quarta-feira, 26 de setembro de 2018

A SECRETA VIAGEM






No barco sem ninguém, anónimo e vazio, 
ficámos nós os dois, parados, de mão dada ... 
Como podem só os dois governar um navio? 
Melhor é desistir e não fazermos nada! 
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos, 
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa... 
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos... 
Por entre nossas mâos, o verde mar se escoa... 
Aparentes senhores de um barco abandonado, 
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... 
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado, 
se justifica, enflora, a secreta viagem! 
Agora sei que és tu quem me fora indicada. 
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos. 
- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada, 
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!


DAVID MOURÃO-FERREIRA
in, OBRA POÉTICA






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