quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

ABU, O FILHO DE UM DEUS





Shabnan e Sayid fugiam de um país que cheirava a morte. Um país onde os corpos forrados de pó e lama mal se distinguem nos destroços dos prédios desmoronados. Esculturas de terracota a representar um exército de civis derrotados. Estátuas de argamassa, imóveis, de cor opaca, barrenta, suja. O morrer dos inocentes é sempre sujo.

E aquelas esculturas perdiam nomes, perdiam famílias, perdiam identidade. Nos jornais, nos ecrãs de televisão, os mortos da guerra eram apenas mortos, tão-somente isso. Mortos. Estatísticas.

Shabnan sabia o nome de algumas daquelas esculturas, como sabia o nome da mãe e do pai, dos irmãos, de outros professores como ela. Sayid, era engenheiro informático, conhecia o nome de outras tantas, como conhecia o nome dos irmãos, dos vizinhos, dos homens com quem que trabalhava no dia-a-dia. Para eles eram mais que esculturas alquebradas e anónimas - eram família, eram rostos escondidos debaixo da poalha pestilenta da guerra.

Morte. Era disso que fugiam, da matança que os deixava anónimos. Fugiam num barco de borracha, atulhados uns sobre os outros. Cinquenta onde deviam caber trinta, porque os olhos gulosos dos que se alimentam do sofrimento alheio, quiseram cobrar as muitas libras de cada um.

Oscilaram no Mediterrâneo por horas que pareciam não ter fim, com o frio a cortar-lhes o rosto como as lâminas da morte. Colocavam um manto sobre o corpo para se esconderem do mundo.
Shabnan ia grávida. Enjoava, vomitava para o mar. O marido cedia-lhe a sua ração de água, para limpar a boca, para não desidratar. Às escondidas dava-lhe pequenos troços de chocolate – precisava de se manter forte, que a barriga estava já bem saliente, cheia, nem dava para apertar o colete salva-vidas. Estava quase… transbordante. Melhor seria não pensar nisso.
A páginas tantas, o barco ia já desequilibrado e a costa europeia não aparecia no horizonte. Alguns corpos caíam às águas geladas. Agarravam-se a boias, câmaras-de-ar de pneus. Alguns desapareciam na escuridão por entre gritos. Afinal, quem morre no mar também fica anónimo.

Sayid agarrava a mulher como podia, lutava com os outros para ela não perder o espaço, para ela não cair às águas, para não ser esmagada. Os gritos sobrepunham-se, uns de raiva, outros de medo, outros de agonia. A noite cegava-os, os rostos não tinham forma, como as esculturas de terracota que tinham perecido em terra.

Eram cada vez mais os que caiam ao mar. Ele implorou na sua língua: está grávida, salvem-na! Mas a loucura da sobrevivência é surda.

Abraçados na água, agarrados ao bote como uma boia de salvação, rezavam ao seu Deus, por entre palavras de bem-querer. Talvez por intermédio de Deus, talvez pela força do amor, um raio de luz rasgou a noite como uma estrela - o milagre chegara. Uma naveta militar acercava-se para os resgatar.

A primeira ideia que guardam da Europa é assim um braço a resgatá-los do Mediterrâneo frio que começava a cheirar como o seu país; roupa e uma manta; uma caneca de leite bem quente; rostos amigos ao fim de muitos dias. Mas a primeira, a primeira de todas foi uma ideia de esperança, e a memória chorosa de todos os nomes que eram agora anónimos nos escombros de um país que ficava para trás, assim como nas águas sombrias do mar.

Depois rebentaram as águas, vieram as contrações, as dores. Não tinham casa. Sayid arranjou umas tábuas, umas cordas, uns oleados perdidos no campo de refugiados onde foram arrumados. Conseguiu montar uma tenda junto a um muro de arame farpado, e ali deitou Shabnan envolta em lágrimas. Logo acorreram outras mulheres. Tinham mãos, tinham rezas, tinham o saber dos anos, pouco mais. A jovem tinha apenas a dor do seu ventre que se abria para dar à luz. Nessa noite santa, nasceu o jovem Abu. Então uma grande luz brilhou sobre a terra inteira e anunciou aos Homens:
- Nasceu o filho de um Deus, pois toda a criança é o renovar da esperança num Salvador, seja qual for a raça ou credo, pois cada homem pode mudar a humanidade!



JOÃO MORGADO





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