terça-feira, 20 de abril de 2021

Súplica Final


 






Senhor: não peço mais que silêncio, 
o silêncio das noites de planície como enevoadas águas, 
o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras 
se afiam na friagem que é azul-celeste, 
o silêncio do sol encarquilhando as folhas, 
e o do vento na areia depois de ter passado, 
o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas, 
o silêncio das mãos e o dos olhos, 
e o das aves negras que pairam nas alturas 
de um céu silencioso e límpido. Não peço 
mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam no 
teto escorregadio da memória silente. 
E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros 
a preto e branco imagens desejadas 
que não pensei que desejava e esqueço 
ao querer lembrá-las. E o silêncio 
dos sexos que se possuem sem uma palavra. 
E o do amor também, tão silencioso esse, 
que não sei quem amo. 

Não peço mais. Afasta 
de mim o estrondo: não o das cidades, 
ou dos homens, das águas, do que estala 
na memória ou penumbra das salas desertas. 
Afasta de mim o estrondo com que a vida 
se acabará contigo, num rasgar de súbito 
em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo 
em que não ouvirei mais nada. O estrondo 
em que não mexerei um dedo. O estrondo 
em que serei desfeito. O estrondo 
em que de olhos abertos 
alguém mos fechará. 

Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo, 
o silêncio dos astros, o silêncio das coisas 
que outros homens fizeram, e o das coisas 
que eu próprio fiz. E o teu silêncio 
de senhor que foi. Não peço mais. 
Não é nada o que peço. Dá-me 
o silêncio. Dá-me o que não fui: 
silêncio (porque calei tanto): 
o que não sou (pois que calo tanto): 
o que hei de ser (já que falar não adianta): 
silêncio. 

Senhor: não peço mais.


Jorge de Sena 
in, peregrinato ad loca infecta






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