Já passam 30 anos que fui ver o meu primeiro filme ao cinema. Não me recordo minimamente do filme, claro, até porque tenho muito poucas memórias de infância, e confesso que nunca mais o revi. Contudo, há dois dias esse fato voltou à minha memória e, curioso sobre quando teria sido, fui ver o bilhete, que ainda está guardado num álbum de fotografias.
O filme, esse, só poderia ser “A Espada era a Lei”, da Disney. Embora não me recordando do filme, nem da situação, e talvez apenas seja por mera sugestão de ouvir a minha mãe sempre dizer que foi esse o primeiro filme que eu vi no cinema, o mito de Excalibur e do Rei Artur é, para mim, e desde sempre, uma das mais fascinantes histórias. Hoje, depois de algumas revelações e percepções, compreendo melhor a minha ligação a esta história e o meu fascínio por espadas. A história do Rei Artur é magnífica e a lenda de como chegou a rei, ainda mais fascinante. Uma espada presa na rocha e na bigorna que apenas pode ser retirada pelo legítimo rei, cujo coração puro e nobre a permite libertar.
A espada é símbolo não só de poder, mas também de justiça. A espada de dois gumes permite cortar em ambas as direções, e por isso, ao mesmo tempo, tem o poder de criar e de destruir. Ela representa a aplicação da lei, discernindo e executando, estando por isso presente em muitos dos mitos e histórias que nos constroem enquanto sociedade.
Recordemo-nos da história do Rei Salomão e das duas mulheres que reclamavam um bebé para si, descrita na Bíblia (I Reis, 3: 16-28). Não havendo um entendimento, e tendo o rei sido chamado para resolver o diferendo, Salomão pediu que lhe trouxessem uma espada e mandou cortar a criança ao meio, ficando uma metade para cada mulher, mas a verdadeira mãe, não suportando ver o filho ser morto, em aflição prescindiu da sua criança para a outra mulher, que por sua vez afirmou ao rei para então cortar o menino, e assim não seria de nenhuma. Desta forma, Salomão soube quem era a verdadeira mãe e entregou-lhe a criança.
A espada é também um símbolo de coragem e de ação, ela representa a consciência que permite vencer as trevas do nosso Eu profundo, cortando e rompendo com o que não nos pertence. Contudo, se permitimos que essas trevas nos dominem, ela torna-se o instrumento da raiva, da dor, do sofrimento e da derrota, substituindo a sua nobreza pela violência da guerra. Por isso ela foi tão magistralmente inserida no Tarot, como naipe ligado ao lado mental, à inteligência e ao intelecto, materializando a sua energia simbólica num dos mais difíceis naipes do oráculo em termos de desafios. O naipe de espadas é o da mais pura e absoluta Verdade, aquela que só podemos ver com a visão para além da visão, a da intuição e da consciência.
O trabalho de construção da espada é também uma magnífica metáfora da sua simbologia. O metal, aquecido, batido contra o ferro e arrefecido, vezes sem conta, adquire uma consistência e uma dureza impressionantes. Pelo fogo e pela água molda-se o aço até adquirir resistência e forma. O fogo, que simboliza a vontade e a determinação, une-se à água, símbolo das emoções, para, num processo alquímico, trabalhar as moléculas e transformá-las numa liga resistente mas suficientemente flexível para que possa absorver o impacto de outros metais. Assim também em nós se aplica. Desprovidos da paixão e da emoção, a nossa mente, o nosso intelecto é um material aparentemente forte, mas que facilmente se irá deteriorar.
Por isso, muitas das questões ligadas a convicções e valores, o nosso lado racional a ser vivido, que em determinados momentos das nossas vidas compreendemos serem mais bloqueadores que impulsionadores, têm de ser trabalhados através da energia do indivíduo e, nomeadamente, das suas emoções, desmontando estruturas antigas e reequilibrando a mente, criando uma nova consciência de si e do mundo que o rodeia.
A espada é uma arma que exige treino e prática, dado que é de difícil manejamento, não só pelo seu peso, mas, principalmente, por ser longa e, portanto, uma extensão do próprio braço, sendo necessária grande destreza de movimentos e uma profunda intuição, uma verdadeira arte, como se escrevia e ensinava na idade média. Além disso, a espada tem de ter um perfeito equilíbrio entre a lâmina e o punho, para que não se solte da mão nem se desmantele. Contudo, se não soubermos usar a espada convenientemente, se não tivermos as capacidades necessárias, por falta de treino ou impulsividade, corremos o risco de ela ser uma arma contra nós mesmos, quer por desequilíbrio, caindo sobre nós, quer por se tornar um bloqueador dos nossos movimentos e da nossa defesa.
Assim também é a mente, manifestação física do elemento subtil do Ar, que alimenta e é alimentada pela impulsividade do elemento Fogo, que o consome rapidamente e desvia-nos da objectividade do nosso propósito. Contudo, se tivermos a consciência do nosso Eu, por trabalho e conhecimento das nossas diversas faces, o Fogo une-se à Água e dessa fusão somos inspirados pelas nossas emoções, confiando e focando a nossa mente em direcção à materialização do nosso propósito.
Por isso, quando ensino Tarot, o naipe de espadas só é falado depois do naipe de Paus (fogo) e do de Copas (água), exatamente nesta ordem. Só da compreensão e integração progressiva destas energias podemos materializar as questões e resoluções da nossa vida. O que muitas vezes fazemos é pensar demais, deixar a mente dominar a questão, quando, na realidade, precisamos primeiro de sentir, integrar e depois, conscientes do que estamos a viver, na paz que apenas a Verdade nos traz, conceber a forma de executar para, aí sim, aplicar e materializar. Não são processos fáceis, pelo contrário, muitas vezes são bem difíceis de contornar, pois a nossa primeira atitude é a de controlar, algo também que a mente faz prodigiosamente, ou amplificar os medos e as paranoias.
É este exato ensinamento que poderemos aceder ao compreendermos a dinâmica que está espelhada nos Arcanos Menores do Tarot, que são o reflexo das grandes energias do Universo contidas nos Arcanos Maiores, na vivência terrena. Quando trabalhamos as suas energias, estamos a tornar-nos merecedores de retirar, como o jovem Artur, a espada da rocha e da bigorna, pois aí sim somos reis, extraímos a Centelha Divina em nós, permitindo que a sabedoria da nossa alma se expresse na sua totalidade.
Uma nota final:
quando, em sonhos, Deus surgiu a Salomão, acabado de se tornar rei, e lhe disse “Pede o que queres que eu te dê”, ele respondeu “A teu servo, pois, dá um coração entendido para julgar o teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal”.
Este é o caminho da Sabedoria.
Leonardo Mansinhos
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