quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O Medo


Stephen Clough





Na cama, Kantu pôs-se a pensar na existência dura e solitária de Mama Maru, que, assim à primeira vista, parecia não temer a solidão
Pensou também em si mesma, no medo que se apoderava dela de todas as vezes que tinha de enfrentar situações especiais. O medo que a acompanhara desde pequena: medo de perguntar, medo de saber, de olhar na cara das pessoas, medo de errar. 
Sempre o maldito medo. 
Mas já começava a controlá-lo, a contrariá-lo.

Condori certo dia explicou-lhe:
- O medo é uma forma de energia. É como o amor, como o ódio, como a ira: é simplesmente energia orientada numa determinada direcção. Desafia o medo e modificarás a sua direcção.
Até nos sonhos a mulher deve permanecer vigilante, atenta, deve enfrentar os seus medos. O sonho é uma actividade sagrada, a oportunidade que temos de entrar em contacto com o mundo espiritual, para recebermos conselho, para sermos guiados.

Os nossos antepassados eram grandes sonhadores. 
Através dos sonhos, transformavam a realidade em vida, numa vida verdadeira que não esta. 
Antes de mais, é necessário seguir a visão, e a visão apenas surge nos sonhos; sonha-se sempre, mesmo quando estamos acordados. O sonhador, por força das coisas, é um criador e, se é capaz de criar, também deve ser capaz de curar, de dar saúde.
A mulher sonha muito mais do que o homem; é uma das suas características, e é precisamente através dos sonhos que a mulher entra em contacto com o infinito, com o além. O sonho guia, ensina-a como deve comportar-se durante a vigília, ensina a realizar determinadas acções. No sonho, as fantasias e os ideais da mulher tornam-se reais, precisamente porque é através do sonho que ela pode aceder a um espaço mais vasto no qual adquire maior sabedoria.
Para sonhar bem, deve reforçar a própria capacidade de recordar os sonhos e de os modificar enquanto dorme.

As pessoas que vivem na cidade não sonham, por causa do stress a que estão submetidas e se, por acaso sonham, não se lembram do que sonham e, porventura se recordam, não sabem o que fazer com o sonho. Durante o sonho, até as situações mais difíceis se tornam fáceis. 
O sonho é o meio através do qual uma pessoa pode entrar em contacto consigo mesma. - disse-lhe Condori.

(...)

- Avó, não tens medo de viver aqui sozinha?
- Medo de quê?
- Da escuridão, dos animais selvagens, dos ladrões, dos delinquentes, dos homens.
- A escuridão não é uma inimiga, mas sim uma aliada. Aqui não há animais selvagens perigosos. E no que respeita a ladrões por vezes aparecem alguns, mas sei como mantê-los à distância; foi o que sempre fiz desde a juventude.
- Como conseguiste vencer o medo?
- Durante muito tempo fui escrava do medo, mas libertei-me dele por completo. 
O medo é uma armadilha que amarra as mulheres, impedindo-as de se exprimirem livremente. Tive de aprender à minha custa, de um modo brutal e após uma experiência bastante dolorosa, porque quem consegue derrotar o medo torna-se senhora da sua própria vida.
- Certamente, quando eras nova, deves ter sido assediada por muitos homens. Como fazias para te defenderes?
- Demonstrando-lhes que não era uma mulher qualquer, mas uma Verdadeira Mulher.
- Avó, dizes que consegues mantê-los à distância e que é coisa que fazes desde os teus verdes anos. Contudo, por algum lado deves ter começado a controlar o teu medo em relação aos homens e às pessoas?
- Como é natural, encontrei ao longo do caminho homens violentos que queriam possuir-me à força; no entanto, nunca o conseguiram, pelo simples facto de que eu não queria. Se não tivesse oposto toda a minha vontade, teriam facilmente conseguido. Mas eu entregava-me a um homem só por amor, nunca por temor.
Quando tinha dezasseis anos, um homem violentou-me na casa onde eu era empregada doméstica.
(...)Tentei opor resistência mas ele era muito mais forte do que eu, e conseguiu entrar dentro de mim pela força. (...) Com o passar dos meses descobri que estava grávida. Dei à luz um rapaz. Tiraram-me o meu filho e puseram-me fora de casa. (...) Uma vendedora de fruta socorreu-me. Vivi com aquela vendedora de fruta até um dia conhecer uma senhora de idade que me convidou a ir viver com ela e eu aceitei. Contei-lhe a minha história e a mulher foi exigir que me devolvessem o meu filho. (...) Mas, nunca consegui ter o meu filho comigo. Essa senhora acabou por morrer e entretanto, fiz-me uma mulher. Mas, mais uma vez fui levada ao engano pelo pai do meu filho e violentou-me de novo contra minha vontade. Ameaçou-me que eu seria dele até à morte, e que se eu fugisse ele me encontraria. 
Ao ouvir estas ameaças fiquei cheia de medo, contei à minha patroa e ela levou-me a uma senhora, Jacinta Qoyllur, uma curandeira que escutou atentamente a minha história. A velha entregou-me um saco pequeno e disse-me para o esconder na roupa que tivesse vestida e para trazê-lo sempre comigo. Disse-me que aquele homem, fizesse o que fizesse, nunca mais teria poder sobre mim. Disse-me para me deixar levar, para eu não resistir nem recorrer à força, para não lhe resistir e nada de mal me aconteceria. Quando o pai do meu filho tentou violar-me novamente, eu não opus resistência e deixei-me levar, mas ele não conseguiu ter erecção e por isso não conseguiu penetrar-me. Sentiu-se impotente humilhado mas, como eu não opus resistência, não me bateu e mandou-me embora. 
Depois disso, tentou mais vezes mas, como nunca conseguia ter erecção, nunca mais me procurou. (...) Voltei mais tarde à Jacinta para lhe contar o que acontecera e pedi-lhe ajuda para reaver o meu filho. Ela disse que se eu quisesse poderia tornar-me numa curandeira como ela e poderia reaver o meu filho, e foi assim que a Jacinta me começou a instruir. Durante a instrução a Jacinta sujeitou-me a vários rituais para eu enfrentar o meu medo, e dizia-me: " Luta com todas as tuas forças, enfrenta o medo e procura uma solução". Ao ouvir estas palavras, algo dentro de mim se moveu e começou a impelir-me para o exterior. Não sei de onde vinha toda aquela energia que começava a dominar-me, mas lutei com todas as minhas forças; sentia-me a esbracejar no meio do oceano. Depois, comecei a nadar, de uma forma consciente, em direcção a um ponto luminoso. Deixei de ter medo, percebes? Comecei a flutuar num oceano de paz e tranquilidade. 
Senti-me forte, poderosa, segura, e comecei a ter consciência de que era capaz!
Depois a Jacinta disse-me:
"Tem calma, estou aqui para te proteger. Neste momento estás a encontrar-te a ti mesma, para lá das recordações, para lá do mundo material. Chegaste ao centro de ti mesma e isso dar-te-á força para sempre. Nunca mais terás medo do mundo exterior, porque, a partir deste momento, sabes que o mundo interior é extremamente poderoso. A partir de hoje poderás avançar até ao centro de ti mesma e aí conhecer cada vez melhor a tua alma e entrar em contacto com o espírito de luz que vive dentro de ti. E eu ajudar-te-ei quando estiveres pronta.

Vou revelar-te dois segredos:
Cada pessoa tem a sua estrada, a sua meta, o seu objectivo. 
Assim que identificares o teu caminho, deverás dedicar-te a servir os outros, porque só quando vives para os outros é que vives para ti mesma. 
Entre o teu caminho e o serviço que prestas aos outros tem de haver equilíbrio, caso contrário corres o risco de te transformares num ser mergulhado no caos, ou acabarás escrava de alguém. 
Eu ajudo-te a manteres o teu equilíbrio e a não deitares tudo a perder. 
Terás de ser tu própria , sempre e em todas as circunstâncias; aceita o que és, e depois começa a caminhar. 

O segundo segredo consiste em reconhecer que todas as pessoas têm medo:
todas, absolutamente todas, compreendes? Nenhuma pessoa é alheia a este sentimento, porque o medo faz parte da natureza humana. Mas tu tens de o enfrentar e dominar, porque só assim conseguirás superá-lo e utilizá-lo segundo os teus desejos. 

Lembra-te: se te deixares subjugar pelo medo, estás perdida, vencida, irremediavelmente derrotada. Se, pelo contrário, o enfrentares, se decidires vencê-lo, corres perigo, é verdade, mas demonstras a enorme força que possuis. Sabes que podes vencer ou perder, não há outra alternativa. Quando uma pessoa enfrenta o próprio medo, do centro do seu ser liberta-se uma energia poderosa que a transforma."
E depois adormeci.
E foi assim que começou a minha aprendizagem como curandeira.
(...)

Kantu, tomava consciência de que se encontrava sob orientação dos curandeiros andinos para aprender a controlar a própria força interior, da qual tinha plena consciência. 
Tinha aprendido a conhecer o próprio corpo, a compreendê-lo, a conhecer as suas capacidades e potencialidades. Até há pouco tempo, o corpo, para ela, era apenas a parte material, a parte física do seu eu; agora, pelo contrário, transformara-se num instrumento maravilhoso capaz de lhe transmitir toda uma série de informações: sentimentos, desejos, sensações, emoções, pensamentos, sonhos; um instrumento capaz de resolver várias situações no seu dia-a-dia. Podia dar-lhe prazer, aquele prazer que tantas vezes lhe fora negado e que agora experimentava com todos os poros da sua pele. Uma alegria intensa que, agora, adorava sentir, um consolo que lhe dava uma grande satisfação e que não tinha nada a ver com aquela sensação de pecado que, antes, sentia de todas as vezes que tocava em determinadas partes do seu corpo. 
Agora podia tocar-se livremente, sem remorsos nem culpa.
(...)

Mama Maru disse a Kantu:
- Muitas vezes, a cidade deforma os pensamentos, e a mulher acaba por se tornar artificial, quase masculina. A cidade oferece comodidade, mas também te enche de coisas que não servem para nada, coisas que enganam e que acabam por mudar a tua verdadeira natureza.
Lembra-te que Saber é Poder!
Agora entrarás num círculo em que aprenderás os segredos das Mulheres Serpente.
Perceberás que aquilo que até agora te foi ensinado não é a vida autêntica; a verdadeira vida é outra. Aqui aprenderás a ser Mulher!
Também deves ter presente que o Saber não serve de nada se o conservarmos escondido dentro de nós. O Saber tem de ser transmitido, caso contrário, acontece-lhe o mesmo que às jóias: servem para embelezar, mas a maior parte do tempo ficam guardadas em segurança. Ou então, como o dinheiro escondido com espírito mesquinho e que, se fosse posto a circular livremente, teria mais utilidade.
Saber é Poder: um poder que resulta da acção.

Poderás utilizar esse poder quando quiseres, uma vez que só através da acção e da experiência poderás saber e compreender se o que fazes é bom ou é mau, se estás a caminhar na direcção certa ou na direcção errada.
Os pensamentos dos seres humanos são frequentemente confusos porque não têm meta nem finalidade; a direcção do próprio caminho só pode ser encontrada quando se age.





in, A Profecia da Curandeira
Hernán Huarache Mamani

 


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