quinta-feira, 31 de outubro de 2024

NÃO SUBSCREVO






 Não, não, não subscrevo, não assino 
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes, 
como se golpes, contra-golpes, intentonas 
(ou inventonas - armadilhas postas 
da esquerda prá direita ou desta para aquela) 
não fossem mais que preparar caminho 
a parlamentos e governos que 
irão secretamente pôr ramos de cravos 
e não de rosas fatimosas mas de cravos 
na tumba do profeta em Santa Comba, 
enquanto pra salvar-se a inconomia 
os empresários (ai que lindo termo, 
com tudo o que de teatro nele soa) 
irão voltar testas de ferro do 
capitalismo que se usou de Portugal 
para mão-de-obra barata dentro ou fora. 
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto: 
infantilmente doentes de esquerdismo 
e como sempre lendo nas cartilhas 
que escritas fedem doutras realidades, 
incompetentes competiram em 
forçar revoluções, tomar poderes e tudo 
numa ânsia de cadeiras, microfones, 
a terra do vizinho, a casa dos ausentes, 
e em moer do povo a paciência e os olhos 
num exibir-se de redondas mesas 
em televisas barbas de faláeia imensa. 
E todos eram povo e em nome del' falavam, 
ou escreviam intragáveis prosas 
em que o calão barato e as ideias caras 
se misturavam sem clareza alguma 
(no fim das contas estilo Estado Novo 
apenas traduzido num calão de insulto 
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo). 
Prendeu-se gente a todos os pretextos, 
conforme o vento, a raiva ou a denúncia, 
ou simplesmente (ó manes de outro tempo) 
o abocanhar patriótico dos tachos. 
Paralisou-se a vida do pais no engano 
de que os trabalhadores não devem trabalhar 
senão em agitar-se em demandar salários 
a que tinham direito mas sem que 
houvesse produção com que pagá-los. 
Até que um dia, à beira de uma guerra 
civil (palavra cómica pois que 
do lume os militares seriam quem tirava 
para os civis a castanhinha assada), 
tudo sumiu num aborto caricato 
em que quase sem sangue ou risco de infecção 
parteiras clandestinas apararam 
no balde da cozinha um feto inexistente: 
traindo-se uns aos outros ninguém tinha 
(ó machos da porrada e do cacete) 
realmente posto o membro na barriga 
da pátria em perna aberta e lá deixado 
semente que pegasse (o tempo todo 
haviam-se exibido eufóricos de nus, 
às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste). 
A isto se chegou. Foi criminoso? 
Nem sequer isso, ou mais do que um guião 
do filme que as direitas desejavam, 
em que como num jogo de xadrez a esquerda 
iria dando passo a passo as peças todas. 
É tarde e não adianta que se diga ainda 
(como antes já se disse) que o povo resistiu 
a ser iluminado, esclarecido, e feito 
a enfiar contente a roupa já talhada. 
Se muita gente reagiu violenta 
(com as direitas assoprando as brasas) 
é porque as lutas intestinas (termo 
extremamente adequado ao caso) 
dos esquerdismos competindo o permitiram. 
Também não vale a pena que se lave 
a roupa suja em público: já houve 
suficiente lavar que todavia 
(curioso ponto) nunca mostrou inteira 
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano 
usada foi por tanto entusiasta, 
devotamente adepto de continuar ao sol 
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos 
não foram antes grandes pecadores). 
E que fazer agora? Choro e lágrimas? 
Meter avestruzmente a cabeça na areia? 
Pactuar na supremíssima conversa 
de conciliar a casa lusitana, 
com todos aos beijinhos e aos abraços? 
Ir ao jantar de gala em que o Caetano, 
o Spínola, o Vasco, o OteIo e os outros, 
hão-de tocar seus copos de champanhe? 
Ir já fazendo a mala para exílios? 
Ou preparar uma bagagem mínima 
para voltar a ser-se clandestino usando 
a técnica do mártir (tão trágica porque 
permite a demissão de agir-se à luz do mundo, 
e de intervir directamente em tudo)? 
Mas como é clandestina tanta gente 
que toda a gente sabe quem já seja? 
Só há uma saída: a confissão 
(honesta ou calculada) de que erraram todos, 
e o esforço de mostrar ao povo (que 
mais assustaram que educaram sempre) 
quão tudo perde se vos perde a vós. 
Revolução havia que fazer. 
Conquistas há que não pode deixar-se 
que se dissolvam no ar tecnocrata 
do oportunismo à espreita de eleições. 
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe, 
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso, 
que ao povo seja dito de uma vez 
como nas suas mãos o seu destino está 
e não no das sereias bem cantantes 
(desde a mais alta antiguidade é conhecido 
que essas senhoras são reaccionárias, 
com profissão de atrair ao naufrágio 
o navegante intrépido). Que a esquerda 
nem grite, que está rouca, nem invente 
as serenatas para que não tem jeito. 
Mas firme avance, e reate os laços rotos 
entre ela mesma e o povo (que não é 
aqueles milhares de fiéis que se transportam 
de camioneta de um lugar pró outro). 
Democracia é isso: uma arte do diálogo 
mesmo entre surdos. Socialismo à força 
em que a democracia se realiza. 
Há muito socialismo: a gente sabe, 
e quem mais goste de uns que dos outros. 
É tarde já para tratar do caso: agora 
importa uma só coisa - defender 
uma revolução que ainda não houve, 
como as conquistas que chegou a haver 
(mas ajustando-as francamente à lei 
de uma equidade justa, rechaçando 
o quanto de loucuras se incitaram 
em nome de um poder que ninguém tinha). 
E vamos ao que importa: refazer 
um Portugal possível em que o povo 
realmente mande sem que o só manejem, 
e sem que a escravidão volte à socapa 
entre a delícia de pagar uma hipoteca 
da casa nunca nossa e o prazer 
de ter um frigorifico e automóveis dois. 
Ah, povo, povo, quanto te enganaram 
sonhando os sonhos que desaprenderas! 
E quanto te assustaram uns e outros, 
com esses sonhos e com o medo deles! 
E vós, políticos de ouro de lei ou borra, 
guardai no bolso imagens de outras Franças, 
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas, 
ou de Estados Unidos que não crêem 
que latinada hispânica mereça 
mais que caudilhos com contas na Suíça. 
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes 
tão dividido entre si mesmo. Adiante. 
Com tacto e com fineza. E com esperança. 
E com um perdão que há que pedir ao povo. 
E vós, ó militares, para o quartel 
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar 
ao ponto de não serdes o que deveis ser: 
garantes de uma ordem democrática 
em que a direita não consiga nunca 
ditar uma ordem sem democracia). 
E tu, canção-mensagem, vai e diz 
o que disseste a quem quiser ouvir-te. 
E se os puristas da poesia te acusarem 
de seres discursiva e não galante 
em graças de invenção e de linguagem, 
manda-os àquela parte. Não é tempo 
para tratar de poéticas agora.


Jorge de Sena





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