Não herdamos apenas a cor dos olhos ou a casa de família. A nossa identidade e a forma como gerimos as emoções também são uma herança. Está inscrita não no nosso ADN, mas na memória e no inconsciente. Este legado molda-nos para sempre e, se não estivermos despertos para ele, podemos acabar a repetir padrões disfuncionais do passado e a viver traumas e ansiedades que não são nossas.
É mais ou menos evidente que o nosso pai, a nossa mãe, a relação que têm entre si e que têm connosco nos define para sempre. Mas nem sempre é muito óbvio como.
Podemos replicar os mesmos padrões ou podemos fugir deles. Mas há outras pessoas, relações, ideias e crenças que nos moldam: a forma como se falava de sexualidade em casa, as posições políticas e religiosas, o valor que se dava ao trabalho, ao dinheiro e à família, aquele tio que sempre nos apoiou ou uma avó cuja história de vida foi uma referência.
O puzzle que somos é quase infinito e torna-se impossível ter uma visão clara e completa de todas as influências recebidas.
As escolhas alargam-se quando há muitas referências, mas, mesmo assim, «escolha» nem sempre é a palavra certa. A herança emocional, na realidade, demonstra que somos um pouco menos livres do que pensamos.
A família – a primeira forma de sociedade com que contactamos, em que aprendemos as primeiras regras e sentimos os primeiros afetos – começa a moldar quem somos ainda antes de darmos os primeiros passos.
«A complexidade é grande», diz o psicólogo Vítor Rodrigues, mas os pais são centrais e uma base segura de onde partir e onde voltar.
Os que queiram deixar uma boa herança emocional aos filhos devem seguir os princípios básicos: «respeitar e amar, mostrar carinho, aceitação e interesse.»
Não é por acaso que, tradicionalmente, os psicoterapeutas lidam com muitas questões relacionadas com a família, com as recordações e emoções de infância. E que as questões mais abordadas são experiências que revelam carências de amor e de reconhecimento.
«Pessoas que se sentiram abandonadas e negligenciadas, comparadas e criticadas, que sentiram que os pais não gostavam delas, que eram agredidas, que se sentiam invisíveis ou um estorvo» são, de acordo com o psicólogo, alguns dos problemas mais frequentes.
Mafalda Nascimento, 24 anos, reconhece em si alguns padrões familiares: a avó foi mãe com 19 anos, a mãe com 17, ela aos 15. A depressão faz parte da vida das três. Depois, há coisas menos óbvias. O hábito de representar o papel de mãe com toda a gente, admite, talvez lhe venha da infância: a mãe tinha ataques de pânico durante a noite e era ela que a acompanhava ao hospital, sentia-se responsável.
Percebe também que moldou a sua relação afetiva por oposição à dos pais. «Eles praticamente não têm vida além do casamento e eu nunca quis isso para mim. Comecei por fazer a mesma coisa com o meu marido mas, quando me apercebi, mudei. Faço questão de contrariar essa tendência que me é natural.»
O puzzle já seria bastante complicado se a história se limitasse às influências educativas e emocionais parentais. Mas há quem defenda que esta não é a história toda, que a trama é mais longa e mais antiga.
Ao longo dos séculos houve várias abordagens a
fenómenos de repetição inconsciente. Freud falou na «alma coletiva da família», Carl Jung no «inconsciente coletivo», Moreno, o criador do psicodrama, no «co-inconsciente».
Mas foi a psicóloga francesa de origem russa
Anne Ancelin Schützenberger , já nos anos 1980, que estudou e batizou um
novo campo de estudo: a psicogenealogia ou psicologia transgeracional, que defende que os legados psicológicos familiares, nomeadamente
o trauma transgeracional, podem perpetuar-se durante sete gerações e não são apenas fruto da aprendizagem social.
«Observamos, por exemplo, que as lealdades inconscientes – as repetições de padrões, tanto positivos como negativos, por uma questão de amor e solidariedade – são mais evidentes com os avós do que com os pais», explica a psicóloga clínica e psicodramatista Manuela Maciel, que foi discípula de Anne Ancelin Schutzenberger.
Nesses casos, a influência ainda nos pode chegar pela voz dos avós ou através das histórias contadas pelos pais, mas o que dizer de patrões com antiguidade suficiente para não os conhecermos, pelo menos conscientemente?
Sabe-se que a transmissão transgeracional do trauma acontece, só não se sabe ainda exatamente como, sobretudo quando os eventos traumáticos não foram presenciados nem narrados ao paciente.
Na consulta de Manuela Maciel esteve recentemente uma paciente que lutava contra um enorme e persistente medo da morte e tinha crises frequentes de falta de ar. A sua bisavó materna, percebeu-o mais tarde, havia sido gaseada em Auschwitz.
A resposta para este mistério pode estar nos marcadores epigenéticos, que atuam como uma ponte entre o ambiente e os genes: não os alteram, mas ativam ou suprimem a sua expressão.
Os estudos recentes (2005) da investigadora
Rachel Yehuda, do Hospital Mont Sinai, em Nova Iorque, com descendentes de sobreviventes do Holocausto, parecem confirmá-lo. Já se sabia há décadas que este grupo sofria com mais frequência sintomas de stress pós- traumáticos, somatização e outras doenças mentais, mas o que os estudos-piloto de Rachel Yehuda trouxeram de novo foi a compreensão de que o trauma pode alterar os marcadores epigenéticos não só dos sobreviventes, mas também dos descendentes, até à terceira geração.
O trauma parece ficar «inscrito» nos nossos genes, o que pode explicar sintomas traumáticos de coisas que não foram vividas ou sequer sabidas.
Não há ainda uma explicação taxativa para alguns fenómenos defendidos pela psicogenealogia, nomeadamente, o chamado «síndroma do aniversário»: a repetição nas mesmas idades ou na mesma data de fenómenos ligados aos nossos antepassados.
Por isso, este campo de estudo não é ainda reconhecido e tem sido associado ao esoterismo. Manuela Maciel acredita que o problema está nas abordagens pouco consolidadas do ponto de vista intelectual, estatístico e teórico que têm sido feitas e refere que a Escola Internacional de Psicoterapia Transgeracional, da qual é vice-presidente, visa precisamente a formação e a investigação neste domínio.
Uma coisa têm, no entanto, em comum a psicogenealogia e a psicologia dita tradicional:
os segredos, os tabus e os silêncios são sempre uma má escolha. São esses esqueletos no armário que perpetuam as disfuncionalidades.
«Quanto mais informações tivermos sobre a nossa família e sobre nós melhor. Dá-nos mais hipótese de escolher a nossa própria identidade psicológica. A consciência liberta e o objetivo de qualquer psicoterapia é aumentar a consciência».
Os traumas familiares têm sobretudo que ver com a exclusão e com a injustiça e a psicogenealogia tem ferramentas próprias para tentar apurá-los, mas o processo também leva os próprios pacientes a investigarem as raízes familiares.
Ana, de 56 anos, procurou Manuela Maciel porque já sabia que tinha uma herança pesada do lado materno. Sabia-o porque a sua consciência estava já um pouco mais amplificada por ser psicóloga clínica.
A bisavó materna fora uma «enjeitada», um bebé abandonado à nascença. «Viveu amargurada por ter sido rejeitada pela mãe, que nunca conheceu. Passou esse trauma à minha avó, que o passou à minha mãe e que o passou a mim.»
As relações entre mães e filhas do lado materno sempre foram carregadas amargura e conflito. «Nunca vi a minha mãe como uma mãe e tinha muito medo dela.»
Quando teve uma filha viu-se a repetir os padrões que se arrastavam desde o tempo da bisavó e acabou por fazer psicoterapia para colocar um ponto final no assunto.
Foi à consulta com Manuela pelo que sabia, mas também acabou a descobrir o que não sabia e a dar um novo significado a um passado até aí incompreensível. Investigou a vida da avó paterna, sua mãe de coração, e foi com choque e surpresa que soube que ela tinha perdido dois filhos pequenos.
«Hoje percebo que a minha avó e o meu pai eram pessoas marcadas pelo luto. Isso teve um impacto na vida deles, até porque caso contrário não o teriam escondido.»
Mas descobriu que talvez também tenha tido um impacto na sua própria vida. Ajudou-a a dar significado ao terror que sentia nos primeiros anos de vida dos filhos: cada febre, cada virose e cada espirro eram um pavor. Como psicóloga, percebia que aquilo era mais do que ser apenas mãe-galinha.
«Vivi aterrorizada com medo de os perder. Agora entendo que isso teve que ver com a vivência da minha avó. Ela, que foi a minha figura de referência na infância, perdeu dois filhos. Hoje sei que a ansiedade que senti não era minha.»
Na nossa história pessoal, como na universal, o insuficiente conhecimento do futuro é uma inevitabilidade. Mas podemos – e devemos – conhecer o passado. Resgatar a memória, compreender origens e entender os porquês ajudam-nos a reconstruir a verdade e a dar um novo significado ao que sentimos e ao que somos hoje.
E saber muda sempre o rumo da nossa história.
Como se transmite a inteligência emocional
A psicóloga e investigadora Lara Palmeira publicou, em 2010, no âmbito da sua tese de mestrado, alguns estudos que mostram que um dos principais mecanismos de transmissão transgeracional das emoções negativas são as crenças erradas sobre elas.
«Em ambientes hostis, em que as emoções como a raiva ou a tristeza não podem ser expressas as crianças criam ideias negativas sobre as emoções que, mais tarde, vão perpetuar com os seus próprios filhos», explica a investigadora do Centro de Investigação do Núcleo de Estudos e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra.
E isto tem consequências: o sentimento de vergonha em relação a estas emoções aumenta a sintomatologia ansiosa e depressiva em crianças e jovens. Por essa razão – e porque mudar exige um esforço e intencionalidade –
a psicóloga defende a criação de programas clínicos que ajudem os pais a ser «treinadores de emoções».
«É importante que os pais ensinem aos filhos que as emoções são todas válidas e têm uma função: não há emoções boas e emoções más. A criança tem de perceber que pode sentir-se triste, com medo e irritada e que isso não é uma vergonha.»
As ferramentas da psicogenealogia
Para que se aumente a consciência da história familiar e das influências transgeracionais, a psicogenealogia usa sobretudo duas ferramentas:
o genosociograma, «uma árvore genealógica que inclui uma sociometria, para perceber qual é a rede social da pessoa dentro da família», e o
psicodrama, «que tem por objetivo conhecer a verdade da alma através da ação, porque as palavras não esgotam a psique e o teatro põe-na em ação», explica Manuela Maciel.
Sofia Teixeira