terça-feira, 20 de julho de 2021

O Século da Solidão


 



A importância 
de conceitos como 
bondade, compaixão e comunidade 
no pensamento económico.


Podemos sentirmo-nos sozinhos rodeados de pessoas. 
Da mesma maneira que podemos passar longos períodos sozinhos e não nos sentirmos sós, até podemos estar contentes por termos algum tempo só para nós… 
É possível sentirmo-nos sozinhos numa multidão de pessoas, nas cidades, por exemplo, mas também numa má relação ou num mau casamento. 
Solidão e proximidade com os outros não estão necessariamente correlacionadas. 
Porque a solidão é um sentimento, um sentimento de desconexão. 
 
A Solidão é um sentimento, um desejo de se sentir conectado. 
Um solitário é alguém que gostaria de se sentir ligado, alguém que deseja ser visto, alguém que se sente invisível, que não se sente ouvido, que se sente ignorado. 

Até a presença de aparelhos, que são desenhados para ser tão viciantes, como se fossem slot machines, induz o isolamento. Com eles, tornamo-nos menos ligados dos que vivem à nossa volta. Quando têm um smartphone na mão, as pessoas sorriem menos umas para as outras. Há estudos que nos dizem que, quando existe um telefone em cima da mesa de jantar, mesmo estando este desligado, um casal sente-se menos ligado, menos empático. 
Julgo que conseguimos, conscientemente, fazer pequenas coisas para lutar contra esta adição. 
Por exemplo, ao fim do dia, tento pôr o telefone em sítios onde não consigo alcançá-lo, de maneira a estar mais presente para o meu marido e para a minha família. Uma vez por semana, também costumo tirar uma sabática digital. 

E, se falarmos em redes sociais, é aí que vemos a real dimensão da solidão. 
Toda a investigação nos confirma que, por estarem nas redes sociais, as pessoas não só se sentem menos solitárias como se acham significativamente mais felizes. Cerca de 40% das pessoas dizem que estar no Facebook é tão bom quanto ir ao psicólogo.

Existe um problema profundo de solidão nos mais velhos. 
No Reino Unido, dois em cada cinco pensionistas dizem que a televisão ou o animal de estimação é a sua principal companhia. 
No Japão, o grupo demográfico que está a ir para a cadeia são os reformados: preferem estar presos a estar sozinhos. Os crimes cometidos por maiores de 65 anos quadruplicaram em duas décadas. Muitos são pequenos delitos, como assaltos, feitos com um objectivo simples: ir para a prisão, onde estes idosos encontram a comunidade que não conseguem ter em casa.

Porém, temos tendência para afirmar que os mais velhos são a geração mais solitária, e isso não é verdade. A geração em que as pessoas se sentem mais sozinhas é, na verdade, a mais nova. Quatro em cada cinco indivíduos da faixa etária 16-24 anos, no Reino Unido, sentem-se sozinhos frequentemente ou algumas vezes. Um em cada cinco millennials admite não ter um único amigo. Cerca de 50% das crianças e pré-adolescentes entre os 10 e os 15 anos confessam sentir-se sempre sozinhos ou, pelo menos, frequentemente. 
Estes dados são muito impressionantes. 
Em suma, toda a gente pode sentir-se sozinha, novos/velhos, ricos/pobres… 
Mas, em termos proporcionais, os mais novos são os mais solitários. 

Mesmo antes da pandemia, uma em cada dez pessoas já se sentia sozinha e 40% dos trabalhadores já se sentiam sozinhos no escritório.
Atualmente, cerca de 50% da população se sinta sozinha. 
 
Claro que a pandemia é a crise partilhada mais significativa que tivemos nas últimas décadas, pelo menos, no mundo desenvolvido. Mas a pandemia não pode ser a resposta para tudo, parece-me mais interessante pensarmos de que maneira é que acelerou tendências que já existiam. 
Acredito também que possa vir a mudar alguns aspetos. 
Do ponto de vista histórico, temos observado que, após crises de dimensão considerável, os governos tentaram mudar o curso das coisas. Por exemplo, no Reino Unido, depois da II Guerra Mundial, foi criado o Serviço Nacional de Saúde. Nos EUA, depois da Grande Depressão, foi implementado o New Deal. Portanto, estes momentos de crise foram usados como oportunidades para, não apenas reconstruir, mas construir melhor. É essa a minha esperança.

Um dos aspetos que temos vindo a observar é o regresso ao nacionalismo económico. 
Os governos dos vários países têm dado prioridade aos produtos nacionais, pressionando também as empresas para contratarem trabalhadores nos próprios países. 
Penso que se trata de uma nova tendência revelada pela pandemia. 

Há também o problema de termos renunciado, como não víamos há anos, a muitas dimensões daquilo que é a nossa liberdade. Julgo que tem de existir um trade-off entre liberdade e fraternidade. E isso também pode ser disruptivo na medida em que, nos últimos anos, com o neoliberalismo vigente, o foco esteve tão centrado no “eu” e no que “é bom para mim” que perdemos o sentido do bem coletivo, do bem comum.

O populismo de extrema-direita é parcialmente atraente para as pessoas que se sentem sozinhas porque, hoje, os populistas de extrema-direita fomentam o sentimento de comunidade, ao contrário dos restantes partidos. Se pensarmos nas manifestações dos apoiantes de Trump, naqueles cânticos e naquelas roupas cheias de slogans, vemos como tudo aquilo cria uma espécie de teatro, uma encenação de comunidade. Se pensarmos em Salvini e na Liga Norte, observamos que eles têm encontros, jantares e usam a retórica da família na sua linguagem. Os populistas de extrema-direita têm, definitivamente, um sentido de comunidade mais eficaz do que os outros partidos. 

São como os ratos na gaiola. 
Quando chega um rato novo, o rato mais antigo tende a ser mais agressivo com o que está a chegar. 
Os populistas de extrema-direita também jogam com isso: fomentam o sentido de comunidade, mas também atuam como se o mundo fosse um sítio hostil, repelem os estrangeiros e os migrantes, fomentam o medo pelo outro.

Os populistas cada vez mais exploram a solidão para ganhar consensos. 
No livro há estudos sobre o consenso muito alto que, por exemplo, Jean-Marie Le Pen teve na França em 1992 entre as pessoas mais solitárias ou abandonadas. Mas o mesmo pode ser dito de muitos defensores do partido xenófobo na Holanda Pvv, de Donald Trump nos EUA ou de Matteo Salvini na Itália: mais do que outros políticos, seus seguidores têm menos amigos, menos conhecidos e passam mais tempo sozinhos. Líderes como o Salvini, em um momento histórico de crescente desigualdade, preenchem o vazio deixado pela esquerda, pelos sindicatos, mas também pelas religiões. Portanto, tais movimentos, muitas vezes de direita, atraem cada vez mais pessoas, principalmente quando são sozinhas.

A solidão hoje assume formas e repercussões mais severas e extensas. 
Porque estamos cada vez mais sozinhos não só em casa ou no trabalho, mas também quando somos abandonados por governos e sociedades, como Jung e Asimov já teorizavam. 
Não é por acaso, que o governo britânico tenha criado um "Ministério da Solidão".
Não me parece que a experiência esteja a correr bem. 
Em primeiro lugar, porque se trata de uma pasta muito nova, é muito complicado ter peso e poder. 
Em segundo lugar, por causa do orçamento, que é relativamente negligenciável. 
Por fim, das minhas conversas com a titular do cargo, parece-me que surgiu também o problema do alcance da própria ação.

É preciso regular as redes sociais, reconstruir a “infra-estrutura da comunidade” e abandonar a vida contactless.

Muita desta solidão é estrutural. 
E grande parte deve-se ao facto de, desde 2008, com a crise financeira, os governos de todo o mundo terem desinvestido nas infraestruturas da comunidade: parques públicos, bibliotecas públicas, clubes de jovens, centros de dia… 
Penso que os governos têm de enfrentar o problema da solidão muito seriamente, por causa dos seus efeitos na saúde. É provavelmente o nosso maior problema e não estamos a falar dele… 
A solidão é tão má para a nossa saúde quanto fumar 15 cigarros por dia.
Tem efeitos na economia. Não apenas por causa do peso financeiro sobre o sistema de saúde, mas também porque trabalhadores solitários são menos produtivos, estão motivados e mais propensos à desistência. 
A solidão é um problema muito caro: nos Estados Unidos, o custo de suas consequências físicas e mentais foi estimado em 7 bilhões de euros por ano para a saúde estadunidense e dois para a saúde britânica. 

Mas a solidão também é muito útil, porque é mais receptiva à narrativa das tradições e do senso de comunidade que hoje encarnam esses movimentos populistas. Muitos que entrevistei me disseram que ir a um comício de Trump ou a um festival da Lega são alguns de seus poucos momentos de socialização.
Os “forgotten men” de Trump, “os esquecidos”. 
São aqueles abandonados não só pela sociedade, mas, nos últimos tempos, também pela política e pela economia. 

É por isso que a solidão é um fator crucial. 
Pessoas solitárias são cada vez mais numerosas no mundo: não só no lockdown e no smart working, que têm um impacto extremo, mas também, em tempos normais, no crescimento do número de solteiros, ou as cidades cada vez mais alienantes. Esses cidadãos com interações mínimas no mundo real, nas suas espirais mentais, tendem a perceber o mundo exterior como mais hostil e ameaçador do que outros indivíduos. 

As redes sociais e a Internet, que se assentam na compulsividade temática dos seus algoritmos, levam ainda mais a extremos as posições dessas pessoas, também porque muitas vezes a sua “comunidade” não é real, mas sim online. 
Resultado: os populistas conseguem conquistá-los com muito mais facilidade do que outros políticos.

É urgente que as outras forças políticas mais progressistas e liberais, para além de conteúdos como a luta contra as desigualdades e um freio ao neoliberalismo extremo, a centro-esquerda e a esquerda aprendam a falar a mesma língua que os populistas. 
E isso com emoções, empatia. 
Não apenas com fatos. Que são importantes, é claro. 
Mas hoje, mais do que no passado, as emoções são decisivas.

Há obviamente a fenomenologia do lockdown, seus danos colaterais e o precedente dos "isolados" da velha Sars, que ainda hoje sofrem de complicações físicas e mentais; há "a economia da solidão", ou seja, "as perversões do capitalismo e do individualismo"; há uma sociedade cada vez mais “sem contato”; o “buraco negro” e obsessivo dos smartphones e tecnologia no estilo Black Mirror; enfim, a perda do senso de comunidade e agregações como os "velhos" partidos, sindicatos, mas também aqueles bairros que, por causa das migrações e de culturas que já não dialogam entre si, limitam as relações interpessoais e inflam as tensões. 
Sim, há também uma globalização da solidão. 
Que se manifesta numa sociedade cada vez mais turbulenta, de "homens e ratos", como demonstrei no livro, de roedores agressivos quando solitários. 
Mas, de maneira mais geral, há um impacto notável também na política. É evidente a ligação entre solidão e populismos ou movimentos de extrema direita.

Hannah Arendt também o narrava no livro "As Origens Do Totalitarismo", para quem a essência deste último era “a solidão, uma das experiências mais desesperadas e radicais de um homem”.
A história da economia está cheia de pensadores credíveis que falaram sobre economia, mas também incluíram conceitos como o da bondade nos seus textos. Começando, desde logo, por Adam Smith, o pai da economia e do mercado livre que, além de ter escrito "A Riqueza das Nações", também escreveu "A Teoria dos Sentimentos Morais", onde falou exaustivamente da importância de cuidar dos outros, da compaixão, da comunidade. 
Há uma tradição de pensadores reconhecidos e inteligentes para os quais a economia não existe no vácuo. E para quem o capitalismo e o cuidar dos outros, mais do que poderem ser conciliáveis, devem ser conciliáveis. Na minha carreira de economista, fui ficando cada vez mais consciente de que ser um bom economista é compreender isto verdadeiramente.

Na escola primária, tive uma colega que, como dominava o recreio, não me deixava jogar à macaca. Senti-me muitas vezes excluída. Mais tarde, no princípio dos anos 90, logo a seguir ao fim da União Soviética, estive na Rússia, num local muito remoto onde não conhecia ninguém. Trabalhava para o Banco Mundial, numa fábrica. Como não havia hotéis, dormia num sanatório. Estava sozinha naquele edifício enorme, comia trigo serraceno três vezes ao dia e, quando queria ligar para Inglaterra, tinha de pedir a chamada com 24 horas de antecedência. 
Agora, ao fazer a pesquisa para este livro, fiquei muito mais consciente das minhas relações e da importância dos laços fracos na minha vizinhança. No meu dia a dia, faço questão de falar com o meu carteiro, de ir à livraria do meu bairro e de comprar lá os meus livros, de conversar com o empregado do meu café…

A natureza, ciente de que a segurança da espécie e de cada indivíduo dependia do coletivo, criou em nós um mecanismo para nos dissuadir de ficar sozinhos. Dotou o nosso corpo de uma reação biológica à solidão que intensifica o nosso estado de alerta e é fisiológica e psicologicamente tão desagradável que somos motivados a pôr-lhe cobro o mais depressa possível. O sofrimento que sentimos quando estamos longe de outros é então uma característica evolutiva preciosa.  
“Desligar” o estímulo (negativo) da solidão seria mau, pois seria como desligar completamente a fome.


Noreena Hertz





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