terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Por um Mundo Escutador







Não existe alternativa: a globalização começou com o primeiro homem. 
O primeiro homem (se é que alguma vez existiu «um primeiro» homem) era já a humanidade inteira. Essa humanidade produziu infinitas respostas adaptativas. 

O que podemos fazer, nos dias de hoje, é responder à globalização desumanizante com uma outra globalização, feita à nossa maneira e com os nossos propósitos. Não tanto para contrapor. Mas para criar um mundo plural em que todos possam mundializar e ser mundializados. Sem hegemonia, sem dominação. Um mundo que escuta as vozes diversas, em que todos são, em simultâneo, centro e periferia.

Só há um caminho. Que não é o da imposição. Mas o da sedução. 
Os outros necessitam conhecer-nos. Porque até aqui «eles» conhecem uma miragem. O nosso retrato - o retrato feito pelos «outros» - foi produzido pela sedimentação de estereótipos. 
Pior do que a ignorância é essa presunção de saber. 
O que se globalizou foi, antes de mais, essa ignorância disfarçada de arrogância. 
Não é o rosto mas a máscara que se veicula como retrato.

A questão é, portanto, a de um outro conhecimento. 
Se os outros nos conhecerem, se escutarem a nossa voz e, sobretudo, se encontrarem nessa descoberta um motivo de prazer, só então estaremos criando esse território de diversidade e de particularidade.

O problema parece ser o de que nós próprios — os do Terceiro Mundo — nos conhecemos mal.
Mais grave ainda: muitos de nós nos olhamos com os olhos dos outros. 

Um velho ditado africano avisa: 
não necessitamos de espelho para olhar o que trazemos no pulso. 

A visão que temos da nossa História e das nossas dinâmicas não foi por nós construída. Não é nossa. Pedimos emprestado aos outros a lógica que levou à nossa própria exclusão e à mistificação do nosso mundo periférico. Temos que aprender a pensar e sentir de acordo com uma racionalidade que seja nossa e que exprima a nossa individualidade.

Fomos empurrados para definir aquilo que se chamam «identidades». 
Deram-nos para isso um espelho viciado. 
Só parece reflectir a «nossa» imagem porque o nosso olhar foi educado a identificarmo-nos de uma certa maneira. 

O espelho deforma o que trazemos amarrado no pulso. 
Pior que isso: amarra-nos o pulso. E aprisiona o olhar. 
Onde deveríamos ver dinâmicas vislumbramos essências, onde deveríamos descobrir processos apenas notamos imobilidade.


Mia Couto 
in, Pensatempos


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