Eu não parava de elogiar o livro. Afirmei que havia sido uma de minhas leituras mais desconcertantes, que vários trechos haviam mexido demais comigo, e minha amiga ali, de boca aberta, testemunhando meu entusiasmo. Eu estava de fato empolgada, tanto que, quando percebi a bobagem que estava fazendo, era tarde demais. "Me empresta?", ela perguntou.
Não que ela fosse do tipo que some com os livros da gente. É ajuizada, devolve. Mas aquele exemplar específico estava todo sublinhado. Eu havia destacado longos parágrafos, distribuído pontos de exclamação nas margens, feito anotações próprias acerca das ideias do autor. Ou seja, eu não havia lido o livro, eu havia me relacionado com ele. Intimamente. E isso iria parar nas mãos de uma pessoa com quem eu não tinha a mesma intimidade.
O vínculo que estabeleço com meus livros está longe de ser solene. Eu não só sublinho bastante (à caneta!), como dobro as pontas das páginas e anoto, no reverso branco das capas, coisas aleatórias que me passam pela cabeça durante a leitura: lembranças de sonhos, números de telefone, listas de tarefas, enfim, sou uma herege completa. Meus livros, minhas regras.
Empresto-os, fazer o quê, mas não é uma situação confortável. Se um nude meu vazasse, não me sentiria tão exposta.
Estou exagerando? Muito, é um cacoete. Sei que nada disso é uma tragédia. Foi o que eu disse a uma amiga, na vez em que a indiscreta fui eu: pedi emprestado um livro dela, sem saber que tínhamos o mesmo hábito. O livro revelava sua alma atormentada, marcada a esferográfica vermelha.
Tentei convencê-la: "fique tranquila, você acha que prestarei atenção no que você sublinhou?" Claro que prestei atenção nos sublinhados dela, ora. Fiz conjecturas. Especulações. Por que, santo Cristo, uma passagem violenta havia calado fundo em seu coração? Perdi a concentração na história, de tão envolvida que fiquei com os impactos que ela teve durante o decorrer da narrativa. Era justo com a pobrezinha?
Ter tido acesso a seus sublinhados foi um voyeurismo culposo, sem intenção de futricar, mas aconteceu, acidentalmente. É sempre acidental, o que não deixa de ser invasivo. Portanto, vida longa aos sebos. O primeiro proprietário do livro, se também era dado a rabiscos, terá seu anonimato protegido, o que é bem diferente de emprestar o livro para um conhecido e, ao recebê-lo de volta, ter que enfrentar aquele olhar cúmplice de quem gostaria de dizer, mas não diz: "eu sei o que perturbou você".
Por essas e outras, está lançada a campanha #compreseusproprioslivros. Ou, ainda mais importante: #frequentebibliotecas.
Assim, você fará a suprema gentileza de não se intrometer na mais fechada relação a dois.
Martha Medeiros
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