quinta-feira, 31 de março de 2022

HAEVN

                             









                                 






                             






                                






O SOLO SAGRADO DA ALMA





 

A vida do outro, a casa do outro, o coração do outro... são todos templos sagrados que se pede licença para entrar. 

Licença essa, concedida depois de instalada a confiança, o carinho, a verdade... 
Sem essas preciosas chaves, qualquer intromissão é forçada, é indelicada, é errada. 

Solo sagrado, se pisa descalço...

Gi Stadnicki




 

domingo, 27 de março de 2022

Helena Kolody – Poemas, Haikais











 Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol.
Outros nem conseguem vê-la.

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Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
que há pouco chorou.

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Trêmula gota de orvalho
Presa na teia de aranha,
Rebrilhando como estrela.

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Festa das Lanternas!
Os ipês estão luzindo
De globos cor-de-ouro.

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Corrida no parque.
O menino inválido
aplaude os atletas.

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Nas flores do cardo,
leve poeira de orvalho.
Manhã no deserto.

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O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.

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A morte desgoverna a vida.
Hoje sou mais velha
que meu pai.

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Buscas ouro nativo entre a ganga da vida. 
Que esperança infinita no ilusório trabalho. 
Para cada pepita, quanto cascalho.



Helena Kolody 
Poemas, Haikais






Ensinando a tristeza








Buscas ouro nativo entre a ganga da vida.
Que esperança infinita no ilusório trabalho.
Para cada pepita, quanto cascalho.

Helena Kolody






A poesia nasce da tristeza. 
Alberto Caeiro era amigo da sua tristeza: 
“Mas eu fico triste como um pôr de sol quando esfria no fundo da planície e se sente a noite entrada como uma borboleta pela janela”. 
E concluiu: “Mas minha tristeza é sossego porque é natural e justa e é o que deve estar na alma…”. Num outro lugar, Fernando Pessoa escreveu algo mais ou menos assim: 
“Ah! A imensa felicidade de não precisar de estar alegre…”.

Existe uma perturbação psicológica ainda não identificada como doença. Ela aparece num tipo a que dei o nome de “o alegrinho”. O alegrinho é aquela pessoa que está o tempo todo esbanjando alegria, dizendo coisas engraçadas, e querendo que os outros riam. Ele é um flagelo. Perto dele ninguém tem a liberdade de estar triste. Perto dele todo mundo precisa estar alegre… Porque ele não consegue estar triste, o alegrinho não consegue ouvir a beleza dos noturnos de Chopin, nem sentir as sutilezas da poesia da Cecília Meireles, nem gozar o silêncio triste da beleza do crepúsculo. Sempre alegrinho, na sua alma não há espaço para sentir a compaixão. Para haver compaixão, é preciso saber estar triste. Porque compaixão é sentir a tristeza de um outro.

Houve um menino que chorou ao ler a estória O patinho que não aprendeu a voar. Aconteceu assim: o seu pai comprou o livro esperando que eu, o autor, fosse um alegrinho e que o livro iria fazer seu filho dar muitas risadas. Voltou no dia seguinte muito bravo. Trazia o livro na mão, para devolvê-lo. Ao invés de dar risadas, no fim da estória o seu filho pôs-se a chorar. A estória é, de fato, triste. Eu a escrevi para o meu filho que estava passando por uma crise de vagabundagem. O seu prazer nas vagabundagens era tanto que ele não queria saber de aprender. O patinho também não queria saber de aprender. Não pôde voar com seus irmãos quando chegou a estação das migrações.

O menininho tinha razões para chorar? Não. As razões do seu choro não eram dele. Eram do patinho. Ele sofria o sofrimento do patinho. O seu coração batia junto ao coração do patinho. Mas o patinho não existia. Era apenas um personagem inventado de uma estória do mundo do “era uma vez”. E o menino sabia disso. Mas, a despeito disso, ele chorava. Aqui está um dos grandes mistérios da alma humana: a alma se alimenta com coisas que não existem.

Eu havia levado minha filha de seis anos para ver o E. T. Ao fim do filme ela chorava convulsivamente. Jantou chorando. Resolvi fazer uma brincadeira: “Vamos no jardim ver a estrelinha do E. T.!”. Fomos, mas o céu estava coberto de nuvens. Não se via a estrelinha do E. T. Improvisei. Corri para trás de uma árvore e disse: “O E. T. está aqui!”. Ela me disse: “Não seja tolo, papai. O E. T. não existe!”. Contra-ataquei: “Não existe? E por que você estava chorando se ele não existe?”. Veio a resposta definitiva: “Eu estava chorando porque o E. T. não existe…”.

Volto então à pergunta que fiz sem saber a resposta. O menino chorou ao ler a estória do patinho. Mas o patinho não existia. Minha filha chorou ao ver o filme do E. T. Mas o E. T. não existia. 

Pensei então que um caminho para se ensinar compaixão, que é o mesmo caminho para se ensinar a tristeza, são as artes que trazem à existência as coisas que não existem: a literatura, o cinema, o teatro. As artes produzem a beleza. E a beleza enche os olhos d’água…

Meus amigos podem ficar tranquilos. Sou triste sim. Mas minha tristeza “é natural e justa e é o que deve estar na alma…”. Volto às Escrituras Sagradas: “Com a tristeza do rosto se faz melhor o coração”. É isso que desejo ensinar aos meus alunos…


Rubem Alves
in, “Pimentas – para provocar um incêndio, não é preciso fogo”





                                 






sexta-feira, 25 de março de 2022

Psicóloga Lourdes Relloso explica em detalhes o surgimento da psicose c...

Niketche, Uma história de poligamia...excertos







Entro num delírio silencioso, profundo. Rajadas de ansiedade varrem-me os nervos como lâminas de vento. Este acidente enche-me de dor e de saudade. Meu Tony, onde andas tu? Por que me deixas só a resolver os problemas de cada dia como mulher e como homem. Há momentos na vida em que uma mulher se sente mais solta e desprotegida como um grão de poeira. Onde andas, meu Tony, que não te vejo nunca? Onde andas, meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher de bem, uma mulher casada. Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na boca. Náuseas. Revolta. Impotência e desespero.


Onde anda esse homem que me deixa os filhos e a casa e não dá um sinal de vida? Um marido em casa é segurança, e protecção. Na presença de um marido, os ladrões se afastam. Os homens respeitam. As vizinhas não entram de qualquer maneira para pedir sal, açúcar, muito menos para cortar na casaca da outra vizinha. Na presença de um marido, um lar é mais lai; tem conforto e prestígio.


 — O meu tem aquelas concubinas que conheces, com filhos e tudo—diz outra. — Pensas que me ralo? Olho para todas elas. Mulheres cansadas, usadas. Mulheres belas, mulheres feias. Mulheres novas, mulheres velhas. Mulheres vencidas na batalha do amor. Vivas por fora e mortas por dentro, eternas habitantes das trevas. Mas por que se foram embora os nossos maridos, por que nos abandonam depois de muitos anos de convivência? Por que nos largam como trouxas, como fardos, para perseguir novas primaveras e novas paixões? Por que é que, já na velhice, criam novos apetites? Quem disse aos homens velhos que as mulheres maduras não precisam de carinho? Oh, meu Tony! Queria tanto que estivesses presente. Traz-me de novo a primavera. Onde andas tu, que não me ouves?


Amor. Tão pequena, esta palavra. Palavra bela, preciosa. Sentimento forte e inacessível. Quatro letras apenas, gerando todos os sentimentos do mundo. As mulheres falam de amor. Os homens falam de amor. Amor que vai, amor que vem, que foge, que se esconde, que se procura, que se encontra, que se preza, que se despreza, que causa ódios e acende guerras sem fim. No amor, as mulheres são um exército derrotado, é preciso chorar. Depor as armas e aceitar a solidão. Escrever poemas e cantar ao vento para espantar as mágoas. O amor é fugaz como a gota de água na palma da mão. 


Fecho os olhos e escalo o monte para dentro de mim. Procuro-me. Não me encontro. Em cada canto do meu ser encontro apenas a imagem dele. Solto um suspiro e só me sai o nome dele. Desço até ao âmago do meu coração e o que é que eu encontro? Só ele.


Ninguém pode entender os homens. Como é que o Tony me despreza assim, se não tenho nada de errado em mim? Obedecer, sempre obedeci. As suas vontades sempre fiz. Dele sempre cuidei. Até as suas loucuras suportei. Vinte anos de casamento é um recorde nos tempos que correm. Modéstia à parte, sou a mulher mais perfeita do mundo. Fiz dele o homem que é. Dei-lhe amor, dei-lhe filhos com que ele se afirmou nesta vida. Sacrifiquei os meus sonhos pelos sonhos dele. Dei-lhe a minha juventude, a minha vida. Por isso afirmo e reafirmo, mulher como eu, na sua vida, não há nenhuma! Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo.


Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado em mim. Vejo olheiras negras no meu rosto, meu Deus, grandes olheiras! Tendo andado a chorar muito por estes dias, choro até de mais. Olho bem para a minha imagem. Com esta máscara de tristeza, pareço um fantasma, essa aí não sou eu. Os olhos que se reflectem brilham como diamantes. É o rosto de uma mulher feliz. Os lábios que se reflectem traduzem uma mensagem de felicidade, não, não podem ser os meus, eu não sorrio, eu choro. Meu Deus, o meu espelho foi invadido por uma intrusa, que se ri da minha desgraça. Será que essa intrusa está dentro de mim? Esfrego os olhos, acho que enlouqueci. Penso em fugir daquela imagem para o conforto dos lençóis. Dou dois passos em retaguarda. A imagem me imita. Dou outros dois em frente e ficamos a olhar-nos. Aquela imagem é uma fonte de luz e eu sou um fosso de tristeza. Sou gorda, pesada, e ela magra e bem cuidada. Mas os olhos dela têm a cor dos meus. A corda pele é semelhante à minha. De quem será esta imagem que me hipnotiza e me encanta?
 — Quem és tu? — pergunto eu. 
— Não me reconheces? Olha bem para mim. 
— Estou a olhar, sim. Mas quem és tu? 
— Estás cega, gémea de mim. Por que choras tu? 
Solto da boca uma enxurrada de lamentos. Conto toda a tristeza e digo que as mulheres deste mundo me roubam o marido. 
— Pode-se roubar uma pessoa viva, ainda por cima um comandante da polícia? 
— Um marido rouba-se, nesta terra.
—Não sejas criança, gémea minha. Ele cansou-se de ti e partiu.


— Por que danças tu, espelho meu? 
—Celebro o amor e a vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e a solidão. Piso para o fundo da terra todos os males que me torturam. A dança liberta a mente das preocupações do momento. A dança é uma prece. Na dança celebro a vida enquanto aguardo a morte. Por que é que não danças?


Infelizmente muitas de nós, mulheres, agimos assim. Subimos ao alto do monte e só quando estamos no ar compreendemos que não temos asas para voar. Atiramo-nos do alto do céu para um poço sem luz nem fundo e quebramos o coração como um vaso de porcelana.


— Mas... Julieta, como podes andar à pancadaria por um marido que nem sequer é teu? 
— E o que significa a palavra teu, quando se trata de um homem?
A Julieta revela-me uma verdade mais cáustica que uma taça de veneno. Ter é uma das muitas ilusões da existência, porque o ser humano nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos emprestado pela vida durante pouco tempo.
Penso naquilo que tenho. Nada, absolutamente nada. Tenho um amor não correspondido. Tenho a dor e a saudade de um marido sempre ausente. A ansiedade. Ter é efemeridade, eterna ilusão de possuir o intangível. Teu é o que nasceu contigo. 


As mulheres são diferentes no nome e na cara. No resto, somos iguais.
Tremo de piedade, de tristeza, de vergonha. Todas as mulheres são gémeas, solitárias, sem auroras nem primaveras. Buscamos o tesouro em minas já exploradas, esgotadas, e acabamos por ser fantasmas nas ruínas dos nossos sonhos.


—Oh, espelho meu, o que achas de mim? Devo renovar-me?
— Renova-te, sim. Mas antes, procura uma vassoura e varre o lixo que tens dentro do peito. Varre as loucuras que tens dentro da mente, varre, varre tudo. Liberta-te. Só assim viverás a felicidade que mereces. 
— Diz-me, espelho meu: onde foi que eu errei? Serei feliz algum dia, com essas mulheres à volta do meu marido? 
Pensa bem, amiga minha: serão as outras mulheres as culpadas desta situação? Serão os homens inocentes?


—E do amor sexual? 
— Nunca ninguém me disse nada. 
— Então não és mulher — diz-me com desdém —, és ainda criança. 
Como queres tu ser feliz no casamento, se a vida a dois é feita de amor e sexo e nada te ensinaram sobre a matéria? 
Olhei-a com surpresa. De repente lembro-me de uma frase famosa — ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Onde terei eu ouvido esta frase?


Dedicámos um tempo à comparação dos hábitos culturais de norte a sul. Falámos dos tabus da menstruação o que impedem a mulher de aproximar-se da vida pública de norte a sul. Dos tabus do ovo, que não pode ser comido por mulheres, para não terem filhos carecas e não se comportarem como galinhas poedeiras na hora do parto. Dos mitos que aproximam as meninas do trabalho doméstico e afastam os homens do pilão, do fogo e da cozinha para não apanharem doenças sexuais, como esterilidade e impotência. Dos hábitos alimentares que obrigam as mulheres a servir aos maridos os melhores nacos de carne, ficando para elas os ossos, as patas, as asas e o pescoço. Que culpam as mulheres de todos os infortúnios da natureza. Quando não chove, a culpa é delas. Quando há cheias, a culpa é delas. Quando há pragas e doenças, a culpa é delas que sentaram no pilão, que abortaram às escondidas, que comeram o ovo e as moelas, que entraram nos campos nos momentos de impureza. 
As mulheres do sul acham que as do norte são umas frescas, umas falsas. 
As do norte acham que as do sul são umas frouxas, umas frias.
Em algumas regiões do norte, o homem diz: querido amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os laços da nossa fraternidade, dorme com a minha mulher esta noite. No sul, o homem diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara curta. No norte, as mulheres enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No norte as mulheres são leves e voam. Dos acordes soltam sons mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros. No sul as mulheres vestem cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado, cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da trovoada. Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha. Vestem-se porque não podem andar nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo delas é reprodução apenas.
Homem do sul quando vê mulher do norte perde a cabeça. Porque ela é linda, mutbiana orem. Porque sabe amar, sabe sorrir e sabe agradar. Mulher do norte quando vê homem do sul perde a cabeça porque tem muita garra e tem dinheiro. O homem do norte também se encanta com a mulher do sul, porque é servil. A mulher do sul encanta-se com o homem do norte, porque é mais suave, mais sensível, não agride. A mulher do sul é económica, não gasta nada, compra um vestido novo por ano. A nortenha gasta muito com rendas, com panos, com ouro, com cremes, porque tem que estar sempre bela. E a história da eterna inveja. O norte admirando o sul, o sul admirando o norte. Lógico. A voz popular diz que a mulher do vizinho é sempre melhor que a minha.


— Frequentaste os ritos de iniciação? — pergunta a conselheira. 
— Não — explico —, o meu pai é um cristão ferrenho, de resto a pressão do regime colonial foi muito mais forte no sul do que no norte.
— Refiro-me às escolas de amor e vida. 
— Nunca frequentei nenhuma. 
— És mesmo criança, ainda não és mulher. 
— O que aprendem então nesses ritos, que vos faz sentir mais mulheres do que nós? 
— Muitas coisas: de amor, de sedução, de maternidade, de sociedade. Ensinamos filosofias básicas de boa convivência. Como queres ser feliz no lar se não recebeste as lições básicas de amor e sexo? Na iniciação aprendes a conhecer o tesouro que tens dentro de ti. A flor púrpura que se multiplica em pétalas intermináveis, produzindo todas as correntes benéficas do universo. Nos ritos de iniciação habilitam-te a viver e a sorrir. Aprendes a conhecer a anatomia e todos os astros que gravitam dentro de ti Aprendes o ritmo dos corações que palpitam dentro de ti.
— São assim tão importantes esses ritos? 
— Sem eles, és mais leve que o vento. És aquele que viaja para longe, sem viajar antes para dentro de si própria. Não te podes casar, ninguém te aceita. Se te aceita, logo depois te abandona. Não podes participar num funeral, muito menos aproximar-te de um cadáver porque não tens maturidade. Nem podes assistir a um parto. Não podes tratar dos assuntos de um casamento. Porque és impura. Porque não és nada, eterna criança.


A vida é feita de partilhas. Partilhamos a manta num dia de frio. Partilhamos o sangue com o moribundo na hora do perigo. Por que não podemos partilhar um marido? 
Emprestamos dinheiro, comida e roupa. Por vezes damos a nossa vida para salvar alguém. 
Não acha mais fácil emprestar um marido ou esposa do que dar a vida? 
As culturas são fronteiras invisíveis construindo a fortaleza do mundo. Em algumas regiões do norte de Moçambique, o amor é feito de partilhas. Partilha-se mulher com o amigo, com o visitante nobre, com o irmão de circuncisão. Esposa é água que se serve ao caminhante, ao visitante. A relação de amor é uma pegada na areia do mar que as ondas apagam. Mas deixa marcas. Uma só família pode ser um mosaico de cores e raças de acordo com o tipo de visitas que a família tem, porque mulher é fertilidade. É por isso que em muitas regiões os filhos recebem o apelido da mãe. Na reprodução humana, só a mãe é certa. No sul, a situação é bem outra. Só se entrega a mulher ao irmão de sangue ou de circuncisão quando o homem é estéril.


 Falamos da iniciação masculina. 
Digo que o meu Tony também não frequentou nenhuma escola de iniciação, ao que ela afirma: 
— O teu marido também não é homem, é apenas criança. 
— Criança, o meu Tony? Não pode ser! Como ousa desqualificar o meu marido? 
Ela explica-me a primeira lição da iniciação masculina: 
— A primeira filosofia é: trata a mulher como a tua própria mãe. No momento em que fechares os olhos e mergulhares no seu voo, ela se transforma na tua criadora, a verdadeira mãe de todo o universo. Toda a mulher é a personificação da mãe, quer seja a esposa, a concubina, até mesmo uma mulher de programa. O homem deve agradecer a Deus toda a cor e luz que a mulher dá, porque sem ela a vida não existiria. Um homem de verdade não bate na sua mãe, na sua deusa, na sua criadora. 
— Mas isso é no norte — recordo —, eu sou daqui, do sul.


Porque o casamento deve ser uma relação sem guerra. 
Porque levei muita sova nesta vida. 
Porque um lar de harmonia se constrói sem violência. 
Porque quem bate na sua mulher destrói o seu próprio amor.


Ela diz que todo o homem é bicho. Borboleta. Insecto. 
É seduzido pela brisa, pelo arco-íris, por tudo o que emana cor e luz.
Homem é bicho sonoro. No sibilar dos pinhais dorme, sonha. No farfalhar das palmeiras se extasia. No canto do pássaro se encanta. No soprar de uma flauta se enleva. No silvar de uma serpente se espanta. Faz a tua armadilha sonora. Tira dessa tua flauta a voz que embala, assim meiga, sussurrada, cantada, pausada. Tira desse pinhal o sibilar divino para repousar o seu cansaço. Se gritas como serpente espantas a caça. Homem é elefante. Grandioso. Mas o elefante atrai-se com formiga. O olho grande sempre se encanta com coisa pequena. Não procura ser grande, mas pequena. Muito pequena, quase microscópica, mas astuta e atenta para atacar os pontos vitais. Sê a bactéria que faz o homem se requebrar na dança da sarna. Sê o vírus que faz o grande homem estremecer ao ritmo da gripe. Sê tu mesma. Natural. Um adulto se rende de encanto, perante o sorriso de uma criança. Homem é azagaia. Ponta de lança. Homem é uma linha recta sem fim. Homem é uma bala acesa ferindo o espaço na conquista do mundo. As rectas unem o céu e o chão até ao fim do horizonte. Deixa que o homem seja o fim, porque tu és o princípio.


Mulher é linha curva. Curvos são os movimentos do sol e da lua. Curvo é o movimento da colher de pau na panela de barro. Curva é a posição de repouso. Já reparaste que todos os animais se curvam ao dormir? Nós, mulheres, somos um rio de curvas superficiais e profundas em cada palmo do corpo. As curvas mexem as coisas em círculo. Homem e mulher se unem numa só curva no serpentear dos caminhos. Curvos são os lábios e os beijos. Curvo é o útero. Ovo. Abóbada celeste. As curvas encerram todos os segredos do mundo.
Fiquei a saber como no amor os olhos se expressam. Olhos de gata. Olhos de serpente. Olhos magnéticos. Olhos sensuais. 
Não há mulheres feias no mundo, disse a conselheira — o amor é cego. Existem, sim, mulheres diferentes.
— Se queres um homem prenda-o na cozinha e na cama — diz ela.


A igreja e os sistemas gritaram heresias contra estas práticas, para destruir um saber que nem eles tinham. Analiso a minha vida. Fui atirada ao casamento sem preparação nenhuma. Revolto-me. Andei a aprender coisas que não servem para nada. Até a escola de ballet eu fiz — imaginem! Aprendi todas aquelas coisas das damas europeias, como cozinhar bolinhos de anjos, bordar, boas maneiras, tudo coisas da sala. Do quarto, nada! A famosa educação sexual resumia-se ao estudo do aparelho reprodutor, ciclo disto e daquilo. Sobre a vida a dois, nada! Os livros escritos por padres invocavam Deus em todas as posições. Sobre a posição a dois, nada! E na rua havia as revistas de pornografia. Entre a pornografia e a santidade, não havia nada! Nunca ninguém me explicou por que é que um homem troca uma mulher por outra. Nunca ninguém me disse a origem da poligamia. Por que é que a igreja proibiu estas práticas tão vitais para a harmonia de um lar? Por que é que os políticos da geração da liberdade levantaram o punho e disseram abaixo os ritos de iniciação? É algum crime ter uma escola de amor? Diziam eles que essa escolas tinham hábitos retrógrados. E têm. Dizem que são conservadoras. E são. A igreja também é. Também o são a universidade e todas as escolas formais. Em lugar de destruir as escolas de amor, por que não reformá-las? O colonizado é cego. Destrói o seu, assimila o alheio, sem enxergar o próprio umbigo. E agora? Na nossa terra há muito desgosto e muita dor, as mulheres perdem os seus maridos por não conhecerem os truques de amor. Fala-se de amor e aponta-se logo o coração e nada mais. Mas o amor é coração, corpo, alma, sonho e esperança. O amor é o universo inteiro e por isso nem a anatomia nem a cardiologia conseguiram ainda indicar o lado do coração onde fica o amor.

  
As mulheres ostentam este ar de fraqueza, mas mordem como abelhas. Fazem o homem chorar de amor como uma criança, até esvaziar-se da alma. Têm a vida de um homem na palma da mão, e este humilha-se, rende-se até perder o fôlego, até se entregar de corpo e alma, e fazem dele um escravo. Compreendo agora aquele caminhar requebrado e seguro de algumas mulheres do norte. Compreendo agora aquele falar cantado, o olhar dormente, de crocodilo.


Os ritos de iniciação são como o baptismo cristão. Sem baptismo todo o ser humano é pagão. Não tem direito ao céu. No sul, homem que não lobola a sua mulher perde o direito à paternidade, não pode realizar o funeral da esposa nem dos filhos. Porque é um ser inferior. Porque é menos homem. Filhos nascidos de um casamento sem lobolo não têm pátria. Não podem herdar a terra do pai, muito menos da mãe. Filhos ficam com o apelido materno. Há homens que lobolaram as suas esposas depois de mortas, só para lhes poderem dar um funeral condigno. Há homens que lobolaram os filhos e os netos já crescidos, só para lhes poder deixar herança. Mulher não lobolada não tem pátria. É de tal maneira rejeitada que não pode pisar o chão paterno nem mesmo depois de morta. Lobolo no sul, ritos de iniciação no norte. Instituições fortes, incorruptíveis. Resistiram ao colonialismo. Ao cristianismo e ao islamismo. Resistiram à tirania revolucionária. Resistirão sempre. Porque são a essência do povo, a alma do povo. Através delas há um povo que se afirma perante o mundo e mostra que quer viver do seu jeito. 


—Traição é crime, Tony! 
—Traição? Não me faça rir, ah. ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino. Só as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami.
Este é o discurso típico da minha terra, onde o homem é rei, senhor da vida e do mundo

  

Na minha aldeia, poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos, pois deixar outras mulheres sem cobertura é crime que nem Deus perdoa. 


Andei em brigas, escândalos, feitiços, escolas de sedução. Do amor o que ganhei eu? Nada! Chatices, só chatices. Enquanto me chateio o meu marido não pára de fazer das suas. Ele é como uma enguia nas águas revoltosas, nunca o conseguirei segurar. O que querem as mulheres, à volta de um só homem? Todas tememos a solidão e por isso suportamos o insuportável.


O mundo acha que as mulheres são interesseiras. E os homens não são? Todo o homem exige da mulher um atributo fundamental: beleza. As mulheres exigem dos homens outro atributo: dinheiro. Qual é a diferença? Só os homens podem exigir e as mulheres não?


Até na bíblia a mulher não presta.  Os santos, nas suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa — sua esposa — intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.
A paz nossa de cada dia nos dai hoje e perdoai as nossas ofensas — fofocas, má-língua, bisbilhotices, vaidade, inveja — assim como nós perdoamos a tirania, traição, imoralidades, bebedeiras, insultos, dos nossos maridos, amantes, namorados, companheiros e outras relações que nem sei nomear. Não nos deixeis cair na tentação de imitar as loucuras deles — beber, maltratar, roubar, expulsar, casar e ciar, divorciar, violar, escravizar, comprar, usar, abusar e nem nos deixes morrer nas mãos desses tiranos—mas livrai-nos do mal, Ámen. Uma mãe celestial nos dava muito jeito, sem dúvida alguma. Acabei de aprender a lição da vida. História de um amor só, um amor imortal? Balelas!
O amor solta-se do peito e corre perdido como uma pedra rolando no desfiladeiro. Amar uma vez na vida? Tretas. Só as mulheres, eternas palermas, engolem esta pastilha. Os homens amam todos os dias. Em cada sol partem à busca de novas paixões, novas emoções, enquanto nós ficamos a esperar eternamente por um amor já caduco. Todos os homens são polígamos. O homem é uma espécie humana com vários corações, um para cada mulher.



— Como conseguiu viver num lar com vinte e cinco esposas, tia Maria? 
A velha oferece-me um olhar de infinita ternura. 
—Filha minha, a vida é uma eterna partilha. Partilhamos o ar e o sol, partilhamos a chuva e o vento. Partilhamos a enxada, a foice, a semente. Partilhamos a paz e o cachimbo. Partilhar um homem não é crime. Vezes há em que partilhar a mulher é necessário, quando o marido é estéril e precisa colher o sémen de um irmão. Éramos um grande rebanho de mulheres aguardando cobertura.
Eram famílias verdadeiras, onde havia democracia social. Cada mulher tinha a sua casa, seus filhos e suas propriedades. Participávamos na feitura da escala matrimonial, que consistia numa noite para cada uma, mas tudo igual, igualzinho. E ele cumpria à risca. Ele tinha que dar um exemplo de um bom modelo de família. Se ele cometesse a imprudência de dar primazia a uma mulher em especial, tinha que suportar as reuniões de crítica dos conselheiros e anciãos.
Não consigo perceber a razão dessa felicidade, num lar com mais de vinte esposas, sem direitos nem liberdade nenhuma.
—A prosperidade mede-se pelo número de propriedades. A virilidade pelo número de mulheres e filhos. Um grande patriarca deve ter várias cabeças sob o seu comando. Quando se tem poder é preciso ter onde exercê-lo, não é assim? Em nossa casa as damas produziam filhos e davam a imagem de prosperidade. Se o marido tivesse dificuldades, recorria-se aos assistentes conjugais e reprodutores, recrutados entre os homens belos, robustos, inteligentes. Um homem tem que mostrar a imagem de virilidade, homem sobre todos os homens.
Todos esses casamentos eram contratos, alianças políticas entre as diferentes etnias, exceptuando o meu caso, que fui entregue para pagar as dívidas do meu pai. Nunca me senti casada com aquele homem, que tinha a idade do meu avô. 
Uma mulher que passava para as mãos do assistente nunca mais voltava ao leito do marido, o que era bom, porque ela recuperava a sua liberdade e podia vadiar. Podia até trazer para a sua casa filhos de qualquer um. Num lar polígamo não há filhos ilegítimos. Os que nascem dos assistentes não podem herdar. A primeira dama, a verdadeira nkosikazi, é que era sagrada. Nenhum homem podia tocar nela sob pena de morte. Essa era a única que garantia a linhagem. Quando me casei, ele já era um vovô. 
A primeira dama, era uma espécie de comandante do mulherio. Parecia um passarinho numa gaiola, lembro-me disso. Parecia mais prisioneira do que primeira dama. O marido respeitava-a muito. Hoje penso que a tristeza profunda vinha da falta de amor. É doloroso dormir sozinha sabendo que o marido anda por aí. 
— Que sistema terrível!
—A poligamia tem vantagens. 
—Vantagens?
— Vantagens, sim. Quando as mulheres se entendem, o homem não abusa. 



Recordo-me. A culpa foi toda minha. O meu corpo inteiro treme como um terramoto. De medo. De vergonha. Dormi com o amante da Lu! Aquela sedenta era eu, no meio do deserto, perseguindo um grão de chuva. Aquela depravada era eu, bebendo vinho, copo sobre copo, como uma prostituta. Entreguei-me a um desconhecido como uma vagabunda. ? Eu era uma pedra firme. Incorruptível. Sempre vivi acima das outras mulheres porque era a mulher de todas as virtudes. Feri a minha fidelidade, abri uma brecha, uma ferida que não cicatriza. Derrubei os pilares onde assentavam todos os valores, não resisti à tentação. É difícil ser fiel, quando se tem o corpo em chamas. É difícil esta abstinência forçada, meu Deus, é difícil ser mulher. Vim para uma festinha de aniversário e acabei no leito do amor proibido.
—Luísa, como é que isto foi acontecer, logo comigo? 
—Oh, Rami. Aquele homem não é criança nenhuma. És uma mulher carente, mal cuidada, abandonada, vê-se. Ele prestou-te um serviço. Não há nada de errado nisso. Não sou possessiva. Venho de uma terra onde a solidariedade não tem fronteiras. Venho de um lugar onde se empresta o marido à melhor amiga para fazer um filho, com a mesma facilidade com que se empresta uma colher de pau. Na minha comunidade o marido empresta uma esposa ao melhor amigo e ao ilustre visitante. Na minha aldeia, o amor é solenemente partilhado em comunhão como uma hóstia. O sexo é um copo de água para matar a sede, pão de cada dia, precioso e imprescindível como o ar que respiramos. Se já partilhamos um marido, partilhar um amante é mais fácil ainda. Assim as contas estão pagas, não é, Rami?
 — Isto é adultério. 
— Adultério? Há quanto tempo esperas por quem não vem? Vocês, mulheres do sul, perdem tempo com essas histórias e preconceitos. Renunciam à existência, pode-se saber porquê? Fidelidade a quê, se ele já te deixou? Mesmo as viúvas aliviam o luto em algum momento. E tu não és viúva, o Tony está vivo, está feliz e anda a fazer das suas, por aí. Na falta de uma boa chuva, um chuvisco serve. Faltando o chuvisco, um regador de mão, para molhar a terra. Essas mulheres que vendem o corpo são gente como nós, Rami.
— Não, eu não sou como elas, não posso ser como elas. 
— És, sim. Sofres o mesmo que elas. Sofres mais do que elas. És esposa apenas no papel, mais és a mais solteira das mulheres. Foi por isso que te emprestei o amante.
Fiquei com inveja da Luísa. Mulher prática, muito terra a terra, cumprindo as leis da natureza. Nasceu num berço de palha, mas sonha e varre as pedras do caminho com punhos de ferro.



—Sei muitas coisas a teu respeito. Admiro a tua coragem. És um caso raro. Eu acho que todas as mulheres deviam unir-se contra a tirania dos homens. Eu, se fosse mulher, faria isso. É aí onde está o teu ponto forte. No lugar de fazer a guerra estás aqui ao lado da tua rival. Tu és brava, mulher. 
— Mas não é fácil. 
—Tu não substituis tirania por tirania, o que é bom. Não faças mal a estas mulheres, São como tu, desgraçadas à busca da vida. Merecem antes o teu apoio e o teu perdão. Ainda por cima são mais jovens e mais desgraçadas que tu. Ensina-lhes a amar e a perdoar.  


— Pergunta a Lu. Ela vai contar-te como esse brutamontes do vosso marido se embebedava, a espancava durante a gravidez, a fechava num quarto e nem lhe dava comida. E ela nada fazia para inverter as coisas porque dependia dele para comer, para existir. Um homem que não respeita o próprio filho no ventre da mãe não merece nada. Vocês deviam dar-lhe um pontapé no traseiro para sentir o que é bom. No lugar de corrigi-lo vocês submetem-se, aceitam tudo, e ainda por cima se matam por ele.


Comecei a frequentar a casa da Lu. A partilhar segredos. O Vito passou a ser a sombra misteriosa perseguindo a sombra do meu ser A lua que brilha na fresta da minha janela. Excelente amante polígamo, distribuindo-nos amor roubado, numa escala justa, tudo por igual. A situação embaraçava-me, por vezes enjoava-me. A minha consciência censurava-me, mas o meu corpo estava lá à hora combinada, absolutamente dependente daqueles encontros secretos como uma viciada em heroína. Por vezes me assalta o medo de ser descoberta. Quando o Tony der por mim, o manto da fidelidade estará roído até ao último fio. A moral é uma moeda. De um lado o pecado, de outro lado a virtude. Silêncio e segredo unidos, no equilíbrio do mundo.


Não sou de lugar nenhum. Não tenho registo, no mapa da vida não tenho nome. Uso este nome de casada que me pode ser retirado a qualquer momento. Por empréstimo. Usei o nome paterno, que me foi retirado. Era empréstimo. A minha alma é a minha morada. Mas onde vive a minha alma? Uma mulher sozinha é um grão de poeira no espaço, que o vento varre para cá e para lá, na purificação do mundo. Uma sombra sem sol, nem solo, nem nome. Não, não sou nada. Não existo em parte nenhuma. Acham que eu devo abraçar a poligamia, e pôr-me aos gritos de urras e vivas e salves, só para preservar o nome emprestado? Acham que devo dizer sim à poligamia só para preservar este pedaço de chão onde repousam os meus pés? Não, não vou fazer isso, tenho os braços presos para aplaudir, e a garganta seca para gritar. Não, não posso. Não sei. Não tenho vontade nenhuma. Poligamia é uma rede de pesca lançada ao mar para pescar mulheres de todos os tipos. Já fui pescada. As minhas rivais, minhas irmãs, todas, já fomos pescadas. Afiar os dentes, roer a rede e fugir, ou retirar a rede e pescar o pescador? Qual a melhor solução? Viver a madrugada na ansiedade ou no esquecimento. Abrir o peito com as mãos, amputar o coração. Drená-lo até se tornar sólido e seco como uma pedra, para matar o amor e extirpar a dor quando o teu homem dorme com outra, mesmo ao teu lado. Poligamia é uma procissão de esposas, cada uma com o seu petisco para alimentar o senhor. É chamarem-te feia, quando és bela, pois há sempre uma mais bela do que tu. É seres espancada em cada dia pelo mal que fizeste, por aquele que não fizeste, por aquele que pensaste fazer, ou por aquele que um dia vais pensar cometer. Poligamia é um exército de crianças, muitos meios irmãos crescendo felizes, inocentes, futuros reprodutores dos ideais de poligamia. Embora não aceite, a minha realidade é esta. Já vivo na poligamia.
Poligamia é ser mulher e sofrer até reproduzir o ciclo da violência. Envelhecer e ser sogra, maltratar as noras, esconder na casa materna as amantes e os filhos bastardos dos filhos polígamos, para vingar-se de todos os maus tratos que sofreu com a sua própria sogra. Viver na poligamia é ser enfeitiçada por mulheres gananciosas, que querem ficar com o marido só para elas. No lar polígamo há muitas rivalidades, feitiços, mexericos, envenenamentos até. Viver na poligamia é usar artimanhas, técnicas de sedução, bruxedos, intrigas, competir a vida inteira com outras mais belas, desgastar-se a vida inteira por um pedaço de amor. Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos sem memória. 



Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e dominar.
Conheço um povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à poligamia. Cristianizou-se, jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e renunciou. A prática mostrou que com uma só esposa não se faz um grande patriarca. Por isso os homens deste povo hoje reclamam o estatuto perdido e querem regressar às raízes. Praticam uma poligamia tipo ilegal, informal sem cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não aos costumes, sim ao cristianismo e à lei. No momento seguinte, dizem não onde disseram sim, ou sim onde disseram não. Contradizem-se, mas é fácil de entender A poligamia dá privilégios. Ter mordomia é coisa boa: uma mulher para cozinhar, outra para lavar os pés, uma para passear, outra para passar a noite. Ter reprodutoras de mão-de-obra, para as pastagens e gado, para os campos de cereais, para tudo, sem o menor esforço, pelos simples facto de ter nascido homem. 


No comício do partido aplaudimos o discurso político: abaixo a poligamia! Abaixo! Abaixo os ritos de iniciação! Abaixo! Abaixo a cultura retrógrada! Abaixo! Depois do comício político, o líder que incitava o povo aos gritos de vivas e abaixos ia almoçar e descansar em casa de uma segunda esposa. Todo o problema parte da fraqueza dos nossos antepassados. Deixaram os invasores implantar os seus modelos de pureza e santidades. Onde não havia poligamia, introduziram-na. Onde havia, baniram-na. Baralharam tudo, os desgraçados!


Os homens repetem sempre: sou homem, hei-de casar com quantas quiser. E forçam as mulheres a aceitar este capricho. Tudo certo. Vendo bem, a quem cabe a culpa desta situação? Os homens é que defendem a terra e a cultura. As mulheres apenas preservam. No passado os homens deixaram-se vencer pelos invasores que impuseram culturas, religiões e sistemas a seu bel-prazer. Agora querem obrigar as mulheres a rectificar a fraqueza dos homens. No regime cristão, as mulheres são educadas para respeitar um só rei, um deus, um amor, uma família, por que é que vão exigir que aceitemos o que nem eles conseguem negar? Negar não é gritar: é olhar a lei, mudar a lei, desafiar a religião e introduzir mudanças, dizer não à filosofia dos outros, repor a ordem e reeducar a sociedade para o regresso ao tempo que passou. Estou a falar de mais. A pretender dizer que as mulheres são órfãs. Têm pai mas não têm mãe. Têm Deus mas não têm Deusa. Estão sozinhas no mundo no meio do fogo. Ah, se nós tivéssemos uma deusa celestial!



Não vale a pena escrever nada sobre o amor e o pecado. Neste mundo da poligamia, as mulheres são proibidas de ter ciúmes. Se o ciúme é amor, então elas estão proibidas de amar. O pecado original, quando o cometem, não é para ter prazer, é só para a reprodução. Podem falar dos castigos, das dores, do sofrimento, que essa linguagem as mulheres conhecem bem. Serpentes há muitas, só que as nossas não falam, neste éden tropical.



Que sistema agradável é a poligamia! Para o homem casar de novo, a esposa anterior tem que consentir, e ajudara escolher. Que pena o Tony ter agido sozinho e informalmente, sem seguir a normas, senão eu teria só consentido em casamentos com mulheres mais feias e mais desastrosas do que eu. Poligamia não é substituir mulher nenhuma, é termais uma. Não é esperar que uma envelheça para trocá-la por outra. Não é esperar que uma produza riqueza para depois a passar para a outra. Poligamia não depende da riqueza ou da pobreza. É um sistema, um programa. É uma só família com várias mulheres e um homem, uma unidade, portanto. No caso do Tony são várias famílias dispersas com um só homem. Não é poligamia coisa nenhuma, mas uma imitação grotesca de um sistema que mal domina. Poligamia é dar amor por igual, de uma igualdade matematicamente exacta. É substituir o macho por um assistente em caso de incapacidade: um irmão de sangue, um amigo, um irmão de circuncisão. Á vida é a eterna metamorfose. Vejam só o meu caso. O meu lar cristão que se tornou polígamo. Era uma esposa fiel e tornei-me adúltera — adúltera não, recorri apenas a um tipo de assistência conjugal, informal, tal como a poligamia desta casa é informal. Mulheres já somos cinco. Filhos são dezasseis, contando com os que ainda estão nas barrigas das mães. Faltam quatro para completar vinte.



Mulher nenhuma tem lar nesta terra. Mulher é passageira, não merece terra. Mulher é palha de coco atirada na lixeira. Mulher é sua própria inimiga, inventa problemas que lhe dão a morte. Mulher é culpada, põe o universo de avesso. Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças.


Fiz uma sondagem de opinião à volta da minha história. Perguntei às mulheres: o que acham da poligamia? A poligamia é uma cruz. Um calvário. Um inferno. Um braseiro. E cada uma conta a sua história, trágica, fantástica, comovente. 
Pergunto aos homens: o que acham da poligamia? Escuto risos cadenciados como o gorjear das fontes. Vejo sorrisos que esticam os lábios de orelha a orelha. As glândulas salivares entram em acção como se estivesse a servir um manjar de agradável paladar. Há aplausos. Poligamia é natureza, é destino, é nossa cultura, dizem. No país há dez mulheres por cada homem, a poligamia tem que continuar. A poligamia é necessária, as mulheres são muitas.
Volto a sondar a opinião das mulheres sobre o meu caso. Umas dizem: que horror! No teu lugar mataria as concubinas todas. Ferveria um pote de óleo e metê-las-ia lá uma a uma como na história de Ali Babá e os quarenta ladrões. Outras dizem: ignora essas mulheres e os filhos delas, faz de conta que nada sabes. Preserva o teu estatuto de casada, garante apenas que o homem não fuja para teres sempre em dia a tua quota de amor, nem que seja uma vez por mês. Outras dizem: seja amiga delas e só assim vais derrubá-las, sem socos nem palavrões. Elas não tiveram culpa, os homens é que são malandros, não prestam. Os homens dizem: a tua obrigação é aceitar tudo o que o teu marido decide. Essas mulheres são tuas irmãs, e os seus filhos são também teus. 


Tenho pena dessas mulheres vendendo amor para produzir pão e sabão. Quando os encantos à venda acabarem, a miséria baterá à porta. Que futuro lhes espera, sem emprego nem segurança? E o que serão estes filhos, sem nome nem sombra? Espera-lhes com certeza o manto da rua. Espera-lhes a fome, a sarna, a sarjeta da vida. 


— Somos éguas perdidas galopando a vida, recebendo migalhas, suportando intempéries, guerreando-nos umas às outras. O tempo passa, e um dia todas seremos esquecidas. Cada uma de nós é um ramo solto, uma folha morta, ao sabor do vento — explico. 
— Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de nós será um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor. Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o destino. Reunir as mulheres e os filhos num só feixe para a construção da família do grande patriarca. Recolher os cacos e esculpir um monumento amassado de lágrimas e polir com lustro para que reflicta os raios de todos os sóis do universo.



Por que fugiu de nós o Tony? Pode um marido acobardar-se diante das suas mulheres? Nós as cinco decidimos formar uma, como bem explicámos. Os homens gostam de conquistar. Depois não conseguem aguentar. Finalmente arranjam artimanhas, intrigas para depois escapar. Amor turbulento, este meu. Amor falhado desde o começo. Se o tempo de vida é dividido entre trabalho, repouso, convívio, um bom polígamo é uma máquina de amor, que não trabalha, não convive, ficando apenas a produzir toneladas de amor, para distribuir na medida certa por todas as esposas, amantes e concubinas. As minhas rivais entraram todas no paraíso, sim, entraram. De marginais passaram a gravitar dentro do cerco da família. De ignoradas e invisíveis passaram a conhecidas e visíveis. Podem a partir de hoje saudar os tios, os avôs dos filhos, sem nenhum receio. E eu, o que ganhei com esta farsa?
Ele parecia um fantasma. Mas por que é que um polígamo é feliz quando as mulheres se batem e é infeliz quando elas se entendem?



Começou a procissão das mães e das crianças. O Tony já não aguentava, fugia deles. Rami, aguenta tu com essa gentalha. Aguentei com elas até onde pude, até que lhes disse: Isto acontece porque não trabalham. Em cada sol têm que mendigar uma migalha. Se cada uma de nós tivesse uma fonte de rendimento, um emprego, estaríamos livres dessa situação. É humilhante para uma mulher adulta pedir dinheiro para sal e carvão. 
— Temos que trabalhar — diz a Lu —, ainda temos um pedaço de pão porque o Tony ainda está vivo. E quando ele morrer? Do luto até encontrar um novo parceiro vai um longo período de fome. É preciso prevenir o futuro. 
Arranja um amante pescador, se o teu negócio é peixe. Um padeiro, se o teu negócio é pão. Um oficial alfandegário, se o teu negócio é importação e exportação. Um carregador, se o teu negócio é carga e descarga. Rio-me à socapa e declaro: — Posso entregar-me a um só por amor. 
— E o que é o amor senão um acordo de interesses?



Conseguimos ter um mínimo de segurança para comprar o pão, o sal e o sabão sem suportar a humilhação de estender a mão e pedir esmola. 
O meu marido estava completamente retalhado. Retalhados todos os meus bens, a nossa segurança social, a nossa reforma, o nosso conforto que estava a ser jogado na terra como um punhado de sal numa panela de água. Eu partilho o pão e o vinho em comunhão. Partilho o marido por cinco, partilhamos um amante, a Lu e eu.
Ah, vida! Fazes-me aceitar esta mordaça só para ter o Tony por perto. Se eu digo não a toda esta confusão, o meu amor se espanta.



 — Para começar, vocês devem elaborar uma escala conjugal. O marido deve ficar uma semana por cada uma, numa escala rotativa. Quem menstruar na semana de escala deve notificar-se imediatamente. Não podem conspurcar o corpo do Tony com as impurezas das vossas menstruações. Isso pode-lhe provocar aquelas doenças que fazem os testículos ganhar o tamanho das abóboras. Devem servir o vosso marido de joelhos, como a lei manda. Nunca servi-lo na panela, mas sempre em pratos. Ele não pode tocar na loiça nem entrar na cozinha. Quando servirem galinha, não se esqueçam das regras. Aos homens se servem os melhores nacos: as coxas, o peito, a moela. Quando servirem carne de vaca, são para ele os bifes, os ossos gordos com tutano. É preciso investir nele, tanto no amor como na comida. O seu prato deve ser o mais cheio e o mais completo, para ganhar mais forças e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a família não existe.  Não dêem batatas cozidas no dia anterior, porque incham os testículos dos homens, principalmente dos rapazes em crescimento. Não comam nunca a cabeça de peixe, nem de vaca, nem de cabrito, que é comida de homem. A cabeça do animal representa a cabeça da família. A cabeça da família é o homem. Façam uma escala conjugal. Uma semana em cada casa é quanto basta para conviver. Dormir e despertar no mesmo lugar é saudável. O homem não deve percorrer o perímetro da cidade em cada dia, porque é desgastante, pode morrer cedo. Tem muitas vantagens: em casos de aflição, todas saberão o lugar certo onde o poderão procurar.
Ah, Tony já não estou sozinha no teu encalço. Agora somos cinco. Quero ver se nos escapas com a tua esperteza de rato.



O rosto da Mauá perdeu o brilho de outros dias e as palavras caem soltas como folhas mortas no prenúncio do inverno. Nos olhos, uma aura cor de névoa. Duas lágrimas caindo. O amor é assim. Um dia te ergue à altivez das catedrais, noutro dia derruba-te ao mais profundo do chão, fazendo-te chafurdar como um verme nas águas fétidas dos pântanos. 
 — Ele andava bem, cantarolava e assobiava quando tomava banho, numa expressão de felicidade total, mas quando chegava a hora, só dormia! E como dormia! Ressonava como as trombetas do paraíso e nada mais. 
— Não houve nada? 
—Nada!
— Dizem que isso acontece, de vez em quando — esclarece a Ju —, deve ser algum stress, excesso de trabalho, depressão, sei lá! 
—Também pensei nisso e fiz de tudo. Coloquei afrodisíacos na sopa, no guisado, no caril, no chá. Não deu nada!
 — Nada? 
— Pois é. A princípio julguei que era doença. Mas um dia encontrei um fio de cabelo na roupa. Um fio longo, grosso, não daqueles cabelos artificiais. Desconfiei, cacei e acabei descobrindo. Ele tem outra. Perdi o meu tempo a preparar afrodisíacos macuas, para ele viver bem com uma outra qualquer.
Oh, Mauá, para quem já tem cinco, basta acrescentar um zero para se ler cinquenta. O Tony terá cinquenta mulheres, vais ver. Na poligamia não há limites de paixão, Mauá.
— Se é casada, não há perigo nenhum. Se é solteira, não deve ser boa peça, mulher solteirona ao lado de um polígamo só pode ser caça-maridos ou caça-fortunas. Daqui a pouco ela engravida e exige estatuto. E seremos seis. Se ela é viúva, tem a herança do seu morto e só quer um momento de amor. Divorciada? Nunca se sabe o que anda na cabeça de uma divorciada, se passar o tempo, se caçar o bolso ou gozar a vida. 
— Não nos basta a escala, esta espera horrível? Se ela se junta a nós, o tempo de espera passará a ser de seis semanas e não cinco. É preciso evitar esse desastre.


 
Poligamia é destino de homem e castidade é destino de mulher. Um homem mata para salvar a honra e é aplaudido. Uma mulher faz ciúmes e é condenada. Nesta coisa de fabricar  homens à sua semelhança Deus falhou em alguma fórmula: Ele permanece solteiro e os homens polígamos. Francamente falando, não tenho nada a ver com a poligamia. O meu problema já expliquei: se eu reclamo de mais, perco o marido todo. Se entrar no seu jogo fico quieta no meu cantinho e ele fica bem mais pertinho. De resto, nas nossas tradições, essa coisa de poligamia depende do potencial de cada homem. 



Os reis da nossa terra tinham uma potência superior a vinte mulheres, e a tia Maria foi a vigésima quinta. Os ministros, governadores e toda a nobreza tinham potencial de cinco a dez. Os pobres, com poucas posses, tinham o limite de três. Aliás, três é o número ideal. Homem com uma mulher é solteiro maior, chefe dos solteiros, é insignificante, não pode eleger nem ser eleito porque pertence à classe dos inexperientes. Homem com duas mulheres é um bocadinho homem. Pode dar opinião, mas não pode decidir. Não pode ser rei, nem regente, nem régulo. Homem com três é verdadeiro homem, sabe mediar conflitos, sabe conduzir negócios de família. Nas nossas tradições as mulheres não têm direito a voto; de resto, na aristocracia não se vota, mas as mulheres adquirem algum estatuto. Só ganha estatuto aquela que sabe partilhar o marido, que ultrapassou o ciúme, que preserva os valores da tradição, que cumpre tudo o que a lei manda. Ganha muito mais prestígio aquela que sugere ao marido um novo casamento e ajuda a escolher a nova esposa. Pudera que assim tivesse sido, no meu caso. Não teria nunca escolhido nem aprovado uma rival tão fogosa como a Lu. 



Mas a realidade do amor é esta. Amar e ser amado é coisa de homem. Para a mulher, o amor recebido dura apenas um sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar da vista. Para a mulher, amar é ser trocada como um pano velho por uma outra mais nova e mais bela — como eu fui. É ser enterrada viva quando a menopausa chega — está seca, está gasta, estéril, não pode produzir nem prazer, nem filhos, e já não floresce em cada lua—dizem os homens. 



—A Mauá é o meu franguinho — diz —, passou por uma escola de amor, ela é uma doçura. A Saly é boa de cozinha. Por vezes acordo de madrugada com saudades dos petiscos dela. Mas também é boa de briga, o que é bom para relaxar os meus nervos. Nos dias em que o trabalho corre mal e tenho vontade de gritar, procuro-a só para discutir. Discutimos. E dou gritos bons para oxigenar os pulmões e libertar a tensão. A Lu é boa de corpo e enfeita-se com arte. Irradia um magnetismo tal que dá gosto andar com ela pela estrada fora. Faz-me bem a sua companhia. A Ju é o meu monumento de erro e perdão. É a mulher a quem mais enganei. Prometi casamento, desviei-lhe o curso da sua vida, enchi-a de filhos. Era boa estudante e tinha grandes horizontes. É a mais bonita de todas vocês, podia ter feito um grande casamento. Da Rami? Nem vou comentar. É a minha primeira dama. Nela me afirmei como homem perante o mundo. Ela é minha mãe, minha rainha, meu âmago, meu alicerce. 
—Tony—desabafa a Ju com certa amargura —, cada uma de nós tem a sua função. Para ti as mulheres são objectos de uso assim como papel higiénico. 
Ele vai-se desfazendo entre ofensas e galanteios, como um D. Juan. Não vê as feridas que abre. A ideia de ofensa nem existe, pois não corre nenhum perigo. Perigo de quê? As mulheres são suas. Loboladas. Compradas. Apaixonadas. Com filhos já paridos. Elas estão seguras, pescadas. Ao peixe pescado, amanha-se, tempera-se, coze-se e come-se. Ele pode dizer tudo o que lhe vai na alma sem correr qualquer perigo. 
— O que te faz então procurar uma nova mulher?
—Vontade de variar, meninas. Desejo de tocar numa pele mais clara. Vocês são todas escuras, uma cambada de pretas.




Pela primeira vez enfrentámo-lo sem medo e dissemos todas as verdades. Dissemos tudo o que nos doía. Delirámos. Estamos cansadas das tuas paixões, dizíamos, esgaravatas aqui e ali, bicas, largas e partes, como uma ave de rapina. Estamos cheias de filhos e privadas de carinho. Aos nossos filhos ofereces amor instantâneo, e corres logo para outros braços e outros carinhos. Em cada casa há crianças em coro, gritando, onde está papá, quando vem papá, onde foi papá, eu quero papá. Temos vontade de nos enfeitar e ficar bonitas. Mas para quem se não temos quem nos veja, quem nos leve ao cinema, ao baile, ao jantar? Temos vontade de cozinhar melhor. Mas cozinhar para quem se comemos sós? Tu não passas de uma abelha, beijo aqui, beijo ali, só para produzir teu mel, transportando doenças de uma para a outra, e qualquer dia morreremos de doenças incuráveis. O teu coração tem o tamanho de um camião, para transportar tantas mulheres ao mesmo tempo. Calamos as nossas ansiedades durante quatro semanas à espera da vez. Guardamo-nos o mais possível para te sermos fiéis. Mas presta atenção: isto vai acabar mal. Os dias não são todos iguais. A natureza tem outras flores, outros perfumes e outro mel. Tu és a nossa estrela, mas os planetas também brilham, iluminam e fazem sorrir. 
— Desde quando vocês me afrontam? 
— Desde hoje, agora, e assim será. 
—Com que direito? 
—Com o direito que a poligamia nos confere. Podíamos até convocar um conselho de família para declarar a tua incapacidade e solicitar a liberdade para ter um assistente conjugal, sabes disso?
—Vocês são minhas esposas. 
—Que esposas, Tony—diz a Ju, com voz tristonha —, nós somos mulheres de ninguém, mulheres sozinhas com uma cruz às costas. 
— O que quer isto dizer? 
—Simplesmente que amamos a tua companhia, mas a solidão pode ser melhor ainda. 
— Posso largar-vos na miséria por baixo da ponte, saibam disso. Fiz-vos um grande favor, registem isso. Dei-vos estatuto. Fiz de vocês mulheres decentes, será que não entendem? São menos cinco mulheres a vender o corpo e a mendigar amor pela estrada fora. Cada uma de vocês tem um lar e dignidade, graças a mim. Agora querem controlar-me?
Para estes homens, amar uma mulher é prestar um favor a ela. Levá-la ao altar é dar um estatuto a ela. Ah, o meu Tony é um generoso distribuidor de estatutos!



 Aqui no sul, os jovens iniciados aprendem a lição: confiar numa mulher é vender a tua alma. Mulher tem língua comprida, de serpente. Mulher deve ouvir, cumprir, obedecer.



As mulheres entram no coro das recriminações, dos conselhos e todas essas coisas que julgam saber. E sem pensar começam a falar da vida que mal conhecem. Espalmam-nos bem no solo como papaia madura na planta do pé. Falam-nos do amor como se na vida tivessem recebido algum. Abandonam o inimigo, viram os canos para os aliados, e fazem o jogo dos homens. Ah, vida ingrata! Para quando a solidariedade entre as mulheres? Generosas mães, oferecem-nos aquilo que têm. Coroas de fel e espinhos na passagem de testemunho, rainhas cessantes, entronando a nova geração. Coroam-nos de rainha de obediência. Miss submissão, damas de temor.
Como conspiração, fomos abatidas por outras mulheres. Como força, fomos aniquiladas pela fraqueza das outras mulheres. Ninguém nos perguntou o que sentíamos, o que comíamos, como vivíamos. Atiraram-nos da falésia, caímos em queda livre, esborrachámo-nos. Com fel e vómitos amortalharam os nossos corpos. 


Semana vai, semana vem. Alimentamos o corpo de sonhos e memórias de amores que duram apenas uma semana. De coisas boas não se enche o papo. tudo o que é bom dura pouco. Poligamia é isto mesmo. Encher a alma com um grão de amor Segurar o fogo que emerge do corpo inteiro com mãos de palha. Estender os lábios à brisa que passa e colher beijos na poeira do vento. Esperar. Ouvir os suspiros do teu homem nos braços de outra mulher e esconder o ciúme. Sentir saudade e não sofrer. Sentir a dor e não chorar.



Francamente falando, não tenho nada a ver com a poligamia. O meu problema já expliquei: se eu reclamo de mais, perco o marido todo. Se entrar no seu jogo fico quieta no meu cantinho e ele fica bem mais pertinho. De resto, nas nossas tradições, essa coisa de poligamia depende do potencial de cada homem. Os reis da nossa terra tinham uma potência superior a vinte mulheres, e a tia Maria foi a vigésima quinta. Os ministros, governadores e toda a nobreza tinham potencial de cinco a dez. Os pobres, com poucas posses, tinham o limite de três. Aliás, três é o número ideal. Homem com uma mulher é solteiro maior, chefe dos solteiros, é insignificante, não pode eleger nem ser eleito porque pertence à classe dos inexperientes. Homem com duas mulheres é um bocadinho homem. Pode dar opinião, mas não pode decidir. Não pode ser rei, nem regente, nem régulo. Homem com três é verdadeiro homem, sabe mediar conflitos, sabe conduzir negócios de família. Nas nossas tradições as mulheres não têm direito a voto; de resto, na aristocracia não se vota, mas as mulheres adquirem algum estatuto. Só ganha estatuto aquela que sabe partilhar o marido, que ultrapassou o ciúme, que preserva os valores da tradição, que cumpre tudo o que a lei manda. Ganha muito mais prestígio aquela que sugere ao marido um novo casamento e ajuda a escolher a nova esposa.



Tenho um medo terrível de me apresentar diante do meu espelho, mas vou. Preciso. Quero ver a nudez do meu corpo. Será que me vai assustar? Quero também ver a nudez da minha alma. Lanço um olhar ao espelho que me repreende: será mesmo por amor que chegaste a este ponto? E que tipo de amor é este que te rouba a dignidade e a vergonha a ponto de mostrar o teu nu diante das tuas rivais? Escondo os meus olhos do espelho. Cobre-me de indecência este amor, a ponto de me deixar arrastar por actos tão indecorosos. Que mulher sou eu que não se estima? Que pessoa sou eu, que pisa a vergonha e o ciúme, transformando o meu corpo num objecto de vingança? Deus meu, tira-me desta farsa, desta hipocrisia, desta maldade disfarçada! 



 Nesta luta não ganhei, só perdi. Mas sou rija, forjada, tenho nervos de aça Meu choro não é de fraqueza, é de raiva. Vou arregaçar as mangas e entrar numa nova briga. Vou atacar o Tony com a sua própria arma: mulheres. Não se pode dormir com todas as mulheres do mundo, sabe-se. Mas vou incitá-lo a ter todas as mulheres do planeta. Todas! Nas minhas têmporas o cabelo branco já espreita. Sinal de maturidade e sabedoria. Isso é experiência. Estas quatro mulheres à minha frente são as minhas armas e as outras que ainda hão-de vir serão as minhas balas. Veremos quem sairá vencedor!
  


Precisa-se de um homem para dar dinheiro. Para existir. Para ter estatuto. Para dar um horizonte na vida a milhões de mulheres que andam soltas pelo mundo. Para muitas de nós o casamento é emprego, mas sem salário. Segurança. No tempo da operação produção, eram presas todas as mulheres que não tinham maridos e deportadas para os campos de reeducação, acusadas de serem prostitutas, marginais, criminosas. Por todo o lado há assédio sexual para os cavalheiros mais abastados tanto em músculos como em dinheiro. 
Os homens também assediam mulheres. Para guardar em casa e lavar a roupa. Obedecer. Pôr a mesa e tirar a louça. Parir filhos e encher a casa. Dizem que um homem forte não chora quando a mulher o abandona. Um homem solitário coloca os pés no caminho, dá dois passos e sente dor nos joelhos e desiste da marcha porque é longa. Arranja um pretexto e diz que, para lá do horizonte, não há vida, só pedras. E consola-se no álcool como companheiro, a solidão é má conselheira. Homem sem mulher tem peso de vento. É visto como irresponsável, as mulheres o rejeitam porque o julgam pouco macho. 
Uma mulher solteira diz que o mundo é uma bola de esterco, que ninguém lhe entende. É azeda. Grita por tudo e por nada. E diz que as flores são ervas. Que o brilho do sol apenas fere. Que é melhor a noite e o escuro. Busca a morte em vida. É um cadáver em movimento.



— For isso me afrontam, porque têm dinheiro. For isso me abusam, porque têm negócios. Por isso me faltam ao respeito, porque se sentem senhoras. Mas eu sou um galo, tenho a cabeça no alto, eu canto, eu tenho dotes para grandes cantos. Pois saibam que o vosso destino é cacarejar, desovar, chocar, olhar para a terra e esgaravatar para ganhar uma minhoca e farelo. Por mais poder que venham a ter, não passarão de uma raça cacarejante mendigando eternamente o abraço supremo de um galo como eu, para se afirmarem na vida. Vocês são morcegos na noite piando tristezas, e as vossas vozes eternos gemidos.



—Espelho meu, o que será de mim? O espelho dá-me uma imagem de ternura e responde-me com a maior lucidez de sempre. — Não serás a primeira a divorciar, nem a última. Os divórcios acontecem todos os dias, como os nascimentos e as mortes, mas tranquiliza-te. Se homem e mulher tivessem sido feitos para morrer juntos, teriam nascido juntos, do mesmo ventre e ao mesmo tempo. Mas cada um nasce no seu dia e na sua hora. Só o amor tem a força da união.
Ah, meu amor ingrato. De ti sempre aceitei tudo, suportei tudo: doenças, desejos, problemas, lamentos, vergonhas, sujeiras, conflitos. Agora libertas-te, dispensas-me, trocas-me, humilhas-me, por outras mais novas, mais belas. 
Escolhi o casamento como profissão. Na carreira matrimonial a mulher nunca sobe de escala. Desce. Estou na idade de subir ao trono e consagrar-me rainha nesta vida, e eis que me retiram a cadeira real. O que será de mim? Se oTony corre comigo daqui. onde irei viver com os meus Filhos? Procurar um novo marido? Com tantos filhos?
— Espelho meu, sou uma bilha de barro fendida no meio e já não retenho água. Sou sapato gasto no meio da sola que já não serve para marcha nenhuma. Sou uma falhada. Sou uma frustrada. Uma mulher abandonada por incompetência conjugal. Uma velha. Um trapo. Um traste. 
—Mas o mundo não começa contigo, gémea de mim. Não termina contigo. Há neste mundo mulheres sofrendo muito mais do que tu. Se o divórcio se consumar é porque estava escrito no livro da vida que tu e o Tony não morreriam juntos. 



— Como chegaste ao extremo de fazer seis filhos, sem prazer—diz a Mauá com muita compaixão—, com um homem que nunca te quis? 
— Tinha a esperança de prendê-lo. Mas no lugar de o prender me rasgava, e multiplicava. 
— Muito me espanta esta cultura do sul! — conclui a Mauá. 
— Para nós, o amor e o prazer são muito importantes. Quando um destes elementos falha, mudamos de parceiro. Para quê sofrer?
 — Queria ter mais filhos. Fiz de tudo para evitar congregar diferentes apelidos num só ventre. Tinha medo de ser chamada prostituta. Pobre. Feiticeira. Ladra de maridos. A nossa sociedade não aceita uma mulher com filhos de pais diferentes, e apelidos diferentes.
—Ter filhos de pais diferentes não é fraqueza. Antes pelo contrário, uma mulher assim amou muito e foi amada. É experiente. Teve a sorte de ser desejada por muitos, a vida é feita de tentativas, falha aqui, acerta ali, qual é o problema? 
— É uma questão moral, Saly 
— Moral! — diz a Lu com voz severa. — Uma moral que vos obriga a chocar ovos de víbora. Veja só o que a moral fez de ti. És um fantasma. Vives no inferno. O homem fez de ti simples máquina reprodutora e tu aceitaste o pacto. É muito grave a tua situação. No teu lugar teria abandonado este homem faz muito tempo.
—A nossa sociedade do norte é mais humana—explica a Mauá.—A mulher tem direito à felicidade e á vida. Vivemos com um homem enquanto nos faz feliz. Se estamos aqui, é porque a harmonia ainda existe. Se um dia o amor acabar, partimos à busca de outros mundos, com a mesma liberdade dos homens. 
As vozes das mulheres do norte censuram em uníssono. No sul a sociedade é habitada por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. Não cuidam do corpo, nem fazem massagens ou uma pintura para alegrar o rosto. Somos mais alegres, lá no norte.



 — Vocês, do sul, não se preocupam com coisas importantes — a Mauá volta à carga. — Fazem amor à moda da Europa. Concentram toda a energia no beijo na boca, como se o tal beijo valesse alguma coisa. Dizem que pensamos apenas no sexo? Quantos homens do sul abandonaram os lares para sempre? Chamam-nos atrasadas. Vocês só têm livros na cabeça. Têm dinheiro e brilho. Mas não têm essência. Têm boas escolas, empregos, casas de luxo. De que vale tudo isso se não conhecem a cor do amor? De que vale viajar para a lua para quem ainda não viajou para dentro de si próprio? Já Fizeste uma viagem para dentro de ti, Rami? Nunca, vê-se pela amargura que tens no rosto. O paraíso está dentro de nós, Rami. A felicidade está dentro de nós. Vocês, do sul, ainda não são mulheres, são crianças. Seres reprodutores apenas. For isso os homens vos abandonam a torto e a direito. A vossa vida a dois não tem encantos. Por isso, mal declararam a independência gritaram: abaixo os ritos de iniciação. O que julgavam que faziam?
— Não tens culpa — comenta a Saly—Vocês do sul deixaram-se colonizar por essa gente da Europa e os seus padres que combatiam as nossas práticas. Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de nós? Depois trouxeram a pornografia, essa estupidez só para enganar os incompetentes e entreter os tolos.
— Pergunta ao Tony se queres confirmar. Às vezes digo-lhe: se não trazes o que quero, faço a greve de sexo. Vais ficar em jejum. Fecharei as minhas portas para a viagem no tempo. Ele fica atrapalhado e faz de tudo para me agradar. Rami, tens que acreditar. Todo o homem é escravo nas mãos de uma mulher que sabe amar. 
—Se fosse homem não veria toda esta desgraça. Maldita a hora em que Deus me fez mulher—desabafo.
— Bendita hora em que Deus me fez mulher—diz a Mauá.—As mulheres foram feitas para o amor e não para o sofrimento. Posso comer sem trabalhar, que oTony dá-me tudo o que quero, porque ele é meu escravo.
Dói-me esta revelação. O meu marido é sugado por mulheres-anfíbios. Mulheres com escamas. Mulheres lulas. Mulheres polvos. Elas vêm do mar e habitam a terra, meu Deus, elas acabaram comigo, derrubaram o meu casamento. Venceram-me. Estou perdida. Agora compreendo por que é que os ritos de iniciação foram combatidos, mas, mantidos em segredo, sobreviveram durante séculos como sociedades secretas. Homem que passa por essa escola sabe amar. Mulher que passa por essa escola encanta, enlouquece, vive, vibra. 
A Mauá gaba-se de ter um cacho de lulas capazes de embrulhar um homem como uma fralda. Louca! Que vá à fava com as suas magias.
Pergunto-lhes se são felizes com o seu destino. Cada uma me conta histórias intermináveis de magias de amor, com makangas, xitbumivas, wasso-wasso, sais, ervas, mezinhas, fumo de tabaco, cannabis, vassouras, garrafas, mentol, só para fazer um homem perder a cabeça por ela. Olhar para as outras e pensar apenas nela. Para não despertar o fogo com as outras e dormir apenas com ela. Para dar maior sensação. Maior impressão. Colar. Prender. Sugar. Fazer o homem abandonar o corpo e seguir o caminho das estrelas mais longínquas. Escuto a história desta, a história daquela. Todas dizem a mesma coisa.  Sobram poucos homens para alimentar as nossas bocas canibais. É por isso que os disputamos e só vence quem tem garras. Nós, as menos corajosas no combate, vivemos na renúncia e abstinência sofrendo o martírio da insónia.



E tu, polvo implacável, onde consegues tanta caça? Sou polvo, não percebes? Aspiro tudo. Tenho um pote de mel que nunca acaba. Sou uma fonte inesgotável, dou de beber a todos os caminhantes. Sou a inimiga emboscada que provoca incêndios, explosões, insónias, pesadelos e enlouquece os homens. 
Olho para ela e baixo a cabeça e digo: dás de beber a qualquer um, a troco de quê? Olha que essa fonte é o santuário da vida, e os lugares santos se devem purificar. Esse cantinho que tens contigo é o altar que Deus criou para manifestar todo o seu amor. Não o profanes. Mas se te faz feliz, bem hajas!



Não respondo, apenas lamento: pobrezinha! Entristeço e choro. Esta... vive num compartimento hermético sem nascente nem poente. Não pode chorar porque falta ar. Não pode gritar porque não tem eco. Não conhece a brisa, nem azul, nem estrelas. Aprendeu a dizer sim e a nunca dizer não. Aprendeu a dizer obrigada, a dizer perdão e a viver na humilhação. Quando o carrasco diz: Maria, chega para aqui, ela responde, sim senhor. Agora deita-te. Sim senhor. Agora abre. Sim senhor. Agora come. Sim senhor. Agora chega. Obrigada senhor. Agora levanta-te, comeste de mais hoje. Perdão senhor.



—Vocês são do norte, e tratem das vossas coisas nas vossas casas, que nós, do sul, temos as nossas tradições — responde o irmão do Tony — Não nos venham aqui dar ordens porque vocês, macuas, não são homens. Na vossa terra as mulheres é que mandam. Onde já se viu um homem casar e ir viver na família da mulher? Onde já se viu um homem trabalhar a vida inteira para abandonar o produto do suor nas mãos dela, quando morre ou quando há separação? 
—As mulheres são flores, devem ser bem tratadas. As mulheres são fracas, devem ser protegidas. Quem melhor que a família da mãe para dar carinho e protecção? Quando morre o marido, a casa fica com ela e com os filhos. Afinal foi construída para eles. 
— Vocês, do norte, são escravos delas. Trabalham a vida inteira só para elas. Até os filhos têm o apelido da mãe. Que tipo de homens vocês são? 
— E vocês do sul são brutos, tratam as mulheres como bichos. Alguém, neste mundo, sabe quem é o verdadeiro pai dos filhos da mulher? O senhor, que tanto nos insulta, tem a certeza de que os filhos que diz serem seus o são, de certeza? Na nossa terra os filhos têm o apelido da mãe, sim. Pai é dúvida, mãe é certeza. Um galo não choca ovos, nunca. É bom dar a César o que é de César.
—Soubemos dos maus tratos que estão a dar à D. Rami—diz o tio da Mauá. — Gostaríamos de declarar que as macuas e as macondes não são gado para serem maltratadas. Viemos avisar que não devem tocar num centímetro da pele das meninas. Não queremos ouvir falar desses vossos rituais de cortar cabelo e fazer vacinas.


— Isso tudo é conversa, xingondos desgraçados. Vocês investem nas mulheres? Que tipo de investimento? 
—Investimos, sim. Porque a mulher é terra. Sem adubar, sem regar, ela nada produz. Enquanto vocês batem nelas, pisam nelas, nós as enfeitamos, amamos e cuidamos como plantas do mais belo jardim. 
 



Chamam-nos para uma nova reunião de família, a mim e à Ju. As nortenhas ficam de fora. Viram-se todos contra mim e descarregam a fúria.
 —Rami, tens que assumir a responsabi1idade do que se passou com o Tony Ele perdeu a vida por tua culpa. Ele começou a arranjar mulheres lá fora e acabou por se tornar polígamo, porque não o satisfazias. Porque tinhas sempre a mesa mal posta e a cama fria. Porque és altiva e nada compreensiva. Porque não sabias amar nem conviver.  Se não fosse essa tua mania de juntar as esposas, nada disto teria acontecido. Juntaram-se e as cinco fizeram correntes negativas dentro desta casa.  Mataste-o para evitar o divórcio e ficares com os bens do falecido.
São as mulheres que falam. E como falam! Vomitam dores, espinhos, desgostos, frustrações. 
Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os olhos dos meus cunhados, candidatos ao sagrado acto, brilham como cristais. Cheira a erotismo no ar. A expectativa cresce. Sobre quem cairá a bendita sorte? Quem irá herdar todas as esposas do Tony? Fico assustada. Revoltada. Minha pele se encharca de suor e medo. Meu coração bate de surpresa infinda. Kutchinga!'Eu serei tchingada por qualquer um. E todos aguçam os dentes para me tchingarem  a mim. A parede é firme e fria. Ampara-me. O dorso do chão é duro, é seguro. Suporta-me. É tão cruel e tão malvada esta gente... Peço a qualquer Deus qualquer socorra Ninguém me ajuda, nem Deus, nem santos. Kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurara viúva na nova vida, oito dias depois da fatalidade. Kutchinga é carimbo, marca de propriedade. Mulher é lobolada com dinheiro e gado. É propriedade. Quem investe cobra, é preciso que o investimento renda.
No meio desta desgraça, há uma coisa boa. Com a falta de homens que dizem haver, é bom saber que a viuvez me reserva um outro alguém, mesmo que seja de vez em quando. É confortante saber que tenho onde encostar o meu ombro sem precisar de andar pelas ruas a vender os meus encantos diminuídos pelo tempo. Incesto? Incesto não, apenas levirato. Incesto só há quando corre o mesmo sangue nas veias. 



Depois do funeral, a divisão de bens. Carregam tudo O que podem: geleiras, camas, pratos, mobílias, cortinados. Até as peúgas e cuecas do Tony disputaram. Levaram quadros, tapetes daa casa de banho. Deixaram-me as paredes e o tecto, e dão-me um prazo de trinta dias para abandonar a casa. Pilharam a mim, só a mim. As outras não. Contam histórias mais extraordinárias à volta delas. Dizem que não são viúvas verdadeiras. Que são nortenhas e têm cultura diferente. Que os xingondos são unidos e provocar um é provocar todos. Que os espíritos desses senas, macuas, macondes, além de poderosos são perigosos. Beneficiar do estatuto de viúva é ficar nua, careca e com uma mão à frente e outra atrás? 
—Vi a tua morte e fui ao teu funeral — desabafo. — Usei luto pesado. Os malvados da tua família até o meu cabelo raparam. Até o kutchinga, cerimónia de purificação sexual, aconteceu. 
— Quando? 
— Há poucas horas, nesta madrugada. Sou tchingada de fresco. 
Ele olha para o relógio. São dez horas da manhã. 
— Quem foi o tal? 
— Foi o Levy
—Não me maltratou, descansa. Foi até muito suave, muito gentil. É um grande cavalheiro, aquele teu irmão. Falo com muito prazer e ele sente a dor de marido traído. No meu peito explodem aplausos. Surpreendo-me. Sinto que endureci nas minhas atitudes. O meu desejo de vingança é superior a qualquer força deste mundo.
— E agora? 
— Ah, Tony! Estou magra, desfigurada, acabada. Careca. Raparam-me o cabelo com navalha, como uma reclusa. Fui tatuada com ferro na brasa. Carimbada como uma escrava. Deserdaram-me de tudo como uma criminosa. Na cabeça rapada colocaram-me uma coroa de espinhos. Deram-me um trono de espinhos. Um ceptro de espinhos. Varreram a casa e deixaram este tapete de espinhos. 
—Rami, tu sabias que não era eu, tu sabias. 
— Sabia, sim. Mas quem me iria ouvir? Alguma vez tive voz nesta casa? Alguma vez me deste autoridade para decidir sobre as coisas mais insignificantes da nossa vida? O que querias tu que eu fizesse? 
O coração do homem quebra em mil pedaços. Honra, dignidade, orgulho, vaidade, são ondas imensas onde todo ele se afunda. Está num precipício. A sua alma mergulha num oceano fundo. Não sabe nadar.
— E as outras? 
— Estão desorientadas, coitadas. Elas são viúvas jovens e belas. Devem estar a planear novos amores. Eu já tenho o Levy. Os teus irmãos não param de visitá-las para prestar condolências. Mas tiveram mais sorte do que eu e mantiveram tudo o que era delas. O espólio, a pilhagem e todas as barbaridades foram só para mim.  
A minha linguagem é mais dura que uma rajada de granizo. Chicoteia. Eu dizia tudo sem rodeios. Queria que ele provasse de uma só vez o seu próprio veneno. Que sentisse o cheiro do seu próprio esterco, e que reconhecesse de uma vez a maldade que o rodeia. 
— Foi desumano o que fizeram contigo. Ah, cultura assassina! 
Ele entra em delírio. Diz que não sabia que a vida era má, nem imaginava que as mulheres sofriam tanto. Sempre achara que a sociedade estava bem estruturada e que as tradições eram boas, mas só agora percebia a crueldade do sistema. 
— Um homem mede-se pela solidez da obra que deixa, quando a morte chama. Olha à tua volta: o que vês? Ruínas, desolação, tristeza. Construíste o teu castelo na areia do mar, foi derrubado pela maré, pelo vento, pelos gatos, pelos ratos, és um homem fraco, um homem pobre, meu Tony.



 —Disseste que concordavas com a poligamia, Rami. 
— Na poligamia verdadeira, não é o homem que impõe os seus desejos de ter mais uma, mas as próprias mulheres sugerem um novo casamento. As mulheres não são violentadas e vivem umas perto das outras. Os casamentos são programados, planeados.



Vou ao espelho para ver se a minha careca se desfaz. Fecho os olhos com medo de ver a minha terrífica imagem. Voltei a abri-los. Estavam completamente embaciados de lágrimas. De repente o meu espelho plano se transforma em bola de cristal e reflecte imagens, reflecte segredos. Prediz o futuro e revela-me segredos inconfessáveis. Pergunta-me: 
— Quem és tu, que não reconheço? 
Entre lágrimas eu respondo: 
— Sou aquela que sonhou amada e acabou desprezada. A que sonhou ser protegida e acabou por ser trocada. Sou eu, mulher casada, quem foi violada mal o homem deu sinais de ausência. Sou a Rami. 
— Não és a Rami. Tu és o monstro que a sociedade construiu. 
Encostei o meu rosto no espelho e chorei perdidamente. 
Ganhei o controlo de mim mesma e olhei de novo. A imagem do espelho sorri. Dança e voa com leveza de espuma. Levita como um jaguar correndo felino nas florestas do mundo. Era a minha alma fora das grades sociais. Era o meu sonho de infância, de mulher. Era eu, no meu mundo interior, correndo em liberdade nos caminhos do mundo.
— Diz-me, espelho meu. Haverá no mundo mulheres mais traídas do que eu? 
—São todas. Todas! No amor, todos os homens são traidores. 



— Explico-me melhor: para os homens, primeira esposa é a esposa de serviço, e a segunda a esposa do prazer. A primeira é a esposa de espinhos e a segunda esposa de flor. Se a vida da mulher é a poligamia, jamais sereia primeira. Quero ser sempre o que agora sou: a terceira. Prazer e flor. Vendo bem, tu sofres, eu sorrio. Tu semeaste, eu colhi. Nunca soube o que era sofrimento conjugal. Tu lavas o marido e o perfumas, nós, as segundas e terceiras, recebemo-lo já lavado, perfumado. Tu o preservas e nós o usamos e gastamos. O Tony vem aos meus braços só para ser feliz e quando chega a hora parte sem deixar problemas. E contigo deixa toda a carga: levar a sogra à consulta, visitar o irmão doente, ir a todos os eventos sociais em nome da família, representá-lo em funerais, etc, enquanto eu, a terceira, estou livre de tudo, cuido da casa e do meu corpo, preparando-me apenas para o amor. 
Meu Deus, ela não mente. Ela é o meu espelho revelando de forma cruel o meu retrato de submissa.  
—Tenho um marido sete dias de quatro em quatro semanas. No tempo de espera, está o Vito a fazer-me companhia para quebrar a monotonia. Deves compreender, sou de carne e não me alimento só de arroz. — O que sentes pelos dois? 
— O Tony me cuida, respeito-o. O Vito me agrada, amo-o. Ambos me completam. Casada com o Vito, terei de mais prazer, amor e novas rivais. 
 — És uma mulher dura. 
— Uma mulher é educada para ser sensível como a boneca de porcelana, que se desfaz em cacos na simples queda. Preparada para a fineza e delicadeza, mas os homens dão-nos carícias com mãos rijas como ferro e nos quebram ao simples toque. Querem-nos suaves e meigas como cabelos. Mas os homens cortam-nos com a frieza das tesouras de aço. Aos homens ensinam a amar a si mesmos e só depois ao próximo. Às mulheres se ensina a amar ao próximo, mas nunca a amarem-se a si próprias. Eu amo a mim mesma e depois aos outros, tal como os homens.  



Agora entendo. O mundo é este chão que os meus pés pisam. É esta cadeira onde me sento. É o carinho que dou, é a flor que recebo. O mundo é o meu espelho, o meu quarto, o meu sonho. O mundo é o meu ventre. O mundo sou eu. O mundo está dentro de mim.



Para nós, mulheres, um marido não é leveza, é um fardo. O marido não é companheiro, é dono, é patrão. Não dá liberdade, prende. Não ajuda, dificulta. Não dá ternura, dá amargura. Dá uma colher de gosto e um oceano de desgosto. 


 — Um homem em casa é trabalho duplo — diz a Mauá —, não há tempo. É preciso perseguir os negócios e recolher o dinheiro que passa. 
—Já ninguém quer o Tony? — pergunta a Saly num grito.—O que se passa? Ele está há mais de quinze dias na minha casa e nunca mais sai e vocês nada reclamam. Não fizemos nós o pacto da partilha, semana aqui, semana ali? Eu também preciso do meu tempo. Quero cuidar dos meus negócios, ganhar dinheiro para criar este filho, e projectar o meu futuro. Se nenhuma de vós o quer, eu juro, hei-de enxotá-lo à pedrada. Não posso viver com ele eternamente.
— Calma, Saly — diz a Ju. — Hei-de recebê-lo, mas aviso desde já. Cuidar dele tornou-se um fardo. Cozinhar para o almoço e jantar. Preparar a mesa, levantar a mesa. Suportar-lhe os caprichos a que vocês o habituaram é coisa que nunca mais irei fazer.
O mundo está em permanente mudança. Muda em silêncio. Só o Tony é que não deu pela mudança. Está na dança de homem, onde tudo é permitido. No ar há maldade com sabor a néctar. Há uma flor envenenada em cada beijo. Tortura feita com doçura, gota a gota, na pedra dura. Não reparou ainda na minha vingança silenciosa, nem vê as leoas que o devoram deliciosamente. Ah, meu Tony Para as mulheres vives, pelas mulheres, morrerás.



— Se tivéssemos estudado mais, teríamos uma sorte diferente. Poderíamos ter a liberdade de escolher entre o amor e a carreira. Entre a cruz e o calvário. Entre o forno e a frigideira. Mas agora não temos nem uma coisa nem outra — digo eu.
 — Estudar mais na aldeia de onde eu venho? Para quê?—comenta a Saly com ar sarcástico. — Para contar o número de pássaros que debicam os grãos nos campos de arroz? Para contar os dentes que faltam na boca desdentada do homem velho que te dão como marido? 
— Oh, estudar é importante, nem que seja para ler a receita do médico, Saly — digo eu. 
— Nas nossas aldeias a vida é virgem, homem e mulher são gémeos da natureza, regidos pelo sol e pelas estações do ano—confirma a Mauá.—As pessoas estão perto de Deus. O hospital está a vinte quilómetros, a escola a quinze, não há estrada, nem emprego, nem perspectivas. As pessoas nunca viram um carro nem luz eléctrica. O mais importante é procriar. Quanto mais filhos, melhor, morrem uns tantos mas sobram outros para apoiar na velhice. Se eu fiz a sexta classe é porque a minha tia era professora e vivia perto da escola. 
—Vocês, as mulheres do sul, têm mais sorte — diz a Saly—Nas nossas aldeias as raparigas casam-se aos doze anos, mal terminam os ritos de iniciação. Desistem da escola na terceira classe e têm o primeiro filho antes dos quinze anos — conclui, numa voz de lamento. 
— Será que a escola não é importante? — pergunto à Saly 
— É, sim, e como é, meu Deus! É por isso que estou de novo a estudar. Quero falar bem português e escrever bem. Quero gerir bem o meu negócio. 


 — Na poligamia, as mulheres todas velam pelo seu homem, sabes disso — recorda-me a Ju. — Quando as esposas mais velhas se cansam, envelhecem, como nós, não pela idade, mas pelo uso, é preciso rejuvenescer o lar com sangue novo de uma virgem sensível como um ovo. Esta reunião me dói. Sempre acreditei que o amor é uma eternidade. Primeiro foi o Tony a quebrar as minhas crenças. Agora são estas abelhas, com os seus amores de um instante. Morderam o pólen e esvoaçam para outros ares, abandonando a flor que murcha. E elas dizem saber amar mais do que eu.



— Em matéria de presença, um marido polígamo é tal e qual um amante. É aquele que vem, aquele que vai, aquele de quem nunca se sabe quando parte e quando volta, é como a chuva, o marido polígamo. Mas é pior do que um amante. O marido polígamo é complicado, caprichoso, orgulhoso, preguiçoso. Senta-se no trono o dia inteiro e dita ordens como um rei. Depois de comer, banha-se, perfuma-se e parte. E nós sempre mendigas, de mão estendida, formamos um clube, reforçamos as nossas fraquezas e exigimos os nossos direitos. Estou a reivindicar direitos? Mas que direitos? O que é um marido polígamo senão um ser errante que se espalha pelo mundo, como uma nuvem, uma semente, uma pluma, um pedaço de ar? Por acaso pode-se exigir direitos ao vento?
—Qual vai ser o nosso fim, quando ele tiver a coluna quebrada, e de bengala na mão? — reclama a Ju. — As escalas serão mais prolongadas, um mês aqui, outro mês ali. Se a espera semanal é tão dolorosa, como será depois? O mais certo é ficar com apenas uma, e viver com as outras no pensamento. Qual de nós vai ser a sortuda, que vai herdar esse ferro-velho, quando a velhice chegar? Talvez a Rami, que é a primeira e a dona, com documentos de propriedade. Talvez a Saly Ou talvez a Mauá a quem ele ama tanto. Nós, as restantes, viveremos na solidão das solteironas e das viuvonas. Eu não quero ser nem solteirona nem viuvona. Em algum canto deste mundo há-de existir um homem só para mim.



Nós, mulheres, vivemos num poço silencioso e profundo e julgamos que o céu tem o diâmetro do nosso ponto de mira. Mas um dia descobrimos que as águas que nos cobrem têm a cor do céu. Os nossos sonhos crescem à altura das estrelas. Descobrimos que os gritos dos homens são o marulhar das ondas, não matam. E a grandeza dos homens simples coroa de pavão. Descobrimos que há coisas extraordinárias no mundo proibido que merecem ser provadas. Descobrimos que os lírios dos campos têm perfume divino e que o amor verdadeiro tem gosto de liberdade. Por isso voltamos a ser crianças.
E queremos tudo. O amor. A ilusão. O sonho. O cheiro da terra e o cheiro do mar num só perfume. A velhice e a infância no mesmo ponto. Procuramos em vão a juventude perdida. E procuramos salvar a vida que resta com garras de falcão. Gostamos de fazer poemas de estilo romântico. Receber cartinhas de amor. Ir às quermesses e subir à montanha-russa. Comer algodão doce e lamber sorvetes. Lançar o coração no mar de aventuras. Trocar beijos ao luar. Andar de mãos dadas à beira do mar com o homem amado e contar as estrelas do céu. 




— Deixa-me partir para um mundo onde não há mulher nenhuma, sem tentações, nem amores, nem filhos. Um mundo só de homens. Mas sei que esse mundo não ultrapassa as fronteiras da minha imaginação. Por isso vou para a casa da única mulher do mundo com amor sem igual: a minha mãe.
Hoje, quando fecho os olhos vejo como a vida me estrangulou. Teci sobre mim um manto de espinhos. Sangro. Vivi a vida inteira com uma espada aguçada encostada no pescoço. Não a vi. Fiz do amor um jogo suicida e os vossos choros me perseguem como fantasmas. Ter muitas mulheres não é ser macho, é ser pasto. Nem sei como esses filhos nasceram ou cresceram. Nunca acompanhei as mães à maternidade, nunca os peguei ao colo, são tantos que até lhes troco os nomes, nunca fui aos aniversários deles. Vocês todas juntas são leoas soltas na arena. Derrubaram-me, Rami. Acabaram comigo
— Ah, meu Tony não podes sofrer assim. Tu és apenas um palco, onde o teatro da vida corre. És uma praça onde desfilam tradições, culturas, princípios, tiranias. A poligamia é um sistema com filosofia de harmonia. Uma mulher parte para o lar, sabendo que não será a única. Levaste-me ao altar e fizeste um falso juramento. Assinaste uma lei contrária aos teus desejos. Entraste neste sistema desconhecendo as normas, traindo-me a mim e a todas as outras.


 A sua boca ressequida cola-se à minha num beijo divino. Ai, meu Deus, este beijo me enlouquece, me derrete, me transcende, nunca antes me dera um beijo assim. O abraço é forte e pressiona-me o ventre duro como uma pedra, palpitando de vida. 
— Rami, é um filho? 
Baixo o olhos. Chegou a minha vez de chorar. 
—Mas como, se... 
Não respondo, continuo no meu choro silencioso. 
— Diz que é meu, diz e salva-me.
Ruínas de uma família. A Lu, a desejada, partiu para os braços de outro com véu e grinalda. A Ju, a enganada, está loucamente apaixonada por um velho português cheio de dinheiro. A Saly a apetecida, enfeitiçou o padre italiano que até deixou a batina só por amor a ela. A Mauá, a amada, ama outro alguém. Só fiquei eu, a rainha, a principal, para lhe salvar a honra de macho. Todas elas vieram e pousaram no meu tecto, uma a uma, como aves de rapina. Agora levantaram voo uma atrás da outra. Todas amaram o meu homem, sugaram-lhe todo o mel e partiram. Agora está à beira do abismo. Treme, pede socorro. Meu Deus, eu sou poderosa, eu sinto que posso salvá-lo desta queda. Tenho nas mãos a fórmula mágica. Dizer sim e resgatá-lo. Dizer não e perdê-lo. Mas eu o perdi muito antes de o encontrar. Ignorou-me muito antes de me conhecer. 
— Não te posso salvar. Tento salvar-te mas não consigo, não tenho força, sou fraca, não existo, sou mulher. Os homens é que salvam as mulheres e não o contrário. 
— Rami! 
— O filho é do Levy!
Ele só vê o escuro e a chuva. Fica uns minutos intermináveis a contemplar o vazio. Era uma ilha de fogo no meio da água. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direcção ao coração do deserto, ao inferno sem fim.