segunda-feira, 21 de março de 2022

Niketche — uma história de poligamia

 




Mulher é terra. 
Sem semear, sem regar, nada produz 
(Provérbio zambeziano) 




Niketche — Uma História De Poligamia,  é um livro da escritora moçambicana Paulina Chiziane, publicado em 2002. 
Ele discute o relacionamento polígamo e a submissão feminina na cultura africana. 

O título do livro refere-se a uma dança tradicional, dançada no ritual de iniciação sexual das meninas, praticada no norte de Moçambique. Essas aulas de iniciação, durante as férias da escola, iniciam aos 8 a 10 anos e encerram aos 13 anos.
Uma dança que a escritora própria define como a dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva (...) que imobiliza o corpo e faz a alma voar (p.160)  

Conta a história da narradora-personagem Rami, que se une às quatro amantes de seu marido, Tony, para formarem uma grande família. Desse modo, elas aceitam dividir o amor do mesmo homem.

Rami, casada há vinte anos com Tony, um alto funcionário da polícia, de quem tem 4 filhos, descobre que o partilha com várias mulheres, com as quais ele constituiu outras famílias, com um total de 16 filhos. O seu casamento, de «papel passado» e aliança no dedo, resume-se afinal a um irónico drama de que ela é apenas uma das personagens. 
Numa procura febril, Rami obriga-se a conhecer «as outras». 
O seu marido é um polígamo! 
Na via dolorosa que então começa, séculos de tradição e de costumes, a crueldade da vida e as diferenças abissais de cultura entre o norte e o sul da terra que é sua, esmagam-na. 
E só a sabedoria infinita que o sofrimento provoca lhe vai apontando o rumo num labirinto de emoções, de revelações, de contradições e perigosas ambiguidades. 
Por várias vezes, a Rami se olha ao espelho e mantém diálogos consigo própria, num processo de autodescoberta e evolução pessoal.


  1. Poligamia e monogamia, que significado assumem? 
  2. Cultura, institucionalização, hipocrisia, comodismo, convenção ou a condição natural de se ser humano, no quadro da inteligência e dos afetos? 

Paulina Chiziane estende-nos o fio de Ariadne e guia-nos com o desassombro, a perícia e a verdade de quem conhece o direito e o avesso da aventura de viver a vida. 

 "Niketche", dança de amor e erotismo, é um espelho em que nos vemos e revemos, mas no qual, seguramente, só alguns de nós admitirão refletir-se.
  
O livro é marcado pelo fluxo de consciência da personagem Rami, que analisa seu lugar de mulher na sociedade moçambicana do período pós-guerra civil, após o ano de 1992. 

Depois da Guerra da Independência, entre 1964 e 1975, houve a Guerra Civil entre 1977 e 1992, e após assinarem o Acordo Geral de Paz, em 1992, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) continuou sendo uma força política de oposição ao governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Apesar do cessar-fogo, os conflitos entre os integrantes desses dois partidos continuaram, de forma a ameaçar a paz. 
Portanto, é nesse contexto de instabilidade política e social que a narrativa Niketche — uma história de poligamia se desenvolve. 
Como outras obras do período pós-independência, este livro busca valorizar a diversidade cultural, de forma a mostrar que ela deve ser usada não para separar, mas para fomentar a união do país. 
      
As mulheres de Tony são de localidades moçambicanas como Matutuíne, Zambézia, Nampula e Cabo Delgado, mas a ação principal acontece no sul de Moçambique, na cidade de Maputo.
As mulheres protagonistas representam a pluralidade cultural das identidades geográficas de Moçambique enquanto que, o único protagonista masculino, Tony, representa a Nação na sua totalidade.

A diferença de tratamento entre as mulheres do Norte e as do Sul é neste livro descrita como o oposto uma da outra. As do Norte são partilhadas, e as do Sul são tratadas como gado e submetidas ao Lobolo, tradição polígama de tribos do Sul.
Lobolo, ou dote, é um pagamento feito pelo homem, à família da mulher, ao se casar. Mas, este casamento é apenas tradição e cultura, não tem vínculo legal. Apenas dá responsabilidades ao marido em relação à esposa e aos filhos. Ou seja, o homem tem de lobolar a mulher, que nada mais é do que cuidar e financiar tudo o que diga respeito à mulher e aos filhos.
Quando as mulheres ficam viúvas, elas ficam sem nada, a família do marido fica com tudo, rapam-lhes a cabeça, e é realizado o ritual Kutchinga, que é uma cerimónia de purificação sexual, em que são obrigadas a fazer sexo com o irmão mais velho do marido defunto e passam a ser sua propriedade.

A Rami era casada com o Tony, legalmente, e era lobolada pelo Tony.
As outras quatro, eram amantes em segredo, e não tinham direito a nada.
Por exigência da Rami, elas passaram a ser loboladas pelo Tony, ou seja, passaram a ter direito a serem cuidadas e financiadas pelo Tony, e os seus filhos passaram a ser reconhecidos como descendentes do Tony, mas não legalmente, apenas na tradição tribal.

No Norte a Poligamia é aceite e natural, e no Sul é praticada em segredo, devido à influência da religião católica do colonizador português, e também para não assumir responsabilidades, paternais e financeiras, com as outras mulheres.


"Em algumas regiões do norte de Moçambique, o amor é feito de partilhas. Partilha-se mulher com o amigo, com o visitante nobre, com o irmão de circuncisão. Esposa é água que se serve ao caminhante, ao visitante. A relação de amor é uma pegada na areia do mar que as ondas apagam. Mas deixa marcas. Uma só família pode ser um mosaico de cores e raças de acordo com o tipo de visitas que a família tem, porque mulher é fertilidade. É por isso que em muitas regiões os filhos recebem o apelido da mãe. Na reprodução humana, só a mãe é certa. No sul, a situação é bem outra. Só se entrega a mulher ao irmão de sangue ou de circuncisão quando o homem é estéril."

 

O romance tem uma clara mensagem para todas as mulheres serem "mais amigas , mais solidárias" para se unirem numa só força e lutar uma batalha comum de independência e de amor justo e leal. 
No entanto a autora que fala através da voz de Rami, declara abertamente ser contra a poligamia. 

As mulheres unidas nunca podem ser vencidas. 
A união que as mulheres representam no livro é a união nacional. 
Cada mulher tem a sua origem numa diferente área geográfica do país. 
As diferenças entre norte e sul estão expressadas ao longo das páginas com um certo tom de rivalidade sobretudo em relação ao homem nação. 


"O coração do meu Tony é uma constelação de cinco pontos. Um pentágono. Eu, Rami, sou a primeira dama, a rainha mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto de segunda dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de terceira dama. A Saly a apetecida, é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé, a amada, a caçulinha, recém-adquirida. O nosso lar é um polígono de seis pontos. É polígamo. Um hexágono amoroso."



A solução apresentada no final do livro é uma alternativa feminista ao sistema nacional de tipo patriarcal, em que as mulheres se libertam das tradições, se tornam financeiramente independentes dos homens, e têm a liberdade de escolher como querem viver as suas vidas e, com quem.

                 




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