O perigo dos espelhos é exporem-se os ossos.
A luz reflui através das omoplatas, distribui-se
pelos flancos, concentra-se nos pés.
Entramos na obscuridade com o fascínio
de um dom próprio.
Não possuímos um deus, mas duas mãos lisas
e uma boca de vidro - e uma voz
que vai morrer.
Fazer estalar a amnésia, pouco a pouco,
ou de um só golpe. Ninguém acorda
senão numa sala de pânico.
Levas o dedo à ferida: uma fechadura.
E, rodando o dedo, há por baixo
uma tulipa aberta,
decifrada.
Podias amar concretamente esta dolorosa,
solitária investigação dos interiores,
as malhas soltas da luz.
Porque o mundo é um contínuo acto de costura.
Rompemos com o mistério apenas para
que se teça um mais alto e apaixonante enigma.
Tudo o que nos fulmina, cresce devagar.
Entende-se que seja assim, trôpego, o existir?
Não, não temos uma súbita iluminação,
mas recantos e recantos, penumbras
- e uma voz exausta que vai morrer.
Vasco Gato
in, Contra Mim Falo
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