Estes últimos dias reli o
livro "Ignorância", de Milan Kundera, escrito em 2000, que fala sobre os emigrantes e a nostalgia, sentimento que ele define como
“o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar.”
A história passa-se no período da Guerra Fria, e em "A Ignorância",
Milan aborda directamente o problema da emigração do Leste europeu antes e após o terminus da Guerra Fria, em Novembro de 1989.
Os protagonistas, Josef e Irena, que estavam exilados, ele na Dinamarca e ela na França, encontram-se de forma inesperada no aeroporto de Paris, no momento em que estavam de visita à cidade natal: Praga.
Acontece que, depois de 20 anos fora do lugar, as lembranças do passado não eram muito precisas, as relações com os moradores do local e até a ideia de pátria estavam perdidas.
O que era para ser um retorno se transforma num conflito emocional e intenso para os protagonistas, que chegam à cidade a sentirem-se estrangeiros, quando na realidade são tratados normalmente.
Os moradores não demonstram interesse pelas suas histórias ou experiências, da mesma forma que eles não se sentem adaptados aos costumes e comportamentos daquele povo.
A minha família está toda emigrada nos EUA, e também eu vivo essa experiência, de uma forma diferente.
Eu não sou nada saudosista...acho que tudo tem um tempo na nossa vida, ciclos com um início e fim.
E por isso, não tenho saudades do que foi...não tenho necessidade de voltar a visitar o passado.
Sempre ouvi a minha família a falar destas mesmas coisas de que fala o livro.
E, por isso, foi especial ler este livro, quando o li pela primeira vez.
Como se me estivesse a ajudar a entendê-los melhor, conforme ia lendo o livro.
Cada um tem a sua forma de sentir a vida!
E há que respeitar e entender todas elas.
"Se um exilado, depois de vinte anos no estrangeiro, voltasse ao seu país natal ainda com cem anos de vida pela frente, certamente não sentiria a emoção de um Grande Retorno, é provável que para ele não se trataria absolutamente de um retorno, mas apenas de um dos muitos desvios no longo percurso da sua existência.
Pois a própria noção de pátria, no sentido nobre e sentimental da palavra, está ligada à brevidade relativa de nossa vida, que nos dá muito pouco tempo para que nos afeiçoemos a outros país, a outros países, a outras línguas."
Enquanto escreve sobre os sentimentos dos personagens, Kundera deixa claro o quanto somos ignorantes em relação ao que perdemos, ao que deixamos para trás e ao que nos entristece.
Fala de nostalgia, de memória, de anoranza – palavra espanhola de raiz etimológica latina do verbo ignorare – e que é utilizada como equivalente a nostalgia ou até saudade; um sofrimento causado pelas reminiscências do passado onde o pathos provém da ignorância:
“Tu estás longe, eu não sei o que te acontece”.
Logo, sofre-se.
Ele fala sobre
saudade, ausência, angústia, lembranças, passado, presente e futuro, e também demonstra o quanto as repercussões políticas podem intervir na individualidade de cada um.
Entra nas respectivas casas e caixinhas cerebrais de cada personagem, para analisar e dissecar todas as componentes emocionais que desencadeiam atitudes aparentemente incompreensíveis.
Fala-se, sobretudo, de
desenraizamento, de enfraquecimento dos vínculos sociais em relação ao local de origem, quando se trata de refugiados políticos.
O enfraquecimento, aliado ao crescimento das distâncias, que une o emigrado à terra onde nasceu e cresceu, faz esmorecer os laços familiares e está ligado a um certo ressentimento por parte de quem fica – salvo raríssimas excepções. Trata-se de uma consequência natural da perseguição às famílias dos emigrados por parte de um Estado que encarava o desejo de sair da terra natal como um acto de alta traição despoletando a frieza e o ressentimento por quem se sente deixado ao abandono.
Nas ligações de amizade, observa-se tanto a tentativa de apagar os anos de vida “lá fora” por parte que quem fica, como o desejo irreprimível e constantemente frustrado de relatar a própria odisseia por parte de quem regressa, ainda que esse regresso seja temporário.
A ausência de perguntas em relação aos anos passados fora do país é uma constante. Salvo uma única excepção.
No caso da camaradagem entre refugiados.
Em relação às ligações amorosas, mesmo situadas num passado longínquo, Milan Kundera cria uma interessante dicotomia, em relação ao binómio esquecimento/lembrança, particularmente nas recordações fugazes mas sempre presentes de Irena – imigrada em França – e nas diluidíssimas memórias de Josef ao reler o diário da sua adolescência…
" Imagino a emoção de dois seres que voltam a ver-se passados anos. Outrora frequentaram-se, e pensam por isso estar ligados pela mesma experiência, pelas mesmas recordações.
As mesmas recordações?
É aqui que o mal entendido começa: não têm as mesmas recordações; os dois guardam do passado duas ou três pequenas situações, mas cada um tem as suas; as suas recordações não são parecidas; não se encontram; e nem sequer quantitativamente são comparáveis; um recorda-se do outro mais do que o outro se recorda dele; primeiro porque a capacidade de memória difere de um indivíduo para o outro, mas também porque não têm a mesma importância um para o outro. Quando Irena viu Josef no aeroporto, lembrava-se de cada pormenor da aventura passada de ambos; Josef não se lembrava de nada. Desde o primeiro segundo, o seu encontro assentava numa desigualdade injusta e revoltante"
Tudo conspira para a destruição progressiva da vontade de voltar. Apesar do amor, da nostalgia dos lugares, da História, dos poetas, das sonoridades linguísticas, da literatura…
Logo no segundo capítulo, o Autor consegue cativar-nos com um mini-ensaio sobre a
nostalgia, palavra de origem grega, quase universal para a maior parte das línguas europeias. Mas as subtis declinações semânticas da palavra, desdobrada em outros signos equivalentes como por exemplo, saudade, são-nos dadas através de uma
análise transversal desses sinónimos, nos vários idiomas. É então que
chegamos ao conceito de ignorância como declinação de nostalgia. E ignorância é a palavra ou variante de nostalgia que melhor define a exacta coloração do estado de espírito de dois protagonistas de histórias gémeas que se cruzam num ponto de fuga, situado num passado distante: Irena e Josef.
"Em grego, regressar diz-se "nostos", "Algos" significa sofrimento.
A nostalgia é portanto o sofrimento causado pelo desejo insatisfeito de regressar. (...)
Anoranza, dizem os espanhóis, saudade dizem os portugueses.
Recordação dolorosa do país. Recordação dolorosa do lugar.
Em inglês diz-se "Homesickness", em alemão "Heimweh", em holandês "Heimwee".
Uma das mais antigas línguas europeias, o islandês, distingue bem dois termos: "Soknudur": nostalgia no sentido geral; e "Heimfra": recordação dolorosa do país.
Os checos, para além da palavra nostalgia, vinda do grego, têm também a palavra "Stesk" e o seu verbo; a mais comovente expressão de amor checa: "Styska se mi po tobe" - "Tenho nostalgia de ti; não posso suportar a dor da tua ausência.
Em espanhol "añorar" (ter nostalgia) vem do catalão "enyorar", derivado da palavra latina "ignorare" (ignorar). A esta luz etimológica, a nostalgia aparece como o sofrimento da ignorância. Tu estás longe e eu não sei o que te acontece. O meu país está longe, e eu não sei o que lá se passa.
Os franceses não têm palavra para nostalgia...dizem "je m'ennuie de toi"...demasiado ligeiro para um sentimento tão grave. Os alemães, raramente utilizam a palavra nostalgia na forma grega; preferem dizer "Sehnsucht", desejo do que está ausente, mas visa tanto o que foi como o que nunca foi, e por isso não implica necessariamente a ideia de um "nostos"...a obsessão de um regresso...
Foi na aurora da antiga cultura grega que nasceu "A Odisseia", a epopeia fundadora da Nostalgia.
Ulisses, o maior aventureiro de todos os tempos, é também o maior nostálgico. Foi sem grande prazer para a Guerra de Tróia, onde ficou 10 anos. Depois apressou-se a regressar à sua Ítaca natal, mas as intrigas dos Deuses prolongaram o seu périplo, primeiro por 3 anos recheados dos acontecimentos mais insólitos, depois por 7 outros anos que passou refém e amante da Deusa Calipso que, apaixonada, não o deixava partir da sua ilha, onde viveu uma verdadeira "dolce vita", vida confortável, vida de alegrias. No entanto, entre a "dolce vita" no estrangeiro e o arriscado regresso a casa, escolheu o regresso. À exploração apaixonada do desconhecido(a aventura), preferiu a apoteose do conhecido (o regresso). Ao infinito ( porque a aventura entende não findar mais), preferiu o fim ( porque o regresso é a reconciliação com a finitude da vida). "
As recorrentes citações à "Odisseia", de Homero, não surgem, portanto, ao acaso.
Ignorância é, pois, a irmã siamesa da saudade, ambas filhas da nostalgia…é este o tema do livro. Uma emoção a cujo desdobramento vamos assistir em dois seres que emigraram, tal como acontece em "A insustentável Leveza do Ser" entre Thomas e Sabina, embora este num prisma diferente: o custo de oportunidade relativamente à decisão de emigrar ou não emigrar.
É por este motivo que A Ignorância é, de certa forma, um desenvolvimento da obra anterior.
O Autor destaca também a
problemática da imprevisibilidade do rumo da História que se traduz num desconhecimento em relação ao futuro, ao exemplificar com as vãs pretensões de Arnold Schönberg à imortalidade, no sentido de permanência na memória colectiva não só do seu nome, mas, sobretudo, da sua música.
"Sobre o futuro, toda a gente se engana. O homem só pode estar certo do momento presente. Mas será bem verdade? O presente, poderá ele verdadeiramente conhecê-lo?Será capaz de o julgar? Claro que não. Porque, como poderia conhecer o sentido do presente quem não conhece o futuro? Se não sabemos a direcção a que futuro o presente nos leva, , como poderemos dizer que este presente é bom ou mau, que merece a nossa desconfiança ou o nosso ódio?"
" As discussões travadas nas altas esferas do espírito são sempre míopes perante o que, sem razão nem lógica, se passa em baixo: os dois grandes exércitos batem-se até à morte por causas sagradas; mas será uma minúscula bactéria de peste que os esmagará a ambos. Schonberg estava consciente da bactéria. Já em 1930, escrevia: "A rádio é um inimigo impiedoso...atafulha-nos de música sem se perguntar se temos vontade de a ouvir, se temos possibilidade de a perceber, de tal modo que a música se torna um simples ruído, um ruído entre outros ruídos. (...)
Se outrora se ouvia música por amor à música, hoje ela berra em toda a parte e sempre sem se perguntar se temos vontade de a ouvir. Berra nos altifalantes, nos automóveis, nos restaurantes, nos elevadores, nas ruas, nas salas de espera, nas salas de ginástica, música reescrita, abreviada, despedaçada, fragmentos de rock, de jazz, de ópera, vaga onde tudo se mistura sem que se saiba quem é o compositor ( a música transformada em ruído é anónima), sem que se distinga o princípio ou o fim ( a música transformada em ruído não conhece forma)."
A analogia do exílio de Josef com a viagem de Ulisses, presente nos sentimentos de frustração de Odisseu, torna-se por demais evidente para o protagonista.
A propósito de Josef, o protagonista masculino de A Ignorância, o autor/narrador disserta ainda sobre a forma de amar de um Ulisses de origem checa: o amor que dedica a Penélope e o amor que o retém junto de Calipso, num refúgio idílico. Narrador e Josef não hesitam em valorizar a segunda, apesar da tradição colocar a primeira num pedestal.
Irena é ainda mais difícil de desiludir, devido ao seu passado familiar. Mas é simultaneamente mais vulnerável, por perseguir uma lembrança…fugaz como uma miragem.
A nostalgia, sob a forma de ignorância, no caso de Irena e, também, um pouco em Josef (embora este seja menos fácil de iludir por estereótipos) é, sobretudo, induzida pela sociedade ocidental e pelos clichés que fazem parte do imaginário colectivo e que não comportam casos específicos como o destas personagens. Dois Ulisses nos tempos modernos, para os quais a deturpação da realidade é, também, dada pelo carácter selectivo da memória, pela reconstrução dessa mesma realidade com o objectivo de dar, aos elementos seleccionados, um enquadramento, dotando-os de um sentido fictício…
Mas enquanto que, para Josef, o local escolhido para viver se revestiu de referências positivas, que lhe permitiram distanciar-se ainda mais de um passado do qual não colheu, praticamente, boas recordações, para Irena a vida no Ocidente não foi fácil.
Sobretudo depois de enviuvar.
Acompanha-a, sempre, uma nota de insatisfação, em relação à vida afectiva o que a leva a perseguir uma imagem, cristalizada num passado remoto.
As componentes emocionais como a solidariedade/rivalidade entre irmãos, ambições e conflitos entre cunhados, competição e desejo de domínio numa relação mãe-filha, aliada a uma sede irreprimível de libertação – seja através da fuga, seja através de um amor ideal, utópico, imaginado, construído, se quisermos –, são alguns dos ingredientes que vêm enriquecer uma obra de volume diminuto, mas de conteúdo inesgotável.
"A Ignorância", apresenta uma ideia cruel:
para o desterrado, não existe a "grande volta".
O exílio é uma doença sem cura,
que quase nunca ela bane o indivíduo apenas da terra.
Pode fazer isso em relação a todas as dimensões
que importam na vida.
Existirá o "grande regresso"?
É possível retomar a vida interrompida?
Em certa passagem, Josef duvida que Ulisses tenha sido feliz com sua escolha.
Há felicidade no que pode acabar?
E, se a marcha inexorável da vida aponta para o fim, a condição de existir terá sentido?
Nem Josef nem Irena se realizam com o regresso porque ele explicita-lhes ainda a sua irreversível condição de estrangeiro.
Na França, ninguém aceita que a exilada não tenha desejado correr para Praga no dia seguinte à revolução; no seu país, as suas amigas não a reconhecem mais como tcheca.
Josef não fica à vontade na terra natal. Mal vê a hora de retornar para a Dinamarca.
Antes de tudo, é preciso preparar-se para conhecer a natureza da dor.