sábado, 10 de agosto de 2019

Dia 281





Conta comigo sempre. Desde a sílaba inicial até à última gota 
de sangue. Venho do silêncio incerto do poema e sou, umas ve- 
zes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes equilíbrio, 
outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, re- 
cordo-me de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual 
consigo distinguir com clareza as flautas, os violinos, o oboé. 

O sonho é, e será sempre e apenas, dos vivos, dos que masti- 
gam o pão amadurecido da dúvida e a carne deslumbrada das 
pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos com 
uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se a- 
ninha no coração e se alimenta de amor, esse amor acima do 
desejo, bem acima do sofrimento. 

Conta comigo sempre. Piso as mesmas pedras que tu pisas, 
ergo-me da face da mesma moeda em que te reconheço, con- 
tigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir, con- 
tigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repar- 
tirei até o que é indivisível. 

Tu sabes onde estou. Sabes como me chamo. Estarei presente 
quando já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a ho- 
ra decisiva e não encontrares mais esperança, quando a tua 
antiga coragem vacilar. Caminharei a teu lado. 

Haverá decerto algumas flores derrubadas, 
mas haverá igualmente um sol lim- 
po que interrogará as tuas mãos e que te ajudará a encontrar, 
entre as respostas possíveis, as mais humildes, quero eu dizer, 
as mais sábias e as mais livres. 

Conta comigo. Sempre. 



Joaquim Pessoa
in, Ano Comum






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