quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O Amor







 Deus - talvez esteja aqui, neste 
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que, 
de ti, em mim ficou. Está nos teus 
lábios, na tua voz, nos teus olhos, 
e talvez ande por entre os teus cabelos, 
ou nesses fios abstratos que desfolho, 
com os dedos da memória, quando os 
evoco. 

Existe: é o que sei quando 
me lembro de ti. Uma relação pode durar 
o que se quiser; será, no entanto, essa 
impressão divina que faz a sua permanência? Ou 
impõe-se devagar, como as coisas a que o 
tempo nos habitua, sem se dar por isso, com 
a pressão subtil da vida? 

Um deus não precisa do tempo para 
existir: nós, sim. E o tempo corre por entre 
estas ausências, mete-se no próprio 
instante em que estamos juntos, foge 
por entre as palavras que trocamos, eu 
e tu, para que um e outro as levemos 
connosco, e com elas o que somos, 
a ânsia efêmera dos corpos, o 
mais fundo desejo das almas. 

Aqui, um deus não vive sozinho, 
quando o amor nos junta. Desce dos confins 
da eternidade, abandona o mais remoto dos 
infinitos, e senta-se aos pés da cama, como 
um cão, ouvindo a música da noite. Um 
deus só existe enquanto o dia não chega; por 
isso adiamos a madrugada, para que não 
nos abandone, como se um deus 
não pudesse existir para lá do amor, ou 
o amor não se pudesse fazer sem um deus.


Nuno Júdice







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