Paqarina Sagrada da Etnia Qanchi
- Para prosseguires com a tua aprendizagem - explicou a curandeira Mama Maru a Kantu - terás de entrar em contacto com os elementos que têm afinidade com a mulher: a Terra e a Água.
Terás de ter presente que uma mulher é capaz de fazer tudo o que quer, mas que, para o conseguir, tem primeiro de vencer o medo recorrendo à própria vontade.
A jovem discípula escutou com atenção as palavras da mestra, enquanto Mama Maru lhe mostrava uma porta escondida pela vegetação. Era uma estrutura de pedra completamente coberta por uma enorme rocha. Mama Maru fez pressão numa saliência da rocha e abriu uma cavidade que dava acesso a uma gruta.
- Este lugar é uma Paqarina, o útero da Terra em que a mulher terá de entrar se quiser renascer.
Antigamente, as Mulheres Serpente eram iniciadas precisamente aqui e, em lugar da casa em que agora vivemos, erguia-se o Templo Secreto de Amaru. Era o lugar em que se iniciavam as Grandes Mulheres do Tawantinsuyo, as Qoyakuna.
Quando chegaram os espanhóis, homens violentos e ignorantes, os nossos antepassados apagaram todos os vestígios que conduziam a este lugar. Não encontraram nada porque os Templos foram escondidos, e a única coisa que ficou foram estes nossos Santuários Subterrâneos. Foram muitas as Mestras que temperaram o seu carácter nestas galerias; estas terras e os templos sagrados do nosso povo estão impregnados da passagem e do espírito daquelas mulheres. Esta galeria tem a forma de uma serpente que rasteja sinuosamente, deixando a gruta na completa escuridão. Portanto, os teus olhos não vêem e os teus ouvidos não ouvem absolutamente nada. A prova consiste em ficares sozinha neste lugar até quando eu te disser para saíres. Tens aqui comida e água para vários dias e mantas para te aqueceres.
Aqui terás de aprender a temperar a tua vontade.
(...)
- Tens de saber, minha filha, que antigamente as Akllakuna seguiam estes ritos e que, mediante esta experiência, podiam entrar numa dimensão diferente, que lhes permitia compreenderem a própria essência das mulheres e conhecerem o poder que detinham e que deviam manter vivo no maior segredo; transmitiam-no apenas às mulheres que eram capazes de superar qualquer dificuldade.
Conserva este ensinamento dentro de ti. A mulher encerra dentro de si o Destino da Humanidade; é ela quem modela a raça humana, é ela quem cria. A mulher encarna o amor, e é mensageira da Pachamama, a nossa Mãe Divina que ama todas as coisas. A mulher é o canal da vida, governado por leis imperceptíveis motivadas pelo amor, ao qual depois também os homens acedem.
Minha filha, para além de saber que és uma mulher muito poderosa, terás de te comprometer a procurar no teu coração o Caminho que conduz à Pachamama. O mistério da existência é o mistério da tua própria alma; é por isso que para te conheceres terás de te aventurar pelo teu mundo interior, penetrar naquela zona desconhecida do teu Ser, encontrarás o teu Templo. Só assim poderás dar o teu contributo à realização da profecia segundo a qual neste ciclo cósmico o despertar do feminino permitirá curar as feridas infligidas à Mãe Natureza.
Dito isto, os Seres Luminosos desapareceram.
(...)
A última etapa da sua preparação ali na escuridão era aprender a ver com os olhos da alma.
A nossa luz interior pode guiar-nos pelo meio das trevas.
Mama Maru foi então buscar Kantu e disse-lhe:
- A partir deste momento, os olhos da alma vão guiar-te pela escuridão; poderás caminhar na noite mais escura e ver o que outras mulheres não vêem. O teu olhar interior permitir-te-á ver o desconhecido, mas lembra-te, assim que abrires os teus olhos fisiológicos, a janela da tua alma vai fechar-se. Quando quiseres voltar a ver com os olhos da alma, terás de fechar as pálpebras; só assim poderás usufruir desse tipo de visão.
(...)
- A prova que acabaste de superar durou vários dias e demonstrou a grande confiança que tens em ti mesma, confiança essa que te permitiu controlares o teu corpo e a tua mente. Se assim não fosse, terias saído dali a correr, ou então terias enlouquecido.
Mas, a tua aprendizagem não acaba aqui. Há outras provas que tens de enfrentar.
E lembra-te: a mulher que confia em si mesma e na sua energia interior, é uma mulher que vence em todas as situações.
(...)
Após vários dias de descanso, Mama Maru e Kantu foram para as montanhas, para a nascente do rio Vilcanota, a Mamaqocha, onde Kantu iria entrar em contacto com o elemento Água.
Naquele lugar existia uma cascata cuja água caía com muita força e escavou uma gruta.
As águas do rio provinham das neves do Ausengate e a tradição dizia que eram fontes de vida.
- Amanhã é dia de plenilúnio e a água da cascata descerá ainda com maior carga energética, sendo por isso o momento ideal para entrares em contacto com o elemento Água. - Disse Mama Maru.
Quando chegaram ao local, Mama Maru disse a Kantu:
- O passo seguinte para demonstrares que és uma verdadeira mulher consiste em, passares aqui nesta gruta três noites mas nunca poderás adormecer. Aqui descobrirás um outro aspecto da mulher. Nós mulheres estamos intimamente unidas à Terra e, de uma maneira ainda mais especial, à Água. A Água é o nosso elemento e é com ela que agora terás de te familiarizar. Procura ser forte, aconteça o que acontecer. E foi embora, deixando Kantu sozinha na gruta.
Kantu ouvia o rumorejar da água, e reflectiu sobre o que era ser mulher e descobriu que não existia uma resposta directa e precisa a uma pergunta tão lata. Sabia agora que fisicamente ela era fruto de uma base orgânica complexa que dava origem a uma determinada circunstância genética que, por fim, definiria a sua personalidade sexual e genital. Tinha reflectido muito sobre o facto de que, ser mulher era muito diferente de ser homem. Nestes três dias sem dormir iria aprender qual era a verdadeira essência feminina.
Era tão difícil definir o que era uma mulher.
Estava convencida de que a mulher é um ser humano completo e que a sua presença na Terra é guiada por desejos, sensações, sentimentos, emoções e ideias que a fazem assumir uma determinada atitude, uma determinada conduta perante a vida. Descobriu que uma parte muito poderosa do seu íntimo estava situada entre o coração e a zona do perineu: o sexo.
(...)
Nesta sociedade, a mulher é vista como um objecto decorativo, uma propriedade, uma mercadoria nas mãos dos homens, sejam eles maridos ou amantes. Através da televisão, da rádio, do cinema, das revistas, os vendedores de ilusões atribuem à mulher um valor meramente decorativo. Comprar um automóvel, um objecto, implica a excitação condicionada que passa pela mulher. A publicidade de muitos produtos, constatava Kantu, habitualmente serve-se da imagem de uma mulher que exibe os seus dotes e atributos físicos. O objectivo é sempre e unicamente o de suscitar nos consumidores a necessidade de consumir.
(...)
Na sua vida, Kantu apercebera-se que tinha assumido uma conduta diferente da que lhe correspondia. Como se duas pessoas diferentes vivessem dentro dela: a verdadeira Kantu, e a Kantu falsa que se mostrava aos outros. Este desdobramento afastara-a dos fins essenciais da vida, e sobretudo, despersonalizara-a de tal maneira que a impedia de se valorizar plenamente como mulher, com a agravante de a deixar numa enorme confusão. Este seu modo de agir não lhe permitia realizar-se plenamente como mulher. Para se conformar ao modelo que a sociedade lhe impunha, tivera de renunciar à honestidade para consigo mesma e à sua própria intimidade, provocando danos graves e quase irreparáveis.
Com o passar dos anos, aparecera no seu íntimo aquele temor de envelhecer típico das mulheres, que mais não era do que o fruto de uma visão infantil de si mesma. Agora, porém, conhecia o segredo para a conduzir a uma existência rica e para manter a própria vitalidade, mesmo quando já não fosse nova. A Vitalidade é a juventude da alma, é a aceitação de si mesma, a harmonia reencontrada.
(...)
A pouco e pouco, Kantu começou a entrar em contacto com os espíritos da Água.
Tinha de deixar-se ir e verter as suas lágrimas. É este o seu elemento.
Chorou compulsivamente, deitou fora toda a sua raiva, a sua impotência, a sua amargura, a sua tristeza, o seu sofrimento. As suas lágrimas uniram-se à água da cascata arrastando consigo todo o peso acumulado durante aqueles anos de solidão. Depois, ficou mais serena.
Começou a ouvir uma melodia harmoniosa que vinha da água e que lhe dizia:
- No dia em que te amares, conheceres e respeitares, vais descobrir que a Terra comunica contigo, que a Pachamama possui uma linguagem através da qual as montanhas te falam, os rios te murmuram, e as nascentes te aconselham. Então, ficarás a saber que perfazes um Todo Único com o Universo, que és como a Água que se expande. No dia em que te aceitares realmente, abrir-se-ão horizontes desconhecidos à tua frente e ouvirás uma música que jamais escutaste.
kantu sentia-se a pouco e pouco a fluir com as águas da cascata, aquela água que era ela mesma.
E a voz da Água continuou:
- A mulher é uma imensa variedade de encantos. O seu poder de seduzir os homens é enorme. Os seus olhos iluminam com uma luz misteriosa dominadora; o seu hálito tem o aroma das flores e a sua fascinante beleza é um convite à vida, ao amor. Ser mulher quer dizer encarnar num ser especial que é, simultaneamente, montanha, bosque, lago. Um Ser que dá origem à Vida. No seu corpo existem cumes nevados, falhas e vales através dos quais a água escorre entoando uma série de cânticos. Se és mulher, és companheira da natureza e o teu caminhar é uma peregrinação. Nasceste mulher para ensinares ao mundo que esteja mais próximo da Pachamama, porque tu és a expressão mais profunda do amor.
Mas lembra-te: também tu, tal como todos os outros elementos da natureza, podes ser portadora do amor ou do ódio, de discórdia. Do mesmo modo em que podes abrigar dentro de ti uma vegetação bela e abundante, montanhas majestosas e paisagens encantadoras, também podes albergar o deserto, a terra estéril, privada de vida.
Assim que compreendeu a mensagem das águas, Kantu tomou consciência de que estava unida a elas e que a Mulher e a Água, juntas, formam uma única entidade. A partir desse momento, a sua alma seria para sempre como a Água, musical e livre de se expandir para sempre no oceano da vida.
Hernán Huarache Mamani
in, A Profecia da Curandeira
NOTA 1 - Paqarina é um lugar de nascimento, renascimento ou de novo amanhecer.
NOTA 2 - Qoyakuna eram guardiãs dos conhecimentos sagrados, no Império Inca. Qoya significa "mulher que conhece a ciência sagrada, mulher que viu a face do Grande Espírito".
NOTA 3 - Mamaqocha é a Fonte Mãe, nome que designa a nascente de um rio.
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