvio,
um conluio de silêncio e sangue?

Como esquecer? Como não esquecer?
Stevens, Milosz: uma corda de água
dança entre duas margens.
A corda é invisível
e eu procuro-a
sem método.
Aquele que me lê
deverá acreditar:

Deverá acreditar
que eu vivo
perscrutando as águas
mas dentro delas.




LUÍS QUINTAIS
in, Duelo






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