sexta-feira, 16 de abril de 2021

FLUVIOGRAFIA


 






Não se trata de viagem
com itinerário.
A espuma decifrada oculta ainda
um leito que jamais
renunciará
ao seu insuspeito modo de amar:
sugar lentamente
os dedos incautos
com que atestamos a frieza das águas.
Tudo o que esperámos
terminou cilindrado
sob o sigiloso motim
das horas reais,
e só assim se pôde encarar a paisagem
em que de facto estávamos
e de facto fingíamos.
As viagens só são belas
para quem não as faz.
Nós, munidos de trapos e
especiosas madeiras,
estremunhados de todos os dias,
mergulhámos no tenebroso e desidêntico
vocábulo da vida: isto.


5.


Que nenhum se aflija
da pulsação tremida com que o outro
filigrana o seu coração.
Como guitarra incerta
nos fossos do silêncio,
como voz coroada
no heroísmo de falhar.
Assim, e só assim, encontraremos
a nossa religião:
sem o escândalo de a cultivarmos. 


7.


Perdoas o medo como
quem se abstrai de uma agulha.
O soro flui pelos teus olhos
fechados,
ainda que reluzam,
absorve-se no teu sangue como 
um panfleto siciliano,
não viste,
não ouviste,
sanaste dentro de ti o cancro
que lentamente te soprará - dente de leão -
os cabelos. 


17.


Cambaleando pelo alcatrão que choveu,
o bêbado soletra
ao descaso os lábios confiscados pelo torpor.
As malhas da memória
distendem-se, abrindo túneis
por onde sopra o hálito feroz
do que subsiste adiado
e agora o semáforo parece
intermitir-lhe o aceno
de um quarto mais escuro, um álcool sem amanhã.
Ninguém nunca
adormeceu a sentir os pés. 



Vasco Gato
in, A Fábrica






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