Navegamos,
e as coisas vão mexendo devagar,
como a colher roçando o interior da chávena,
a música que apenas segura as coisas,
a cidade rodando em torno de um eixo cego,
tudo em segredo,
entre águas enormes e anónimas,
navegamos rumo ao vazio que trazemos,
na sensação de que nada poderá
levar-nos de volta.
Somos monstros feitos desse grito
que não damos,
bloqueados nesta deslocação imparável.
Contra o casco as vagas parece que riem
do espetáculo da nossa compostura,
enjoados com água doce e morna
que levamos no corpo,
as nossas vidas tão sem sabor,
e o medo de o entornarmos.
Evitaremos outro desastre refugiados
na cabina, ouvindo o rumor uns dos outros,
lendo sobre uma tempestade fantástica,
uma narração que faça a vida
parecer uma coisa distante.
O navio treme, a máquina trabalha,
e o nosso juízo sufoca entre os respingos
e a agitação, o arcabouço do vento.
Tentamos lembrar-nos como se faz,
como se respira, e um relâmpago ao longe
parece lamber os contornos de outro mundo.
Aqui, apenas o vago temor
de não sermos reais.
E se a morte deixou de assustar-nos
é pela sensação de que não iria sujar-se,
não por nós. Para quê dar-se ao trabalho,
vir buscar-nos, e arrastar-nos depois
para onde?
Diogo Vaz Pinto
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