O vento - finalmente no fogo do dia - o vento do mundo
neste lugar aberto
escreve a inclinação dos jovens álamos na última colina
contra o céu para sempre novo e antigo.
As mãos do vento escrevem em verso ramos e folhas, pontos e traços,
a sombra da luz; encurvam para a esquerda e em cima
as hastes longas e breves: as vogais aéreas
da paisagem terrestre que teríamos esquecido.
É subitamente que o vês claramente visto
repetindo a imagem do tempo:
é uma caligrafia de acaso.
Mas é uma caligrafia minuciosa nítida;
inquieta e exacta;
ofuscante como a incriada perfeição das coisas.
Numa outra folha ou margem ou luz ou lugar do mundo
és tu agora. Levantas o vestido leve; os teus dedos
enrodilham-no, subindo-o numa onda irrepetível e
contudo, repetidas vezes sem conta.
As tuas mãos enquanto quase quase danças - embora
apenas andes sobre o imortal chão da casa -
sobem o pano
de algodão, apanham a bainha, colhem as asas do escasso
mar
que te cobria e
levam-nas até à linha irrevogável das ancas
como se fossem prender o vestido à levíssima ondulação
do mundo andante.
É como se uma onda no corpo abrisse lenta e fulminante
a incalculável praia ao esplendor em que cada coisa se diz
como se cantasse o nome do sem nome.
A curvatura daquelas hastes e a onda vertical que o teu gesto inventa
escrevem então a infindável passagem entre os separados mundos
e a isso só podemos chamar a alegria.
Manuel Gusmão
in,"Teatros do Tempo"
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