Aviso-te, velhaca, mais uma vez:
mete-te com os da tua laia, ladra,
que me levaste da mesa os copos
por onde bebia e deixaste na alma
as cadeiras frias. Arrepende-te, Morte,
e devolve-me as veias, os amigos,
as sementes de papoila. Restitui-me o intacto
futuro da minha juventude, a fotografia
onde cabíamos todos e a minha solidão
era uma onda quebrada nas pedras de gelo.
Traz-me de volta o silêncio do Jaime,
o cheiro a serrim, traz-me o Leal e ainda
o Artur, com todas as músicas desse verão,
o nó da fortuna, de '89. Não te esqueças
também do Luís, deixou por contar
o resto da história. Nem do Joel,
o mais desgraçado rapaz,
que me confessou um dia haver morrido
sem nunca ter sido beijado.
Fazes-me isso, e perdoo-te o resto. Mas
se torno a ver-te a menos de quinze passos
dos meus - eu juro que te mato.
José Manuel Silva
in, Ulisses Já Não Mora Aqui
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