Sofrerão as elites portuguesas
da síndrome de Crime e Castigo?
Sentir-se-ão, como a personagem de Dostoiévski,
criaturas acima da lei?
Dir-se-á que dos honestos não ouvimos falar. Que todos os dias uma legião de honrados empresários, banqueiros e políticos se levanta (cedo) e se dirige aos respectivos gabinetes para cumprir, discreta e diligentemente, as suas obrigações profissionais, no mais rigoroso respeito pelas normas vigentes.
Labirinto, Furacão, Face Oculta parecem títulos de histórias de ficção. Monte Branco, Portucale, Marquês, Freeport, Submarinos, Remédio Santo transportam-nos, talvez com intenção, para realidades improváveis.
Mas de repente, tal como o triunfo do delírio na mente de um louco, sentimos o mundo ser engolido pelo submundo. E se fosse verdade?
As notícias falam de burla, fraude fiscal, prevaricação, corrupção, branqueamento de capitais, falsificação de assinaturas, tráfico de influências, abuso de confiança, associação criminosa, envolvendo um número cada vez maior de figuras da política, da economia, das finanças, não raro aliadas nos mesmos casos e escândalos.
E se fosse verdade que não escapa ninguém? Se se confirmasse que, quando são atingidos os mais altos níveis do poder e dos negócios, o incumprimento da lei é ele próprio a lei?
É apenas uma hipótese, mas o número de casos, e a sua dimensão, autoriza-a. A esta e a outras, igualmente preocupantes: será possível, em Portugal, enriquecer sem atropelar a lei? Podem lançar-se grandes empreendimentos cumprindo todas as regras? Ou isso tornaria tudo mais difícil, ou mesmo impossível? As leis são feitas para os pobres e a classe média? Quem quer agir a alto nível, nos negócios, na política, sente-se acima da lei? Está realmente acima da lei? É enorme a quantidade dos líderes governamentais, autárquicos, empresariais, que acabam desmascarados por terem usado meios ilícitos durante a sua carreira. Geralmente juram a sua inocência e boa-fé. Ou alegam que, se atropelaram a lei, foi em nome do bem comum. Foi para ultrapassar obstáculos e burocracias. Será verdade? Será que a lei não está feita para os empreendedores? É um factor de bloqueio, eventualmente herdado dos ideais igualitários da revolução?
Mesmo que estas hipóteses não sejam fáceis de provar, uma outra, pelo menos, deve ser quantificável pelos cientistas sociais: a percepção dos próprios fenómenos. Ou seja, ainda que os poderosos não sejam todos prevaricadores, a sociedade percepciona-os como tal.
Paulo Machado vem ter comigo ao bar do pátio da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde é professor e investigador. Como sociólogo, especialista em Demografia e, entre outras áreas, a de Sociologia Criminal, deve ter algo a dizer sobre tudo isto.
A sociedade olha para as elites com desconfiança? Se sim, desde quando?
Desde sempre. Esse é um primeiro dado. “No Estado Novo, havia a ideia de que Salazar era impoluto. O Marcelo Caetano também. Mas não as elites abaixo deles. Sobre esses, as pessoas tinham a convicção de que se apropriavam do que não era seu. De que muitos militares, por exemplo, enriqueceram com a guerra colonial. E o aparelho do regime era realmente corrupto, ainda que o chefe o não fosse”.
Após o 25 de Abril de 1974, terá havido um pequeno interregno nesta atitude, apesar do caso dos 150 mil contos que Sá Carneiro teria desviado, ou o de Mário Soares com os diamantes angolanos, relatados nos grafitti das paredes de Lisboa. Mas acreditou-se que tudo mudaria. Só até 1986. Com a entrada na Comunidade Europeia, voltaram as suspeitas. Os fundos comunitários deram nova oportunidade aos corruptos. Dinheiro que foi atribuído a formação ou infra-estruturas acabou nos bolsos errados. “Autarcas, políticos, professores chegaram a ser condenados. Houve vários ciclos, da construção de obras públicas, estradas, estruturas de saneamento, habitação social. As sondagens, desde 1990, dizem-nos que os portugueses colocam os políticos nos níveis mais baixos da escala do prestígio. As pessoas viam que o seu presidente de Junta era dantes um homem pobre, e agora aparecia com vários carros, etc. E tiravam conclusões”.
A corrupção dos poderosos é portanto encarada como normal, o que já implica alguma condescendência. Mas o acumular recente de casos mediáticos pode ter criado outro fenómeno: a sensação de que os criminosos tomaram as rédeas da sociedade. O submundo do crime é algo que as comunidades “saudáveis” mantêm circunscrito e controlado, graças à confiança nas regras, na coesão, nas autoridades, através dos sistemas policial e judicial. Por seu lado, a qualidade das elites, nas suas funções referencial e protectora, influencia o sentimento de estabilidade social.
Em termos sociológicos, que consequências teria a constatação de que o submundo do crime e a esfera das elites podem coincidir?
Para Paulo Machado, a principal consequência pode ser o “abatimento cívico”, traduzido num “comportamento disruptivo”. As pessoas perdem o interesse, deixam de participar. “Nas repartições de Finanças, ouve-se dizer: ‘Eu fui estúpido, devia ter feito como fulano’. Há sintomas de fragmentação social. Por exemplo, temos, em Portugal, dos mais baixos níveis de criminalidade do mundo. No entanto, o número de participações à polícia dos crimes existentes é dos mais baixos. E o índice de sentimento de insegurança, aferido através de sondagens, é dos mais elevados da Europa. As pessoas não confiam nas instituições”.
Mas que realidade está por trás desta percepção? Vejamos o mundo empresarial e financeiro. Será verdade que quem se move nos seus altos meandros não cumpre regras?
Fátima Gomes, professora, na faculdade de Direito da Universidade Católica em Lisboa, de Direito Comercial e Direito do Mercado de Capitais, fala de “excessiva complexidade das regras” e de “interpretações inventivas da lei”, para explicar certos comportamentos das empresas. “A regulamentação tornou-se pesadíssima, principalmente para as empresas das áreas financeiras. Há as normas muito pormenorizadas da União Europeia, as do Banco de Portugal, da European Banking Authority, da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). As empresas têm de cumprir todas, a complexidade é crescente. Implica produzir e fornecer informação em duplicado ou triplicado, e todas essas obrigações têm custos. Por isso as empresas tentam resistir ao cumprimento. Só cumprem se houver fiscalização. Se não, optam por não cumprir. Fica mais barato”.
A complexidade e exigência das regras variam, consoante se trate de empresas grandes ou pequenas, nacionais ou multinacionais, cotadas ou não em bolsa. Mas tendem a ser maiores no caso das grandes empresas, que são também as que têm meios mais eficazes para contornar esses obstáculos.
Nessas empresas, “os gestores estão devidamente assessorados por bons juristas, que dominam as regras. Têm duas opções: ou se mantêm dentro da legalidade, ou ajudam o gestor a encontrar caminhos alternativos”.
Que não são necessariamente os do crime. “Pode ser apenas um desvio da norma, o que constitui um acto ilícito, não criminoso. Se forem apanhados, incorrem em coimas, ou responsabilidade civil. Mas pode compensar. Muitas vezes, o gestor opta pelo ilícito”.
Porque, segundo Fátima Gomes, ele não pensa como um jurista. Há uma diferença cultural. “Os gestores não pensam dentro do quadro. Eles marcam objectivos, e traçam o caminho para lá chegar. Por vezes são muito criativos. Se a lei é um obstáculo, fazem as suas opções políticas, que, nesse sentido, são legítimas”.
Muitas vezes, os gestores têm de “optar entre uma perspectiva de rentabilização da empresa, e uma perspectiva ética. Esta última pode também vir a revelar-se útil. As empresas cotadas em bolsa são obrigadas a fazer relatórios pormenorizados sobre as suas actividades, onde incluem, por exemplo, actos de responsabilidade social. Essas questões podem valorizar ou desvalorizar as acções. Se se trata de uma indústria poluidora, por exemplo, e a empresa desenvolver iniciativas ecológicas, os consumidores agradecem, e é provável que venham a ter maior disponibilidade para consumir produtos dessa empresa. Construir uma imagem de prestígio serve também para captar novos recursos financeiros, que podem ser uma alternativa ao crédito bancário”.
Nalgumas grandes empresas, este tipo de preocupações, que incluem actuar dentro das regras, sobrepõe-se aos benefícios imediatos do incumprimento das leis. Mas quando a supervisão não funciona, pode ser ainda mais tentador optar pelo ilícito, mantendo ao mesmo tempo campanhas de imagem junto do público.
Há várias instâncias de supervisão, que porém falham com frequência, precisamente, segundo Fátima Gomes, pela sua multiplicidade e sobreposição de competências. “Há áreas de sombra nas competências da CMVM, o Banco de Portugal, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Foi o que aconteceu no caso do papel comercial do BES. A CMVM diz que, no tempo em que ele foi colocado à venda, não era da sua responsabilidade. O Banco de Portugal diz o mesmo. Apontam o dedo uns aos outros, apesar de existir um Conselho Nacional de Supervisores”.
Para Rui Teixeira Santos, especialista em Direito Comercial, doutorado com uma tese sobre Economia Política da Corrupção, o problema dos supervisores é outro. Eles “são verdadeiros ministérios da União Europeia nos vários países. Reportam às entidades reguladoras a nível europeu, que são dirigidas por personalidades ligadas à indústria. A CMVM e outras entidades reguladoras estão sequestradas pelos interesses, pelos lobbys europeus”.
Quer dizer, a pretexto de manterem independência em relação ao Estado, os supervisores e reguladores são cúmplices dos interesses das grandes empresas financeiras. Que agem com grande liberdade, à revelia das normas impostas pelos estados. E nisto não há grande diferença entre Portugal e outros países, mesmo naqueles onde o índice de corrupção é teoricamente menor.
“A percepção que as pessoas têm da corrupção é a da que se verifica a um nível mais baixo, nos serviços, na Saúde, no Fisco. A esse nível, na Alemanha, por exemplo, quase não há corrupção. Mas nos grandes negócios existe, tal como cá. Não é tão denunciada porque, lá, o bloco central é mais coeso”.
Rui Teixeira Santos, que hoje é responsável pelo serviço de Estudos, Planeamento e Auditoria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, explica este caos, de certo modo inevitável, com a própria natureza do Direito Comercial. É um ramo do direito que se “fundamenta na boa fé. Nasceu para facilitar os negócios. Não para proteger os incautos, como o Direito Civil”. O Direito Comercial, desde a sua origem, no século XIX, em França, baseia-se na confiança, e nas ideias de honra e reputação dos comerciantes. Não existe para nos defender dos abusos de certos protagonistas económicos. “Defende o princípio geral da liberdade, desde que não viole a lei e os bons costumes”.
No século XIX, o único inimigo dos homens de negócios é o Estado, que se agigantou, e se tornou numa máquina devoradora de impostos. “A contabilidade das empresas foi criada para isso, para exercer o controlo necessário à cobrança de impostos. Não serve para mais nada”.
No entanto, a partir de finais do século XIX, o Estado torna-se concessionário. Dá os grandes negócios e os monopólios naturais (caminhos-de-ferro, água) aos privados, que passam a depender dessas rendas. É o início da promiscuidade.
Segundo Fátima Gomes, outro motivo da impunidade das grandes empresas é a incapacidade dos tribunais para actuarem em áreas onde lhes falta competência técnica. “Se compararmos o número de investigações e recolha de dados feitos pela CMVM para o Ministério Público sobre comportamentos duvidosos de empresas e o número de condenações em tribunal, verificamos que há uma enorme discrepância”.
Os processos chegam bem instruídos às mãos do juiz, que, no entanto, não consegue entendê-los ao ponto de extrair provas. “São áreas muito complexas, e os juízes não têm preparação. Até há muito pouco tempo, não havia qualquer especialização, e os casos iam parar aos tribunais de hierarquia mais baixa. Um juiz podia ter de julgar um caso de fraude financeira de uma grande empresa ou um banco, e a seguir, na mesma manhã, julgar outro, de um homem que conduzia sob o efeito do álcool. Na prática, o magistrado concluía quase sempre, no caso da fraude, que não havia provas, optando pela absolvição. A sua inaptidão funciona sempre a favor do arguido”.
Só há cerca de um ano foi criado o tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, e outros especializados, como o da Propriedade Intelectual. Mas os juízes continuam a não ter tempo para estudar devidamente os casos, além de estarem desmotivados por baixos salários e más condições de trabalho.
Em contrapartida, os advogados das grandes empresas não se podem queixar. São bons e fazem-se pagar bem, por esta ordem ou a inversa, e colocam-se no topo da “cadeia alimentar” do sistema jurídico. Têm tanto mais poder, quanto mais esse sistema é complexo, e são por isso os principais interessados em manter essa mesma complexidade.
Ao ponto de serem eles próprios a fazerem as leis, que lhes permitem manter uma posição de poder.
Paulo de Morais, ex-vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, protagonista de uma cruzada pública contra a corrupção em Portugal, e actual candidato à Presidência da República, dá exemplos concretos. A sociedade de advogados Sérvulo & Associados, de Sérvulo Correia, foi autora do projecto do Código de Contratos Públicos, a pedido do ministro das Finanças do governo socialista Fernando Teixeira dos Santos (serviço pelo qual recebeu honorários no valor de 500 mil euros, segundo o livro Os Facilitadores, de Gustavo Sampaio). Não obstante, a mesma firma tem dado pareceres sobre o mesmo código e representado clientes que obtêm contratos de ajuste directo com o Estado, ao abrigo do mesmo código. Noutros casos, tem defendido as entidades públicas contra as queixas que surgem sobre irregularidades nos contratos públicos, regulados pelo mesmo código. Noutros casos ainda, tem defendido grupos económicos, contra o Estado, em processos relacionados com o mesmo código. Em toda esta actividade, já facturou mais de 8 milhões de euros.
Ou seja, há sociedades de advogados que ganham dinheiro fazendo leis com a aplicação das quais vão fazer mais dinheiro, dando pelo caminho dinheiro a ganhar a várias clientelas.
“É claro que estes advogados introduzem nas próprias leis que fazem os alçapões que lhes vão permitir mais tarde facilitar certo tipo de negócios”, diz Paulo de Morais às 11 da noite no lobby de um hotel em Lisboa, onde vai realizar acções de campanha eleitoral. Por ter afirmado algo idêntico anteriormente, foi processado por Sérvulo Correia, mas absolvido em tribunal.
“São os advogados que urdem a teia de intimidade entre a política e os negócios. São o principal instrumento dessa promiscuidade”. Na prática, o sistema funciona através da complexidade das leis. São muitas e complicadas, com muitas regras e muitas excepções, para que, quem está por dentro, as possa manipular à vontade.
O excesso de leis permite a arbitrariedade, e no meio da confusão saem sempre beneficiados os grandes grupos económicos, cujo poder real está, de facto, acima da lei, explica Paulo de Morais. E não há nenhuma instância que nos defenda disso.
“Segundo a Lei da Publicidade, é proibido usar crianças em anúncios, excepto quando se trata de produtos para crianças. Ora isso é violado todos os dias. E o Instituto de Defesa do Consumidor não faz nada, porque é cúmplice, devido à promiscuidade entre negócios e política. O seu último director, José Manuel Ribeiro (hoje presidente da Câmara de Valongo), tentou intervir, e foi para a rua”. Ao não intervir onde seria da sua competência fazê-lo, o IDC “incorre eventualmente no crime de prevaricação”, disse, exactamente com estas palavras, Paulo de Morais, que não pode perder tempo com mais processos judiciais.
O Estado não se impõe, porque está, ele próprio, tomado pelos interesses privados, diz Morais. Através das concessões dos serviços públicos e de bens essenciais, “os grandes grupos económicos tornaram-se rentistas. As auto-estradas, a electricidade, o saneamento funcionam através de PPP (parcerias público-privadas), que representam uma forma de feudalismo. Na Idade Média era a agricultura da gleba, a terra, hoje são os bens essenciais. A classe média são os servos”.
As PPP não são um fenómeno apenas português. “Foram criadas, na Europa, pela Terceira Via, que tentou criar uma espécie de socialismo de estado, dentro do capitalismo. Mas em Portugal é mais grave devido à maior promiscuidade entre empresários e políticos. Quando se entra no nível de topo, a própria lei é feita para proteger os grupos económicos, quando se trata de negócios que dependem do Estado. Há um intenso tráfico de influências. Todas as grandes empresas têm políticos, ou ex-políticos nos seus Conselhos de Administração”.
Em suma: no mundo dos grandes negócios, a lei não é respeitada. Serve apenas para criar uma espécie de pântano, propício à actividade de um exército de advogados, mediadores, facilitadores, lobbyistas. É com eles que se consegue tudo. Sem eles, num ambiente em que os conhecimentos pessoais e os favores valem mais do que a lei, não se consegue nada.
Artur Pereira é lobbyista profissional. Só não o tem escrito no cartão de visita porque a actividade não é reconhecida oficialmente. Recebe-me no seu escritório, em frente ao El Corte Inglés, em Lisboa.
“Porque é que tantos ex-políticos são CEO de grandes empresas?
Para facilitar. Estabelecer os contactos”, explica Artur Pereira. Todos os negócios funcionam assim, e não seriam possíveis de outra forma. Os intermediários são úteis, e estão sempre presentes, nos altos círculos. “Há um conjunto de pessoas que vive disso. E há locais públicos, restaurantes, onde todos se encontram: políticos, ex-políticos, gente do mundo empresarial e económico, facilitadores, lobbyistas. Não há refeições grátis, e o prato principal, nesses encontros, é discutir como alguém pode fazer publicar determinada lei ou decreto, ou decisão política”.
Nesses restaurantes, como o Gambrinus ou o Solar dos Presuntos, os protagonistas são apresentados uns aos outros, os casos são explicados, com os respectivos argumentários e quantificação de vantagens e desvantagens de vários tipos, para os vários intervenientes.
“O cliente que quer realizar um determinado projecto pode dizer ao facilitador: ‘Estou disposto a gastar um milhão. Utilize como quiser’. Ele só quer saber do resultado, não dos métodos usados. Mas também há clientes que já propõem o acto de corrupção. Querem comprar a decisão de determinado político. A partir daí, o facilitador move-se na sombra, mobiliza os seus contactos, usa a corrupção, o tráfico de influências. Nos antros apropriados, diz: ‘Tenho uns amigos que têm o projecto tal…’ Se já tem confiança com o político, pode propor directamente: ‘O projecto é este, vamos ganhar alguma coisa para nós’. É um processo secreto, difícil de controlar”.
Segundo Artur Pereira, não tem de ser assim. A actividade de lobbying não é necessariamente ilegítima, e pode ser feita com ética. “O lobbying bem feito não é pressão. Apresenta os assuntos com um bom dossier de argumentos. Sensibiliza e convence”.
Nesse sentido, o lobbyista distingue-se do facilitador. Este, ao contrário do nome por que se tornou conhecido, “cria dificuldades, para vender uma solução”. O lobbyista “é alguém a quem é pedido que, junto do poder político, consiga uma abertura, uma atitude diferente. Quem pede um serviço de lobby não quer cometer nenhum crime. Quer apenas que se elabore um dossier de um assunto, para alterar a posição do poder político em relação àquela matéria”.
Na opinião de Artur Pereira, este tipo de serviço é necessário porque “as sociedades são hoje muito complexas”, formadas por “relações em teia”, e “as pessoas nunca sabem quem é o rosto de uma determinada decisão. Não sabem a quem se dirigir. O que nós fazemos é apresentar-lhes o rosto da decisão. E as formas de alterar a sensibilidade política desse decisor, em função dos interesses do cliente”.
Como exemplo do tipo de casos que aceita, Artur Pereira refere “uma empresa que tem um projecto de construção encalhado. Ou está bloqueado por extremistas ambientalistas. Ou tem um projecto de negócio num país terceiro, e pretende saber quem domina, nesse país, determinadas áreas de negócio”.
O serviço compreende geralmente duas etapas: “Reunir informação, e elaborar o dossier para sensibilizar os decisores”. Para isso, e de acordo com o assunto em causa, Artur Pereira constitui uma equipa multidisciplinar. “Tenho uma rede de pessoas, arquitectos, ambientalistas, advogados, professores universitários, que contacto consoante o assunto. Todos têm os seus empregos, isto é apenas um plus bem remunerado. Quando a missão termina, a equipa é desmembrada”.
O preço é combinado com o cliente, “dependendo da complexidade da operação e do tipo de equipa que é preciso criar. E também em função do que o cliente espera ganhar. Mas se não houver resultados, não há dinheiro”. É uma das particularidades do trabalho de Artur Pereira: só é pago no final, se conseguir o objectivo. Outros facilitadores vão recebendo milhares de euros para despesas, sem explicarem exactamente quais, diz. “Há muita ignorância e medo da parte dos clientes. É fácil enganá-los. Alguns facilitadores andam dois ou três anos a ganhar dinheiro, dizendo que vão falar com os ministros, quando afinal se limitam a reunir informação que se consegue em meia hora no Google”.
Por ter preocupações éticas, diz Artur Pereira, é prejudicado em relação à concorrência. Mas mantém-se em actividade graças a uma boa agenda de contactos e às relações de confiança que estabelece. “Tenho os números directos de telemóvel de toda a gente, e eles atendem-me. Porque têm consideração por mim, sabem que comigo há total discrição, não há inconfidências, nem quebras de cumplicidade”.
Outro dos trunfos de Artur Pereira é ser de esquerda. Está ligado ao Partido Comunista, o que não é muito comum no seu ramo. “Não tenho preconceitos em relação a ninguém. Entre os meus contactos há gente desde a direita até à extrema esquerda. Essa é uma das razões porque todos os políticos me atendem o telefone. Sentem que lhes posso ser útil. Às vezes são eles que me ligam, para conversar. Querem saber o que os ‘outros’ pensam, nos partidos de esquerda”.
Apesar de ser contra, Artur Pereira admite que a ilegalidade e a corrupção dominam o labor de empresários e políticos, através dos facilitadores. E que é quase impossível proceder de forma diferente, porque o sistema está montado para que seja assim. “Os facilitadores sabem que têm do outro lado um político corrupto. É a máfia organizada. Mas em algum momento alguém terá de dizer que é preciso fazer de outra maneira. É possível corromper alguns durante todo o tempo, e corromper todos durante algum tempo, mas não é possível corromper todos durante todo o tempo”.
Haveria uma mudança, se a actividade dos lobby fosse transparente. Se fosse legal. É nisso que acredita. “Seria um dos pilares da transparência democrática. Os lobbyistas teriam de ser identificados, saber-se para quem trabalham, quanto recebem, que dossiers têm em mãos. Tal como acontece nos EUA. As regras de actuação deveriam estar definidas, e ser revistas periodicamente, por um organismo próprio. Mas isso não interessa a muitos facilitadores, para quem ‘o segredo é a alma do negócio’. Sem regras, é possível usar todo o tipo de métodos, pagar luvas. Porque, neste negócio, não há recibos. Se a actividade de lobby fosse legalizada, os actos de políticos e empresários seriam escrutinados, para benefício dos cidadãos”. Aliás, não deveriam ser apenas os empresários a usufruir dos serviços de lobby. “Os cidadãos comuns precisam mais do que ninguém”, acrescentou o lobbysta de esquerda.
Mas o problema, confessou-me a maioria dos entrevistados para esta reportagem, é que não é uma questão de escolha. Independentemente das boas intenções que cada um possa ter, é muito difícil, ou mesmo impossível, agir dentro da legalidade.
Paulo de Morais, que foi vereador do Urbanismo da Câmara do Porto no tempo de Rui Rio, confessa: “Eu tive de me esforçar muito para não ficar rico”. Tentaram suborná-lo, oferecer-lhe apartamentos, caixas de sapatos cheias de notas. Houve mesmo alguém que lhe transferiu 4 milhões de euros para a conta bancária. Foi preciso bloquear a conta, para que o montante não entrasse.
“Todos os vereadores do Urbanismo são ricos. Há dinheiro para eles, para os seus partidos, para os presidentes de Câmara. O urbanismo é dos negócios mais rentáveis do mundo, só comparável ao tráfico de droga. Se se alterar o estatuto de um terreno, fazendo um loteamento, esse terreno, que valia 20 mil euros, passa a valer 200 mil em meia hora. Um terreno que valia 4 milhões às 4 horas, passou a valer 20 milhões às 4h30. São valorizações de 800 ou mil por cento, de um momento para o outro”.
Perante isto, a lei não tem força para se impor. “Veja o que aconteceu com os terrenos da Câmara de Oeiras”, disse ainda o candidato a Belém. “Pergunte a Isaltino de Morais como é que ele fazia”.
Isaltino Morais, antigo presidente da Câmara de Oeiras, recebeu-me no Palácio dos Arciprestes, em Linda-a-Velha, sede da Fundação Marquês de Pombal, a que preside. Foi-lhe atribuído este cargo pouco mais do que honorífico desde que saiu da prisão, há cerca de um ano, condenado por fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.
“O meu caso é um case study junto dos académicos”, diz Isaltino Morais. Foi condenado sem provas, em consequência de uma série de erros judiciais, de má fé de magistrados e de um complot preparado pelos seus inimigos políticos, e alimentado pela comunicação social, explica ele.
O seu processo, que levaria à sentença de dois anos de prisão efectiva, depois de inúmeros recursos e expedientes judiciais, referia-se apenas a uma conta bancária ilegal, na Suíça. Os vários outros crimes pelos quais foi investigado o acusado, alguns referentes a actos de corrupção cometidos no exercício do poder autárquico (foi reeleito em Oeiras já depois de condenado em primeira instância), foram objecto de absolvição, arquivamento ou prescrição. Mas, na opinião do próprio Isaltino Morais, foi por tudo isso que foi condenado.
“Criou-se um caldo propício à perseguição. A comunicação social pedia sangue. O sistema judicial quis apresentar-me como um exemplo de eficácia. Não há outros casos de prisão de dois anos sem pena suspensa”. A partir de certa altura, o próprio sistema de justiça estava a ser julgado. Teria falhado em toda a linha, se não conseguisse condenar Isaltino. “O Ministério Público acusou, com medo. Hoje, não teria ido para a prisão”.
Houve, segundo ele, uma conspiração, liderada por Luís Marques Mendes, coadjuvado por Manuela Ferreira Leite e Paula Teixeira da Cruz (membros do PSD, partido pelo qual foi eleito). Está tudo explicado com grande profusão de pormenores no livro A Minha Prisão, editado em Maio pela Esfera dos Livros. “Eles queriam afastar-me da política, mas não previram que isso me levaria à prisão”, diz Isaltino agora. O julgamento na praça pública assumiu proporções gigantescas e foi imparável, acrescenta. E percebe-se o que realmente quer dizer: na pessoa dele, foi julgado, pela sociedade, todo um estilo de fazer as coisas. Até toda uma época.
“Eu era uma figura popular. Ainda hoje sou. E fui vítima do meu sucesso. No Governo, era o ministro mais popular. Ia aos distritos, levava os directores-gerais, para falar dos problemas. E vivi o período áureo do poder local, nos anos 90. Aproveitei. Criei condições para constituir boas equipas técnicas, aproveitei bem os fundos comunitários”.
Não compreende a acusação de que, enquanto presidente de Câmara, recebia os empresários no seu gabinete. “Claro que os recebia, à segunda-feira e terça-feira, em reuniões sempre com mais sete ou oito técnicos. Porque um autarca deve ser alguém que favorece o diálogo, desbloqueia, resolve os problemas”.
Nega que tenha praticado a corrupção, mas também não compreende a importância que se atribui a isso. “Corrupção há em todo o lado onde há poder e dinheiro”. Assim como não entende todo o empolamento dos chamados crimes de colarinho branco. “O crime económico é hoje demasiado condenado. Mais do que os homicídios, ou a pedofilia. Acho isso errado. O crime económico é bem menos grave”.
Maria Manuel Leitão Marques, professora catedrática de Direito Económico na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da mesma Universidade, admite que, ainda hoje, a missão dos gestores públicos, autarcas incluídos, não é fácil. “Têm regras muito apertadas, mais do que os privados. E têm de apresentar resultados. Dantes, eram apenas burocratas, mas agora têm de ser eficientes e eficazes. São muito escrutinados, e têm de cumprir prazos, regras, concursos. Nem sei como alguém aceita ser gestor público”.
Estes constrangimentos não são exclusivamente portugueses, mas podem ser um forte incentivo ao incumprimento das regras, por parte dos autarcas. Ainda que não o justifiquem, ressalva Maria Manuel. “Estas regras cumprem objectivos de transparência e responsabilidade. Mas como conciliar isso com a eficiência e a eficácia?”
Como secretária de Estado da Modernização Administrativa no Governo de José Sócrates e coordenadora do programa Simplex, reconhece a importância da simplificação dos processos burocráticos. Mas “o Simplex foi feito a pensar nos pequenos empresários. Os grandes têm sempre formas de se defenderem. Utilizam advogados, e as despesas diluem-se”.
O conflito entre autarcas e o poder central, porém, vai para além desses constrangimentos de responsabilização, pensa Daniel Francisco, sociólogo, que tem desenvolvido trabalho de investigação sobre o poder local, também no CES, de Coimbra. Insere-se num clima de rebeldia contra o Estado, que é antigo e constante no país. “O Estado central é inimigo dos autarcas”, afirma. “Eles dizem: ‘Eu faço o bem aqui, o Terreiro do Paço é o inimigo”.
Esta hostilidade contra o Estado cai bem entre as populações locais, porque é profundamente enraizada, e explica em grande medida a apetência para o incumprimento da lei, da parte de quem o pode fazer.
O Estado representa a grande instituição opressora, como em tempos foi a Igreja. E as pessoas sentem que a sua sobrevivência depende da capacidade individual de resistir a essa opressão.
“Somos o povo mais manhoso do mundo”, diz Daniel Francisco. “O silêncio, a dissimulação, o risinho” são estratégias individuais de resistência. “Em Portugal, o poder do Estado é odiado e temido em todas as suas manifestações. O padre, o professor primário, o patrão, o pai, que é violento e alcoólico, e do qual a mãe protege os filhos. São emanações do poder patriarcal, que Salazar foi brilhante em compreender e utilizar, numa cumplicidade implícita com as famílias portuguesas”.
A desconfiança em relação ao Estado é muito antiga em Portugal. Uma das origens dessa atitude será o facto de os portugueses serem descendentes de viajantes e comerciantes. “Fenícios, cartagineses, judeus eram comerciantes, e se algum êxito tiveram foi por viajar. Sociedades que gostam do movimento não gostam do Estado. E as elites portuguesas estão ligadas ao comércio”.
Elísio Estanque, investigador do CES, professor na faculdade de Economia de Coimbra e especialista em classes sociais, tem dúvidas sobre este generalizado carácter aventureiro dos portugueses. A nossa sociedade é aliás “pouco individualista. Há uma cultura autoritária, e as classes baixas aceitam a dependência como inevitável, de uma forma reverente. Há um défice de autonomia individual, e uma dependência das boas almas, das dádivas dos poderosos”.
Esta é uma das perspectivas possíveis, diz Elísio Estanque. É olhar as elites pelos olhos das classes baixas. “Quando a classe média empobrece, a reverência tende a aumentar. Enquanto não se transforma em revolta. Quando o poder é muito assimétrico, faço o que me mandam fazer”.
Isto confirma e sacraliza as classes altas na sua atitude tradicional: a arrogância. Por herança cultural do autoritarismo despótico da Igreja e da aristocracia, as elites portuguesas “sentem-se como se estivessem fora da sociedade e acima dela. Na sua lógica elitista, posicionam-se acima de de qualquer contrato social”. Numa definição mais avançada, “se as elites são uma força transformadora da sociedade, um motor da transformação, então elas não existem em Portugal”, diz Elísio Estanque.
Muitos elementos das classes superiores são de ascensão recente, o que determina as suas características. Apresentam tiques de novo-riquismo, através da “ostentação, em busca de um estatuto que ainda não está sólido nem seguro”. Por outro lado, essa insegurança, a “debilidade individual, leva-os a acreditar que foram promovidos graças a terem sido protegidos por alguém. O tráfico de influências é isso”.
E essa crença, por sua vez, fá-los sentir-se eleitos, e não agentes da sua própria ascensão. “Julgam-se predeterminados, com um estatuto imune. Nas camadas com traça aristocrática, vêem-se como promotores do bem público. Tudo o que dizem e fazem é para bem do povo”.
Ao mesmo tempo, nas novas elites urbanas há muito de hábitos e tradições do mundo rural, de onde são oriundas. “As redes de contactos familiares, os favores, as afinidades, a gratidão, o paternalismo, a protecção. Os laços pessoais têm mais força do que a lei, na sociedade portuguesa. Houve uma transferência do mundo pré-moderno, pré-democrático”.
As elites tendem a reproduzir à sua maneira esses comportamentos, privilegiando as amizades e os favores em detrimento da lei, à qual, por a temerem, se sentem superiores.
O sociólogo Paulo Machado concorda que as elites portuguesas se sentem no seu lugar por uma espécie de direito divino. “Noutros países, as elites resultam de um processo muito competitivo. É um prémio, uma distinção social. As portuguesas não tiveram de se esforçar. São pouco competitivas. Por isso se sentem seguras nos seus privilégios, e acima das outras pessoas”. E da lei.
Rui Teixeira Santos tem outra explicação.
A corrupção é intrínseca às estratégias de sobrevivência das elites portuguesas, desde sempre.
“Como foi possível que o nosso império na Ásia sobrevivesse durante 300 anos, quando éramos um país sem recursos?
A resposta é esta: através da corrupção. Foi a maneira portuguesa de encontrar recursos. A corrupção foi a seiva do império. A lenda negra do império português”.
Depois, quando os vice-reis da Índia chegavam ricos, o rei encontrou uma forma de os espoliar: “Através do Instituto da Devassa, perguntavam-lhe como tinha enriquecido. Se não conseguisse justificar, o rei tinha o direito de lhe confiscar os bens. Não há fortunas vindas do Império”.
PAULO MOURA
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