segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Carta anónima




...."Tomas dizia consigo mesmo: deitar-se com uma mulher e dormir com ela, eis duas paixões não apenas diferentes mas quase contraditórias. 
O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma multidão inumerável de mulheres), mas pelo desejo do sono compartilhado (esse desejo diz respeito a uma só mulher)."

in, "A Insustentável Leveza do Ser" 
Milan Kundera


"Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora nocturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de ti. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria a apanhar cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de ti ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.


Daí penso coisas tolas quando, sentado na janela do autocarro, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em ti. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais frequente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar a pensar em ti. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca te vejo - seria, seriam? Boas e tolas, são as coisas todas que penso quando penso em ti. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de caras contigo que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, tu abraças-me e vamos comer um gelado, sumo de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou a pensar em ti e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio tu dizes-me: estou a pensar tanto em ti. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.


Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando a pensar assim em ti. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento,tu nunca me criticas por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no teu colo ou tu deitas a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Tu tocas na minha mão, eu toco na tua.


Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos teus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no autocarro solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de ti. Fecho os olhos, faz tanto bem, tu não sabes. Suspiro tanto quando penso em ti, chorar só choro às vezes, e é tão frequente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em ti que na hora de dormir de vez em quando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da tua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo."

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