Se ao conduzirmos a nossa embarcação ao longo do rio vier embater contra nós um barco vazio, sabemos que é inútil nos ofendermos com isso. Aceitamos, nesses casos, que a vida é tecida de tais experiências, para as quais não temos rápidas explicações. Dizemos a nós próprios que a vida se constrói num campo aberto e a sua evolução não chega a ser controlável a cem por cento e, muitas vezes, nem previsível é.
Nos encontros e desencontros, nos afastamentos e nas colisões, no que se enlaça ou no que se dissolve maturámos que há uma margem que nos escapa da mão, que nos recorda que não estamos sós e, de forma surpreendente e contínua, atesta que a soma que a vida perfaz é maior do que a nossa parte apenas.
Concluímos, assim, que o embate com um ou outro barco vazio é condição da própria travessia. Mais. Sentimos pouco a pouco que ganhámos em integrar esses acontecimentos, em torná-los estações da viagem e etapas de um conhecimento interior que cresce. Para quem sabe ler em profundidade, um barco vazio vem carregado de sinais úteis à navegação. Não é necessariamente um escolho inútil que se tem de suportar ou a expressão do absurdo quotidiano que nos acompanha.
Na verdade, a vida dá a mão a elementos tão distintos para a sua dança.Há uma plasticidade e uma resiliência que o embate com os barcos vazios moldam em nós, e precisamos de ambas. Há aí, mesmo se com estrondo, ainda que em contraciclo, um chamamento a olhar a realidade para lá da nossa cápsula. A contemplá-la não no linear, no reconhecível e uniforme, mas na complexidade mutante e instável do seu desenho. Numa primeira reação podemos considerar que é mais difícil amar a vida assim e, porventura, temos até razão. Mas o amor maior - devemos também descobrir - é aquele capaz de amar a fragilidade e a imperfeição. É aquele que abraça inclusive as próprias contradições.
Este verão li "O Nó Do Problema", de Graham Greene, e numa das páginas inesquecíveis, que dá a chave a todo o romance, o escritor fala, por exemplo, do estranho modo que Deus tem de amar o Ser Humano. Deus não nos ama porque somos amáveis e dignos desse amor. Deus não nos ama porque merecemos. Ao contrário, defende Greene, ama-nos sabendo que não merecemos, que não estaremos à altura, que não nos aperceberemos sequer da natureza e da dimensão desse amor. Mas neste desfasamento é-nos revelado o essencial do que precisamos conhecer e praticar.
Nos embates da vida, naqueles mais desafiadores ( e também por isso mais áridos, decepcionantes e sofridos), naqueles que mais nos obrigam a renascer, nem sempre conseguimos perceber imediatamente que o barco que veio contra nós na corrente é, afinal, um barco vazio. Procuramos encontrar um culpado pelo embate, e não nos damos logo conta de que a gramática da culpa não funciona.
Seria mais consolador encontrar um bode espiatório, individuar um comandante a quem atribuir a responsabilidade pelo nosso desgosto, pela convulsão provocada, pela aflição em que entrámos. Seria mais rápido poder denunciar de forma inequívoca um hipotético tripulante hostil a quem atribuir uma qualquer má vontade.
Mas quedar-se nessa atitude é um exercício de simplificação que distorce a essência da vida, que não é só lógica e mecânica, que não se esgota na dialética do conflito, que não deixa nunca de vir ao nosso encontro como mistério, abertura e possibilidade.
Por isso, é cheio de sabedoria o poema oriental e antigo que propõe o seguinte:
"Aprende antes a pensar que todos os barcos estão vazios
e quando atravessares os rios do mundo
coisa alguma te poderá perturbar."
José Tolentino Mendonça
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