terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Que Deuses Veneramos?
É impossível não venerar.
Na sociedade actual todo o mundo venera alguma coisa.
Pessoas veneram dinheiro, poder, beleza, inteligência.
Pessoas veneram griffes, bens de consumo, ídolos da música, dos esportes ou do cinema.
Pessoas veneram times de futebol, bandeiras ou partidos políticos.
Aquele que venera o dinheiro fica sempre com a sensação de que não tem o suficiente.
Desse sentimento de carência surge a vontade de acumular cada vez mais, num processo que pode se tornar doentio.
Quem venera a beleza irá se achar sempre feio ou imperfeito, e nunca terá sossego.
O sofrimento dele é mais que garantido, principalmente quando os primeiros sinais de velhice começam a aparecer.
Aquele que adora o poder será sempre um escravo dele, e irá sempre sentir-se fraco, por achar que não tem suficiente, ou por perceber que há (ou houve no passado) pessoas com mais poder.
Quem venera a inteligência irá sempre se achar burro no fundo, e tentará esconder essa burrice dos demais usando um discurso erudito ou desnecessariamente complexo para dizer coisas simples.
Assim, podemos dizer que a sociedade de consumo está baseada na veneração desse tipo de objecto, que parece haver substituído os símbolos e arquétipos usados antigamente pelas religiões.
O problema destas formas de adoração da sociedade moderna não é a adoração em si, nem está nos objectos dessa adoração, mas no facto de que elas são sempre inconscientes.
Quem adora, não sabe ou não admite que adora, e tenta mostrar aquilo que deseja ou tem como algo natural ou necessário.
Porém, acontece que o devoto desses objectos gravita em direcção a eles de maneira totalmente inconsciente, e aqui reside a insidia que mencionamos acima: esses objectos se tornam agentes de domínio tirânico sobre a pessoa, e garantia certa de infelicidade.
Portanto, se o acto de venerar é não apenas natural, mas intrínseco ao ser humano, é necessário escolher bem os deuses que serão objecto da nossa adoração.
Quais são esses deuses, então?
(...)
Qual é a diferença entre uma vítima do consumo que adora griffes e um devoto ajoelhado frente ao altar?
Essencialmente, depende da atitude de cada um.
A priori, se a atitude for a mesma, não há diferença entre o fashion victim e o devoto cego: ambos se prostram perante seus objectos de desejo; ambos buscam se completar ou acabar com a sensação de vazio ficando próximos do objecto escolhido.
A veneração de alguma das múltiplas formas de Brahman como um objecto é tão equivocada como possa ser a tentativa de conhecer Brahman como um objecto.
Brahman é o sujeito que observa e, portanto, não poderá nunca ser um objecto observado.
Assim, Śiva não é um objecto, Sarasvatī não é um objecto, Gaṇeśa não é um objecto.
Quando você faz uma prostração frente a um altar, você não está reverenciando nada diferente daquilo que você é.
O devoto adora seus deuses, mas qual é o lugar que ocupam esses deuses na prática de Yoga?
Noutras palavras, quem é “aquele que as pessoas veneram”?
Por que fazemos pūjās para Kṛṣṇa, Gaṇeśa, Sarasvatī?
Como interpretar essas pūjās à luz da Upaniṣad?
Rāma, Śiva, Lakṣmī, são Brahman ou não?
Depende de como você interpretar estes nāmarūpas, estes nomes e formas.
Quando você se refere a Rāma, por exemplo, você se refere à mūrti, à escultura que está vendo à sua frente, a um objeto do seu conhecimento ou ao princípio da Pura Consciência?
Rāma não é um objecto que você adora.
Senão, ele seria apenas o objecto de uma experiência, um prameya, portanto.
Assim, o Rāma que você experiencia não é Brahman.
O Kṛṣṇa que você experiencia não é Brahman.
O Gaṇeśa que você experiencia não é Brahman.
Seja o que for que você tenha adorado, esse objecto da sua adoração, seja qual for, não é Brahman.
Em todos os casos, esse objecto é um prameya, algo conhecido, e não o pramātā, o conhecedor, que é a realidade última.
Então, por que existem esses devattās?
Os devas tem a função de nos indicar Brahman.
Eles são lakṣaṇas, são indicadores para Brahman, como as placas de uma estrada.
A placa não é o lugar onde você quer chegar, mas indica a direcção na qual esse lugar se encontra.
As escadas não são o andar de cima da casa, mas sem elas você não chega lá.
Você não pode dispensar as escadas para chegar no andar superior, assim como não deve dispensar as placas na estrada que lhe indicam o caminho.
Então, essa adoração que chamamos Bhakti Yoga tem a função de nos preparar para a compreensão de Brahman.
Sem os devas, que são mithyāḥ, portanto, não chegamos em satya, no real.
Kṛṣṇa, Śiva, Sarasvatī, só serão realmente adorados e compreendidos quando conhecidos como o Eu, como o pramātā que possibilita os prameyas, o conhecedor que possibilita as cognições.
Assim, no estágio inicial, Gaṇeśa, Śiva, Lakṣmī, são objetos do nosso conhecimento.
No estágio final, eles são o sujeito que conhece.
No estágio inicial, o bhakti é conhecido como dvaitabhakti, devoção dual (eu ≠ ele).
No final, o bhakti é conhecido como advaitabhakti, devoção não-dual (eu = ele).
Somente no advaita bhakti Īśvara é real.
Nas outras formas preliminares, Īśvara é mithyāḥ, é falso, sem importar o quão impressionantes possam ser seus darśanas, suas visões ou êxtases meditativos.
Essas visões não tem nada a ver com a Realidade de Brahman.
A realidade é Brahman e a verdade é que Brahman não pode ser visto.
Assim, você pode tirar seu cavalinho da chuva em relação a buscar uma experiência de Brahman.
Para bem e para mal, você já é esse Brahman que possa estar buscando nas experiências, sejam sagradas, sejam profanas.
Você não pode negar isso, mesmo que queira, pois essa é a sua natureza real.
Pedro Kupfer
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